Tornou-se lugar comum dizer que o AI-5 significou um golpe dentro do golpe e abriu caminho para os anos de chumbo da ditadura militar. É a verdade.
Afinal, se para derrubar o presidente João Goulart havia unidade entre os militares golpistas, não havia consenso entre eles sobre o que fazer depois de afastado “o perigo de uma república sindicalista”.
Uns, como Castello Branco, queriam a volta a um regime civil em prazo não muito longo. Seu objetivo era, retirando os militares da linha de frente, marchar para uma democracia restritiva, com “salvaguardas” que impedissem avanços no caminho de reformas democráticas e sociais mais de fundo.
Outros, da autodenominada “linha dura”, desejavam estender no tempo o regime recém-implantado e aprofundar seu caráter ditatorial e suas características mais brutais.
A edição do AI-5 coroou a vitória da extrema-direita nessa disputa. Quase tão pueril quanto culpar o inexpressivo discurso de Márcio Moreira Alves na Câmara pelo endurecimento do regime seria responsabilizar a resistência estudantil ou as incipientes ações de grupos armados que começavam a se organizar para combater a ditadura. O fechamento teve sua origem dentro do próprio regime.
Culpar os que resistiram à ditadura pelo advento do AI-5 e dos anos de chumbo equivale a responsabilizar os maquis pelas atrocidades das tropas nazistas na França ocupada.
Dito isto, dois aspectos relacionados com a ditadura e o AI-5, em particular, devem ser lembrados.
Primeiro: hoje, quando a questão da tortura volta à cena, por conta do debate acerca da impunidade ou não dos torturadores, é preciso destacar a relação direta do AI-5 com a institucionalização da tortura na ditadura. Ao proibir a concessão de habeas-corpus para presos políticos, o regime deu carta branca aos carrascos. Uma vez presa, a pessoa podia ficar incomunicável pelo tempo e nas condições em que o aparelho repressivo determinasse.
Em muitos casos – e nem vamos falar aqui dos “desaparecidos” políticos - as prisões sequer eram legalizadas imediatamente. Dou meu próprio exemplo: fui preso em 21 de abril de 1970. Mas durante 20 dias permaneci no limbo; a oficialização da prisão deu-se apenas em 11 de maio. E, depois, continuei incomunicável e sujeito a todo tipo de violência no DOI-Codi. Mas aí, pelo menos, já existia oficialmente como preso.
Por isso, nunca é demais repetir: a transformação da tortura em política de Estado só foi possível com o AI-5.
A segunda questão a ser destacada é que a implantação da ditadura e, posteriormente, a edição do AI-5 não foram obra exclusiva dos militares. Que ninguém se iluda: a ditadura militar teve apoio em parcelas da sociedade civil.
Aliás, não é difícil ver que não poderia ser de outro modo. Pela sua dimensão e complexidade, uma sociedade como a brasileira não viveria 21 anos sob uma ditadura se esta não tivesse um mínimo de sustentação fora dos quartéis.
O apoio ao golpe, à ditadura e ao AI-5 na sociedade civil foi majoritário? Certamente não. Mas existiu.
É importante ressaltar este fato, porque, da forma como a história às vezes é contada, parece que os militares eram como marcianos, ditando regras a um país que, todo ele, aspirava voltar à democracia. Não foi bem assim.
O grande capital, tanto nacional como estrangeiro, o latifúndio e segmentos das camadas médias (estes últimos, é verdade, de forma mais oscilante) tiveram expressivos ganhos materiais e apoiaram decisivamente a ditadura.
Recentes reportagens publicadas na grande imprensa desvendando apoios civis a atos dos militares são positivas – afinal, sempre é bom um país se reencontrar com a verdadeira história. Nelas vê-se que, até mesmo entidades respeitadas por sua tradição democrática – como OAB e ABI – fraquejaram em certos momentos e estenderam a mão aos ditadores.
Mas se é bom destapar este baú, está faltando algo: esclarecer também o papel da grande imprensa. Em sua maior parte, ela apoiou o golpe de 64 e, depois, o AI-5. Aliás, no caso deste último, o velho JB foi uma honrosa exceção, com uma primeira página histórica, editada por Alberto Dines, no dia seguinte ao AI-5. Ela lembrava que a véspera tinha sido o Dia dos Cegos e apresentava a previsão meteorológica: “tempo negro” e “temperatura sufocante”.
Mas – é preciso que se diga - na grande imprensa tal comportamento foi exceção. Por isso, lembrar os editoriais dos maiores jornais do país em 14 de dezembro de 1968, o dia seguinte ao AI-5, certamente contribuiria também para a memória nacional.
