De Mino Carta:
Consta que Cesare Battisti há anos escreve romances policiais. Arrisco que o melhor é sua própria história. Concluída pelo happy ending de filme hollywoodiano, graças ao governo brasileiro, disposto a atender aos apelos da gauche caviar, como se diz em Paris, a dos representantes do chique radical.
Recordo um programa do rádio brasileiro que me encantava a adolescência, contemporâneo da PRK 30 de Lauro Borges e Castro Barbosa, de uma graça hoje inconcebível. Era o contraponto de outro programa, grave e compenetrado, conduzido por um locutor chamado Gastão, a quem cabia entrevistar o doutor Leite de Barros para evocar casos remotos e próximos de crimes memoráveis. A conclusão vinha pela voz de barítono do doutor: “Sim, Gastão, o crime não compensa”. A história de Battisti teria de seguir pelo rumo oposto.
O APRENDIZADO. Há uma ficha detalhada da polícia italiana de um jovem cidadão nascido em Cisterna Latina, região do Lazio, em 1954. Aos 18 anos, a 13 de março de 1972, Cesare é preso pela primeira vez por furto agravado. Dois anos depois, a 19 de junho, preso novamente por lesões pessoais agravadas. Preso ainda a 2 de agosto de 1974, por rapina agravada e sequestro de pessoa. Denunciado a 25 de outubro do mesmo ano por desfrutamento de incapaz (por debilidade mental ou menoridade) para a prática de atos libidinosos. Preso em Udine, norte da Península, em 1977, por rapina. Admitamos, não é uma ficha enaltecedora do caráter e das tendências de qualquer um.
A CONVERSÃO. No cárcere de Udine, Battisti conhece Arrigo Cavallina, preso por eversão, que o doutrina a respeito dos objetivos da luta revolucionária. O nosso herói encontra uma grande motivação. Sai da prisão ainda em 1977 e passa a militar no PAC, Proletariados Armados para o Comunismo. Primeira ação revolucionária: a 6 de junho de 1978, Battisti e sua namorada da época, Enrica Migliorati, universitária de 20 anos, assassinam Antonio Santoro, carcereiro na prisão de Udine, na porta de sua casa. Atingido nas costas, quem atira é Battisti. Santoro deixa mulher e três filhos. Por ocasião de um interrogatório, ex-noiva de Battisti, Maria Cecilia B., atualmente professora universitária, declarou: “Na primavera de 1979, Battisti, ao descrever a sensação experimentada ao matar alguém e, sobretudo, ao ver sair o sangue de um homem baleado, referiu-se ao assassínio de Santoro para se declarar um dos seus autores”.
O ASSASSINO E O ARREPENDIDO. Seguem-se os demais assassínios que levam à condenação de Battisti, julgado à revelia. A 16 de fevereiro de 1979, do joalheiro Pierluigi Torreggiani (cuja joalheria foi assaltada e depenada em nome de uma “expropriação proletária”) e do açougueiro Lino Sabbadin, ambos réus por terem morto a tiros dois assaltantes. A 19 de abril, morre debaixo dos tiros do PAC o agente Andrea Campagna. Pouco mais de dois meses após, Battisti é preso em Milão. Mais dois anos. A 4 de outubro de 1981, um commando terrorista ataca o cárcere de Frosinone, onde Battisti se encontra, e ele evade, em companhia de um camorrista.
AS FUGAS. Battisti foge para a França, depois para o México, enfim volta a Paris em 1990, onde em novembro é preso ao preparar uma rapina. Libertado em abril de 1991, alega sua condição de refugiado político e se vale da chamada Doutrina Mitterrand, que oferece abrigo a este gênero de foragidos, ditos políticos. Caduca a Doutrina com o advento de Chirac, e em 2003 a Itália solicita novamente sua extradição. A 10 de fevereiro de 2004 é preso novamente, um ano após é destinado à prisão domiciliar. Em seguida, a Justiça francesa dá sinal verde para a extradição. É quando ele foge para o Rio de Janeiro, ponto final de criminosos verdadeiros e de ficção, a 21 de agosto de 2004. Para enfim cair nas malhas da polícia brasileira, a 18 de março de 2007. É material para um enredo de cortar o fôlego. Muito instrutiva para entrar nos detalhes a leitura de uma reportagem assinada por Giacomo Amadori na revista Panorama, edição 29/1.
A AFRONTA. De saída, uma pergunta: compete a um ministro da Justiça de um país democrático contestar a sentença passada em julgado do tribunal de outro país democrático? Esta pergunta aqui já foi formulada, mas vale repeti-la, a bem da razão e do direito internacional. Digamos que o processo que condenou Battisti sofra de vícios irreparáveis. Quem é, porém, o ministro da Justiça do Brasil, a não ser aos olhos dos patriotas de ocasião, para afrontar o Estado de um país amigo e democrático que ostenta uma tradição jurídica milenar?
