1964 - 40 anos depois
Se a esquerda tivesse vencido, o regime seria menos cruel?
OESP - publicado em março de 2004
Eu tinha apenas oito anos de idade. Não posso, portanto, dar um testemunho sobre aqueles dias. Mal sabia o sentido da palavra política. Sou um dos filhos da geração do silêncio. Meu único contato direto com o regime se deu em 1977, quando, estudante universitário, ao participar de uma passeata, fui detido, apanhei como criança da polícia e pernoitei no DEOPS, respondendo a interrogatórios.
Embora não tenha vivenciado pessoalmente os fatos daquela época, já li e reli pilha de livros e depoimentos contra e a favor daquele movimento. Tive a paciência, inclusive, de recorrer à Biblioteca Municipal para, consultando os jornais e revistas da época, ter uma noção mais vívida de tudo o que se passou. Minha visão sobre o evento é, portanto, isenta e desapaixonada.
Enquanto durou foi denominado de revolução. Depois que terminou passou a ser intitulado tão somente de golpe. Mais apropriado, a meu ver seria defini-lo como "movimento de 1964". Não foi uma revolução autêntica, pois não levantou as massas. Mas também não foi apenas um golpe, porque uma razoável parcela da população brasileira o apoiou.
Durante vinte anos o Brasil viveu um regime político autoritário, lastreado no poder emanado dos quartéis. Um "regime militar"? Não chegaria a tanto. Com exceção dos presidentes, todos eles generais de exército, os sucessivos ministérios foram ocupados predominantemente por civis. Os militares, curiosamente, tinham uma paradoxal obsessão pela legalidade. Enquanto rasgavam a constituição, por um lado, preocupavam-se, por outro, em garantir o embasamento jurídico e institucional de todos os seus atos. O princípio de revezamento no poder foi escrupulosamente mantido e o Congresso - embora expurgado de seus quadros mais combativos, permaneceu aberto a maior parte do período. Os atos arbitrários foram legitimados com a edição de uma nova Constituição e, mesmo o ato institucional número 5 - que, na prática, instaurou uma ditadura - foi cuidadosamente justificado com princípios jurídicos. Durante todo o ciclo militar em nenhum momento se pretendeu que ele viesse a durar tantos anos. Desde Castelo Branco, o primeiro general presidente, a idéia predominante nas elites militares era a de que o regime de exceção durasse apenas o suficiente para que fossem implementadas algumas reformas básicas e, feito isso, o poder seria devolvido aos civis.
Obviamente, no que tange a direitos humanos e valores democráticos, estas duas décadas foram absolutamente condenáveis. Mas a História é uma senhora caprichosa. Ironicamente, foi durante a presidência de Médici - o período mais repressivo e sanguinário do ciclo - que o governo alcançou índices máximos de prestígio e apoio popular, como raras vezes ocorrera em toda a Era Republicana. Outro paradoxo: nunca antes - como naqueles terríveis anos - a auto-estima dos brasileiros esteve tão elevada.
Não, não há como justificar aquele regime, em função de todos os males que causou à democracia e aos direitos humanos. Mas, se nosso objetivo é extrair lições da História, temos que estudá-la em todas as suas inúmeras contradições. Um delas é a de que, durante a maior parte do ciclo autoritário, nunca a governança do país foi exercida de forma tão eficiente. Durante aqueles anos de chumbo, a economia brasileira crescia a taxas médias de mais de 10% ao ano, as maiores de todo o planeta e jamais igualadas pelos governos democráticos que vieram a seguir. Se, em 1964, a nossa economia estava por volta do quadragésimo lugar no ranking mundial, 20 anos depois, ostentávamos o oitavo PIB do planeta (Atualmente não passamos do 12º ou 15º lugar...).
As elites militares - e as civis a elas associadas - desde a criação da Escola Superior de Guerra, em 1949 - vinham meticulosamente elaborando um projeto de governo, para o país. E, em 1964, ao invés de uma breve intervenção, os "esguianos" entenderam que era chegado o momento de implementá-lo. O objetivo era alcançar uma forma avançada de capitalismo.