Cid Benjamin é jornalista
Afinal, se para derrubar o presidente João Goulart havia unidade entre os militares golpistas, não havia consenso entre eles sobre o que fazer depois de afastado “o perigo de uma república sindicalista”.
Uns, como Castello Branco, queriam a volta a um regime civil em prazo não muito longo. Seu objetivo era, retirando os militares da linha de frente, marchar para uma democracia restritiva, com “salvaguardas” que impedissem avanços no caminho de reformas democráticas e sociais mais de fundo.
Outros, da autodenominada “linha dura”, desejavam estender no tempo o regime recém-implantado e aprofundar seu caráter ditatorial e suas características mais brutais.
A edição do AI-5 coroou a vitória da extrema-direita nessa disputa. Quase tão pueril quanto culpar o inexpressivo discurso de Márcio Moreira Alves na Câmara pelo endurecimento do regime seria responsabilizar a resistência estudantil ou as incipientes ações de grupos armados que começavam a se organizar para combater a ditadura. O fechamento teve sua origem dentro do próprio regime.
Culpar os que resistiram à ditadura pelo advento do AI-5 e dos anos de chumbo equivale a responsabilizar os maquis pelas atrocidades das tropas nazistas na França ocupada.
Dito isto, dois aspectos relacionados com a ditadura e o AI-5, em particular, devem ser lembrados.
Primeiro: hoje, quando a questão da tortura volta à cena, por conta do debate acerca da impunidade ou não dos torturadores, é preciso destacar a relação direta do AI-5 com a institucionalização da tortura na ditadura. Ao proibir a concessão de habeas-corpus para presos políticos, o regime deu carta branca aos carrascos. Uma vez presa, a pessoa podia ficar incomunicável pelo tempo e nas condições em que o aparelho repressivo determinasse.
Em muitos casos – e nem vamos falar aqui dos “desaparecidos” políticos - as prisões sequer eram legalizadas imediatamente. Dou meu próprio exemplo: fui preso em 21 de abril de 1970. Mas durante 20 dias permaneci no limbo; a oficialização da prisão deu-se apenas em 11 de maio. E, depois, continuei incomunicável e sujeito a todo tipo de violência no DOI-Codi. Mas aí, pelo menos, já existia oficialmente como preso.
Por isso, nunca é demais repetir: a transformação da tortura em política de Estado só foi possível com o AI-5.
A segunda questão a ser destacada é que a implantação da ditadura e, posteriormente, a edição do AI-5 não foram obra exclusiva dos militares. Que ninguém se iluda: a ditadura militar teve apoio em parcelas da sociedade civil.
Aliás, não é difícil ver que não poderia ser de outro modo. Pela sua dimensão e complexidade, uma sociedade como a brasileira não viveria 21 anos sob uma ditadura se esta não tivesse um mínimo de sustentação fora dos quartéis.
O apoio ao golpe, à ditadura e ao AI-5 na sociedade civil foi majoritário? Certamente não. Mas existiu.
É importante ressaltar este fato, porque, da forma como a história às vezes é contada, parece que os militares eram como marcianos, ditando regras a um país que, todo ele, aspirava voltar à democracia. Não foi bem assim.
O grande capital, tanto nacional como estrangeiro, o latifúndio e segmentos das camadas médias (estes últimos, é verdade, de forma mais oscilante) tiveram expressivos ganhos materiais e apoiaram decisivamente a ditadura.
Recentes reportagens publicadas na grande imprensa desvendando apoios civis a atos dos militares são positivas – afinal, sempre é bom um país se reencontrar com a verdadeira história. Nelas vê-se que, até mesmo entidades respeitadas por sua tradição democrática – como OAB e ABI – fraquejaram em certos momentos e estenderam a mão aos ditadores.
Mas se é bom destapar este baú, está faltando algo: esclarecer também o papel da grande imprensa. Em sua maior parte, ela apoiou o golpe de 64 e, depois, o AI-5. Aliás, no caso deste último, o velho JB foi uma honrosa exceção, com uma primeira página histórica, editada por Alberto Dines, no dia seguinte ao AI-5. Ela lembrava que a véspera tinha sido o Dia dos Cegos e apresentava a previsão meteorológica: “tempo negro” e “temperatura sufocante”.
Mas – é preciso que se diga - na grande imprensa tal comportamento foi exceção. Por isso, lembrar os editoriais dos maiores jornais do país em 14 de dezembro de 1968, o dia seguinte ao AI-5, certamente contribuiria também para a memória nacional.
Cid Benjamin é jornalista
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