Estabelecida a premissa, outras considerações se avolumam. Os argumentos da decisão brasileira são insustentáveis, em primeiro lugar porque provam a ignorância da história recente da Itália e peremptoriamente negam a capacidade do Estado italiano de proteger seus carcerados. Trata-se de ofensa gravíssima, e ao ser praticada demonstra, além da desinformação, a insensibilidade política e diplomática. Não vale a pena insistir na inconsistência das motivações. Vale, entretanto, registrar que um dos argumentos brandidos alude a um delator sumido debaixo de identidade falsa, que jogou lenha na fogueira para salvar a própria pele. Pois Pietro Mutti, o arrependido, não desapareceu depois de oito anos de cárcere, e hoje é um operário com identidade intacta, disposto a insistir na sua denúncia, como relata Amadori na Panorama.
Já Arrigo Cavallina, aquele que converteu Battisti à causa do PAC, recusou-se ao arrependimento, mas hoje afirma: “A meu respeito, Mutti disse coisas substancialmente verdadeiras, não entendo por que teria de denegrir Battisti. Quando ouço que o Cesare faz o papel de vítima do outro lado do mundo, tenho de sorrir”.
Outro argumento demolido pela reportagem de Panorama é o de que Battisti não teve assistência judicial correta. Muito pelo contrário, sempre teve em todas as ocasiões, na Itália e na França, sem contar a qualidade de promotores como Pietro Forno e Armando Spataro. Este define Battisti como “assassino puro”.
A REAÇÃO DA ITÁLIA. Aqui não há surpresas. A afronta não foi perpetrada contra um governo, contingente como todos os governos democráticos, e agora entregue a uma figura medíocre, caricata e, segundo CartaCapital, voltada exclusivamente para os seus interesses pessoais de homem mais rico da Itália. Não é por acaso que quem escreveu para o presidente Lula foi o presidente Giorgio Napolitano, ou seja, o representante do Estado em um país de regime parlamentarista. Como temíamos, a crise diplomática fermenta e Roma retira seu embaixador no Brasil, Michele Valensise. Em outros tempos uma decisão deste porte seria prenúncio de guerra, mas hoje é pelo menos muito grave.
De certa forma, um esclarecimento em relação ao revide italiano vem nas declarações do chanceler Franco Frattini, ao afirmar que “Battisti não merece o status de refugiado”. E acrescenta que o Brasil “é país amigo da Itália desde sempre”, donde o espanto e a repulsa. A Itália não esperava por esta atitude do Brasil, “daí a reação tão grave”, esclarece Frattini.
Aprovada, diga-se, de um lado a outro do cenário político italiano. Walter Veltroni, comunista histórico das levas mais recentes e líder do Partido Democrático, de oposição a Berlusconi e herdeiro do PCI, propõe uma “moção comum” do Parlamento “porque, neste caso, o país deve ficar unido”.
OS FINALMENTES. Nos próprios corredores do Planalto admite-se a possibilidade de que o Supremo venha a declarar inconstitucional a decisão do ministro da Justiça. Neste caso, a questão teria de ser administrada diretamente pelo presidente da República. Lula seria capaz de voltar atrás? A considerar os eventos que se seguiram ao anúncio da extradição negada, CartaCapital tem sérias dúvidas a respeito.
Um caminho a ser seguido pela Itália, o de recurso à Corte de Haia, já está a ser definido, e o tribunal internacional seria solicitado por “violação dos direitos humanos”, fórmula perigosa porque, se aceita, não deixaria de criar sérios embaraços para a política exterior brasileira. A Corte, faz dois anos, manifestou-se a favor da extradição.
Não nos tira o sono o cancelamento da viagem do premier Berlusconi ao Brasil, antes agendada para março próximo. Pesam mais as considerações da The Economist, na sua última edição. Diz o semanário mais influente do mundo que as razões apresentadas “para proteger Battisti” não convencem e define como “anacrônica” a tradição do País de dar asilo a figuras contraditórias como Alfredo Stroessner e Oliverio Medina.
Enfim, toca em um ponto que coincide com o pensamento de CartaCapital: como é possível que o governo abrigue um ex-terrorista, e tanto mais alguém que cometeu seus crimes à sombra de um disfarce ideológico, enquanto teme punir os torturadores do Terror de Estado gerado pela ditadura?
Permanece o mistério: por que o Brasil negou a extradição? Arriscamos um palpite: Battisti serve a uma manobra para recompactar o PT, estilhaçado por refregas internas, recentes e nem tanto, na perspectiva das eleições de 2010.