Durante o governo de Castelo Branco, (1964-67) promoveu-se uma radical modernização de todo o nosso sistema econômico, financeiro e tributário, o que, entre outras coisas, resgatou a capacidade de investimento do Estado.
Com isso, criaram-se as condições para que, nos governos de Costa e Silva e Médici (1967-1974) se desencadeasse o fantástico "Milagre Brasileiro". O governo posterior de Geisel (1974-79), mesmo enfrentando as duas crises do petróleo, persistiu na política desenvolvimentista e, através do endividamento externo e de empresas estatais, logrou concluir a matriz industrial do país. Gostando ou não, devemos a ele o fato de o Brasil ter hoje um parque industrial completo. Nenhum outro país da América Latina logrou tal feito.
A pergunta que fica é a seguinte: será que valeu a pena?
1964 foi um "annus horribilis". Não por causa do movimento dos generais, mas porque, com o impasse criado, qualquer que fosse o desfecho, ele seria necessariamente trágico.
Chegou um momento em que todos, indistintamente, ansiavam por um golpe. Brizola, à esquerda, pregava o fechamento do Congresso para que se implantassem as reformas de base. Lacerda, à direita, pregava que o Congresso fosse fechado para viabilizar as reformas modernizantes. A direita venceu.
Indagação pertinente: se as esquerdas tivessem vencido, o regime subseqüente seria menos cruel ou autoritário? Com certeza, não.
Vale lembrar que as esquerdas de então não eram "light" como hoje. Vivia-se o apogeu da Guerra Fria e o vezo stalinista ainda predominava. Direitos humanos não constavam de suas bandeiras e pregava-se abertamente a revolução armada, a supressão da burguesia e a ditadura do proletariado...
A democracia, em 1964, não acabou por acaso. Simplesmente não havia uma única voz que a defendesse. É uma antiga e recorrente lição da História: os povos que perdem a Liberdade pela força, pela força haverão de recuperá-la. Mas aqueles que a perdem por descaso, é muito difícil que voltem a ser livres.
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João Mellão Neto é jornalista
Se a esquerda tivesse vencido, o regime seria menos cruel?
OESP - publicado em março de 2004
Eu tinha apenas oito anos de idade. Não posso, portanto, dar um testemunho sobre aqueles dias. Mal sabia o sentido da palavra política. Sou um dos filhos da geração do silêncio. Meu único contato direto com o regime se deu em 1977, quando, estudante universitário, ao participar de uma passeata, fui detido, apanhei como criança da polícia e pernoitei no DEOPS, respondendo a interrogatórios.
Embora não tenha vivenciado pessoalmente os fatos daquela época, já li e reli pilha de livros e depoimentos contra e a favor daquele movimento. Tive a paciência, inclusive, de recorrer à Biblioteca Municipal para, consultando os jornais e revistas da época, ter uma noção mais vívida de tudo o que se passou. Minha visão sobre o evento é, portanto, isenta e desapaixonada.
Enquanto durou foi denominado de revolução. Depois que terminou passou a ser intitulado tão somente de golpe. Mais apropriado, a meu ver seria defini-lo como "movimento de 1964". Não foi uma revolução autêntica, pois não levantou as massas. Mas também não foi apenas um golpe, porque uma razoável parcela da população brasileira o apoiou.
Durante vinte anos o Brasil viveu um regime político autoritário, lastreado no poder emanado dos quartéis. Um "regime militar"? Não chegaria a tanto. Com exceção dos presidentes, todos eles generais de exército, os sucessivos ministérios foram ocupados predominantemente por civis. Os militares, curiosamente, tinham uma paradoxal obsessão pela legalidade. Enquanto rasgavam a constituição, por um lado, preocupavam-se, por outro, em garantir o embasamento jurídico e institucional de todos os seus atos. O princípio de revezamento no poder foi escrupulosamente mantido e o Congresso - embora expurgado de seus quadros mais combativos, permaneceu aberto a maior parte do período. Os atos arbitrários foram legitimados com a edição de uma nova Constituição e, mesmo o ato institucional número 5 - que, na prática, instaurou uma ditadura - foi cuidadosamente justificado com princípios jurídicos. Durante todo o ciclo militar em nenhum momento se pretendeu que ele viesse a durar tantos anos. Desde Castelo Branco, o primeiro general presidente, a idéia predominante nas elites militares era a de que o regime de exceção durasse apenas o suficiente para que fossem implementadas algumas reformas básicas e, feito isso, o poder seria devolvido aos civis.
