Mundo de irracionalidade"
Al Capone extorquia, contrabandeava, vendia armas e bebidas ilegais, torturava e matava a sangue frio no século passado, nos EUA. Mas acabou sendo processado, condenado e preso por algo bem mais prosaico: sonegação fiscal e posse de armas.
Muitas décadas depois, no Brasil, Daniel Dantas é suspeito, principalmente, de um relacionamento extremamente heterodoxo com os Poderes da República, comprando, vendendo, articulando, desviando e manipulando a honra alheia, as decisões e os dinheiros públicos. Mas está sendo condenado agora pelo juiz Fausto De Sanctis também por algo bem mais prosaico: a tentativa de suborno contra policiais que o investigavam na Operação Satiagraha.
Nos dois casos, de Al Capone e de Daniel Dantas, o ponto em comum é o pragmatismo da Justiça. Se não é possível comprovar os assassinatos de um e os desvios bilionários do outro, as investigações embicaram para o que é de fato possível provar.
No caso do banqueiro brasileiro, de métodos e de personalidade absolutamente peculiares, há fitas de audio e video de seus, digamos, assessores Humberto Braz e Hugo Chicaroni, oferecendo propina em nome dele para os policiais em restaurante de São Paulo. Só que os policiais já haviam comunicado a Justiça e apenas fizeram o espetáculo para ser gravado e entrar para o processo --talvez para a história. Esses "assessores" também foram condenados por De Sanctis.
As gravações justificaram uma batida nas casas deles e, na de Chicaroni, foi encontrada a bagatela de R$ 1,18 milhão em dinheiro, que seria para comprar os policiais. E, como bem registrou o juiz, ninguém até agora foi lá pedir a bolada de volta, como se fossem uns vinténs, "dado o mundo de irracionalidade em que vivem".
Bem, estamos no Brasil, a Justiça brasileira é aquilo que estamos tão carecas, como De Sanctis, de saber. Portanto, esse imbróglio vai subir para várias instâncias e durar ainda muito e muito tempo. Talvez mais um século... Mas a sentença do juiz reequilibra um jogo cheio de emoções e com torcidas apaixonadas dos dois lados.
No início, houve um clamor popular contra Dantas e a favor da dupla De Sanctis-delegado Protógenes Queiroz. Depois, quando ficaram claros os buracos e os excessos das investigações de Protógenes, a balança se inverteu e foi ele que passou à berlinda, sendo afastado do caso e posteriormente até do cargo de elite na Polícia Federal.
Agora, com a decisão de primeira instância, Daniel Dantas está sendo condenado com provas consistentes e Protógenes continua respondendo dentro da própria corporação por arroubos ora juvenis, ora messiânicos. Nisso tudo, a Operação Satiagraha tem sido um grande aprendizado sobre direitos e deveres, bem e mal, impulsos e limites. Está, portanto, sendo de grande utilidade pública. Não só pelos seus méritos, mas muitíssimo pelos seus erros. E assim se consolida a democracia.
Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.
E-mail: elianec@uol.com.br
Al Capone extorquia, contrabandeava, vendia armas e bebidas ilegais, torturava e matava a sangue frio no século passado, nos EUA. Mas acabou sendo processado, condenado e preso por algo bem mais prosaico: sonegação fiscal e posse de armas.
Muitas décadas depois, no Brasil, Daniel Dantas é suspeito, principalmente, de um relacionamento extremamente heterodoxo com os Poderes da República, comprando, vendendo, articulando, desviando e manipulando a honra alheia, as decisões e os dinheiros públicos. Mas está sendo condenado agora pelo juiz Fausto De Sanctis também por algo bem mais prosaico: a tentativa de suborno contra policiais que o investigavam na Operação Satiagraha.
Nos dois casos, de Al Capone e de Daniel Dantas, o ponto em comum é o pragmatismo da Justiça. Se não é possível comprovar os assassinatos de um e os desvios bilionários do outro, as investigações embicaram para o que é de fato possível provar.
No caso do banqueiro brasileiro, de métodos e de personalidade absolutamente peculiares, há fitas de audio e video de seus, digamos, assessores Humberto Braz e Hugo Chicaroni, oferecendo propina em nome dele para os policiais em restaurante de São Paulo. Só que os policiais já haviam comunicado a Justiça e apenas fizeram o espetáculo para ser gravado e entrar para o processo --talvez para a história. Esses "assessores" também foram condenados por De Sanctis.
As gravações justificaram uma batida nas casas deles e, na de Chicaroni, foi encontrada a bagatela de R$ 1,18 milhão em dinheiro, que seria para comprar os policiais. E, como bem registrou o juiz, ninguém até agora foi lá pedir a bolada de volta, como se fossem uns vinténs, "dado o mundo de irracionalidade em que vivem".
Bem, estamos no Brasil, a Justiça brasileira é aquilo que estamos tão carecas, como De Sanctis, de saber. Portanto, esse imbróglio vai subir para várias instâncias e durar ainda muito e muito tempo. Talvez mais um século... Mas a sentença do juiz reequilibra um jogo cheio de emoções e com torcidas apaixonadas dos dois lados.
No início, houve um clamor popular contra Dantas e a favor da dupla De Sanctis-delegado Protógenes Queiroz. Depois, quando ficaram claros os buracos e os excessos das investigações de Protógenes, a balança se inverteu e foi ele que passou à berlinda, sendo afastado do caso e posteriormente até do cargo de elite na Polícia Federal.
Agora, com a decisão de primeira instância, Daniel Dantas está sendo condenado com provas consistentes e Protógenes continua respondendo dentro da própria corporação por arroubos ora juvenis, ora messiânicos. Nisso tudo, a Operação Satiagraha tem sido um grande aprendizado sobre direitos e deveres, bem e mal, impulsos e limites. Está, portanto, sendo de grande utilidade pública. Não só pelos seus méritos, mas muitíssimo pelos seus erros. E assim se consolida a democracia.
Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.
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