Consta que Cesare Battisti há anos escreve romances policiais. Arrisco que o melhor é sua própria história. Concluída pelo happy ending de filme hollywoodiano, graças ao governo brasileiro, disposto a atender aos apelos da gauche caviar, como se diz em Paris, a dos representantes do chique radical.
Recordo um programa do rádio brasileiro que me encantava a adolescência, contemporâneo da PRK 30 de Lauro Borges e Castro Barbosa, de uma graça hoje inconcebível. Era o contraponto de outro programa, grave e compenetrado, conduzido por um locutor chamado Gastão, a quem cabia entrevistar o doutor Leite de Barros para evocar casos remotos e próximos de crimes memoráveis. A conclusão vinha pela voz de barítono do doutor: “Sim, Gastão, o crime não compensa”. A história de Battisti teria de seguir pelo rumo oposto.
O APRENDIZADO. Há uma ficha detalhada da polícia italiana de um jovem cidadão nascido em Cisterna Latina, região do Lazio, em 1954. Aos 18 anos, a 13 de março de 1972, Cesare é preso pela primeira vez por furto agravado. Dois anos depois, a 19 de junho, preso novamente por lesões pessoais agravadas. Preso ainda a 2 de agosto de 1974, por rapina agravada e sequestro de pessoa. Denunciado a 25 de outubro do mesmo ano por desfrutamento de incapaz (por debilidade mental ou menoridade) para a prática de atos libidinosos. Preso em Udine, norte da Península, em 1977, por rapina. Admitamos, não é uma ficha enaltecedora do caráter e das tendências de qualquer um.
A CONVERSÃO. No cárcere de Udine, Battisti conhece Arrigo Cavallina, preso por eversão, que o doutrina a respeito dos objetivos da luta revolucionária. O nosso herói encontra uma grande motivação. Sai da prisão ainda em 1977 e passa a militar no PAC, Proletariados Armados para o Comunismo. Primeira ação revolucionária: a 6 de junho de 1978, Battisti e sua namorada da época, Enrica Migliorati, universitária de 20 anos, assassinam Antonio Santoro, carcereiro na prisão de Udine, na porta de sua casa. Atingido nas costas, quem atira é Battisti. Santoro deixa mulher e três filhos. Por ocasião de um interrogatório, ex-noiva de Battisti, Maria Cecilia B., atualmente professora universitária, declarou: “Na primavera de 1979, Battisti, ao descrever a sensação experimentada ao matar alguém e, sobretudo, ao ver sair o sangue de um homem baleado, referiu-se ao assassínio de Santoro para se declarar um dos seus autores”.
O ASSASSINO E O ARREPENDIDO. Seguem-se os demais assassínios que levam à condenação de Battisti, julgado à revelia. A 16 de fevereiro de 1979, do joalheiro Pierluigi Torreggiani (cuja joalheria foi assaltada e depenada em nome de uma “expropriação proletária”) e do açougueiro Lino Sabbadin, ambos réus por terem morto a tiros dois assaltantes. A 19 de abril, morre debaixo dos tiros do PAC o agente Andrea Campagna. Pouco mais de dois meses após, Battisti é preso em Milão. Mais dois anos. A 4 de outubro de 1981, um commando terrorista ataca o cárcere de Frosinone, onde Battisti se encontra, e ele evade, em companhia de um camorrista.
AS FUGAS. Battisti foge para a França, depois para o México, enfim volta a Paris em 1990, onde em novembro é preso ao preparar uma rapina. Libertado em abril de 1991, alega sua condição de refugiado político e se vale da chamada Doutrina Mitterrand, que oferece abrigo a este gênero de foragidos, ditos políticos. Caduca a Doutrina com o advento de Chirac, e em 2003 a Itália solicita novamente sua extradição. A 10 de fevereiro de 2004 é preso novamente, um ano após é destinado à prisão domiciliar. Em seguida, a Justiça francesa dá sinal verde para a extradição. É quando ele foge para o Rio de Janeiro, ponto final de criminosos verdadeiros e de ficção, a 21 de agosto de 2004. Para enfim cair nas malhas da polícia brasileira, a 18 de março de 2007. É material para um enredo de cortar o fôlego. Muito instrutiva para entrar nos detalhes a leitura de uma reportagem assinada por Giacomo Amadori na revista Panorama, edição 29/1.
A AFRONTA. De saída, uma pergunta: compete a um ministro da Justiça de um país democrático contestar a sentença passada em julgado do tribunal de outro país democrático? Esta pergunta aqui já foi formulada, mas vale repeti-la, a bem da razão e do direito internacional. Digamos que o processo que condenou Battisti sofra de vícios irreparáveis. Quem é, porém, o ministro da Justiça do Brasil, a não ser aos olhos dos patriotas de ocasião, para afrontar o Estado de um país amigo e democrático que ostenta uma tradição jurídica milenar?