Obviamente, no que tange a direitos humanos e valores democráticos, estas duas décadas foram absolutamente condenáveis. Mas a História é uma senhora caprichosa. Ironicamente, foi durante a presidência de Médici - o período mais repressivo e sanguinário do ciclo - que o governo alcançou índices máximos de prestígio e apoio popular, como raras vezes ocorrera em toda a Era Republicana. Outro paradoxo: nunca antes - como naqueles terríveis anos - a auto-estima dos brasileiros esteve tão elevada.
Não, não há como justificar aquele regime, em função de todos os males que causou à democracia e aos direitos humanos. Mas, se nosso objetivo é extrair lições da História, temos que estudá-la em todas as suas inúmeras contradições. Um delas é a de que, durante a maior parte do ciclo autoritário, nunca a governança do país foi exercida de forma tão eficiente. Durante aqueles anos de chumbo, a economia brasileira crescia a taxas médias de mais de 10% ao ano, as maiores de todo o planeta e jamais igualadas pelos governos democráticos que vieram a seguir. Se, em 1964, a nossa economia estava por volta do quadragésimo lugar no ranking mundial, 20 anos depois, ostentávamos o oitavo PIB do planeta (Atualmente não passamos do 12º ou 15º lugar...).
As elites militares - e as civis a elas associadas - desde a criação da Escola Superior de Guerra, em 1949 - vinham meticulosamente elaborando um projeto de governo, para o país. E, em 1964, ao invés de uma breve intervenção, os "esguianos" entenderam que era chegado o momento de implementá-lo. O objetivo era alcançar uma forma avançada de capitalismo.
Durante o governo de Castelo Branco, (1964-67) promoveu-se uma radical modernização de todo o nosso sistema econômico, financeiro e tributário, o que, entre outras coisas, resgatou a capacidade de investimento do Estado.
Com isso, criaram-se as condições para que, nos governos de Costa e Silva e Médici (1967-1974) se desencadeasse o fantástico "Milagre Brasileiro". O governo posterior de Geisel (1974-79), mesmo enfrentando as duas crises do petróleo, persistiu na política desenvolvimentista e, através do endividamento externo e de empresas estatais, logrou concluir a matriz industrial do país. Gostando ou não, devemos a ele o fato de o Brasil ter hoje um parque industrial completo. Nenhum outro país da América Latina logrou tal feito.
A pergunta que fica é a seguinte: será que valeu a pena?
1964 foi um "annus horribilis". Não por causa do movimento dos generais, mas porque, com o impasse criado, qualquer que fosse o desfecho, ele seria necessariamente trágico.
Chegou um momento em que todos, indistintamente, ansiavam por um golpe. Brizola, à esquerda, pregava o fechamento do Congresso para que se implantassem as reformas de base. Lacerda, à direita, pregava que o Congresso fosse fechado para viabilizar as reformas modernizantes. A direita venceu.
Indagação pertinente: se as esquerdas tivessem vencido, o regime subseqüente seria menos cruel ou autoritário? Com certeza, não.
Vale lembrar que as esquerdas de então não eram "light" como hoje. Vivia-se o apogeu da Guerra Fria e o vezo stalinista ainda predominava. Direitos humanos não constavam de suas bandeiras e pregava-se abertamente a revolução armada, a supressão da burguesia e a ditadura do proletariado...
A democracia, em 1964, não acabou por acaso. Simplesmente não havia uma única voz que a defendesse. É uma antiga e recorrente lição da História: os povos que perdem a Liberdade pela força, pela força haverão de recuperá-la. Mas aqueles que a perdem por descaso, é muito difícil que voltem a ser livres.
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João Mellão Neto é jornalista
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