Estabelecida a premissa, outras considerações se avolumam. Os argumentos da decisão brasileira são insustentáveis, em primeiro lugar porque provam a ignorância da história recente da Itália e peremptoriamente negam a capacidade do Estado italiano de proteger seus carcerados. Trata-se de ofensa gravíssima, e ao ser praticada demonstra, além da desinformação, a insensibilidade política e diplomática. Não vale a pena insistir na inconsistência das motivações. Vale, entretanto, registrar que um dos argumentos brandidos alude a um delator sumido debaixo de identidade falsa, que jogou lenha na fogueira para salvar a própria pele. Pois Pietro Mutti, o arrependido, não desapareceu depois de oito anos de cárcere, e hoje é um operário com identidade intacta, disposto a insistir na sua denúncia, como relata Amadori na Panorama.
Já Arrigo Cavallina, aquele que converteu Battisti à causa do PAC, recusou-se ao arrependimento, mas hoje afirma: “A meu respeito, Mutti disse coisas substancialmente verdadeiras, não entendo por que teria de denegrir Battisti. Quando ouço que o Cesare faz o papel de vítima do outro lado do mundo, tenho de sorrir”.
Outro argumento demolido pela reportagem de Panorama é o de que Battisti não teve assistência judicial correta. Muito pelo contrário, sempre teve em todas as ocasiões, na Itália e na França, sem contar a qualidade de promotores como Pietro Forno e Armando Spataro. Este define Battisti como “assassino puro”.
A REAÇÃO DA ITÁLIA. Aqui não há surpresas. A afronta não foi perpetrada contra um governo, contingente como todos os governos democráticos, e agora entregue a uma figura medíocre, caricata e, segundo CartaCapital, voltada exclusivamente para os seus interesses pessoais de homem mais rico da Itália. Não é por acaso que quem escreveu para o presidente Lula foi o presidente Giorgio Napolitano, ou seja, o representante do Estado em um país de regime parlamentarista. Como temíamos, a crise diplomática fermenta e Roma retira seu embaixador no Brasil, Michele Valensise. Em outros tempos uma decisão deste porte seria prenúncio de guerra, mas hoje é pelo menos muito grave.
De certa forma, um esclarecimento em relação ao revide italiano vem nas declarações do chanceler Franco Frattini, ao afirmar que “Battisti não merece o status de refugiado”. E acrescenta que o Brasil “é país amigo da Itália desde sempre”, donde o espanto e a repulsa. A Itália não esperava por esta atitude do Brasil, “daí a reação tão grave”, esclarece Frattini.
Aprovada, diga-se, de um lado a outro do cenário político italiano. Walter Veltroni, comunista histórico das levas mais recentes e líder do Partido Democrático, de oposição a Berlusconi e herdeiro do PCI, propõe uma “moção comum” do Parlamento “porque, neste caso, o país deve ficar unido”.
OS FINALMENTES. Nos próprios corredores do Planalto admite-se a possibilidade de que o Supremo venha a declarar inconstitucional a decisão do ministro da Justiça. Neste caso, a questão teria de ser administrada diretamente pelo presidente da República. Lula seria capaz de voltar atrás? A considerar os eventos que se seguiram ao anúncio da extradição negada, CartaCapital tem sérias dúvidas a respeito.
Um caminho a ser seguido pela Itália, o de recurso à Corte de Haia, já está a ser definido, e o tribunal internacional seria solicitado por “violação dos direitos humanos”, fórmula perigosa porque, se aceita, não deixaria de criar sérios embaraços para a política exterior brasileira. A Corte, faz dois anos, manifestou-se a favor da extradição.
Não nos tira o sono o cancelamento da viagem do premier Berlusconi ao Brasil, antes agendada para março próximo. Pesam mais as considerações da The Economist, na sua última edição. Diz o semanário mais influente do mundo que as razões apresentadas “para proteger Battisti” não convencem e define como “anacrônica” a tradição do País de dar asilo a figuras contraditórias como Alfredo Stroessner e Oliverio Medina.
Enfim, toca em um ponto que coincide com o pensamento de CartaCapital: como é possível que o governo abrigue um ex-terrorista, e tanto mais alguém que cometeu seus crimes à sombra de um disfarce ideológico, enquanto teme punir os torturadores do Terror de Estado gerado pela ditadura?
Permanece o mistério: por que o Brasil negou a extradição? Arriscamos um palpite: Battisti serve a uma manobra para recompactar o PT, estilhaçado por refregas internas, recentes e nem tanto, na perspectiva das eleições de 2010.
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