CARTA AOS SUICIDAS
SÍSIFO - filho de Éolo e Anarete. Fundou Corinto, onde reinou. Viu Júpiter passar por Corinto conduzindo Egina e contou o fato a Asopo, pai da jovem. Como castigo, Júpiter enviou-lhe a morte. Sísifo entretanto, aprisionou-a, impedindo-a de cumprir sua missão, mas, obrigado por Júpiter, libertou-a e seguiu-a aos infernos. Antes de partir, pediu a sua mulher que não o enterrasse. Chegado ao reino dos mortos, solicitou permissão para voltar à terra e castigar a esposa pelo pretenso ato de impiedade. Plutão consentiu, mas Sísifo não voltou, como havia prometido. Para que não fugisse, foi condenado a uma tarefa: devia rolar uma enorme rocha por uma escarpa. Cada vez que atingia o cume, a rocha caia forçando Sísifo a recomeçar o trabalho. O eterno recomeço presume que houve um fim. Mas o fim não se anunciou, o fim não findou. O fim fingiu, transformou-se, se extraviou entre nós para seguir. Sentimos isto pelo peso das manhãs que se dividem entre o amor e o tédio, entre o álcool e os poemas, entre as promessas de futuro e o passado sempre refeito. Para nós que somos jovens, a verdade é que a águia está em nosso fígado e a pedra em nosso ombro. E é verdade que há desassossego e há um constrangimento amadurecido se entranhando onde o vento voa, sobre o chão que é comum a todos e fervilha. O sol em nós revira e a escuridão não cede. Os panos estão frios e o que estava embaixo deles veio à tona. E a tinta em nosso rosto diz que não houve fim e que os nossos inimigos estão no poder. E vem a lua brilhar nossas unhas de arranhar amuradas, brilhar nossas pernas e nossos pés cor de estrelas. Não estamos, mesmo assim, mais cansados. Saltamos mais uma vez dentro do olho veloz do descentrado ciclone deste fim de século, perseguindo a pegada que deixamos em Petrogrado, Praga e Paris, reinventando nossos caminhos. E vamos fazendo barulho já que nos coube sacudir o pó no imenso tapete da história e varrer o charco frio até onde os olhos alcançam. Damos a mão, em meio à noite, aos pesadelos sem reparos e vamos para junto da pilha dolorosa dos remorsos e dos medos e descemos as escadas que nos levam ao ainda mais escuro, mais sem ar, ao mais instantâneo dos desabrigos: ao crítico desespero que desce da lágrima e se levanta para o assombro. São milhões os que não comem. São milhões os que não podem saber. São milhões os que não sabem, de fato o que está se passando enquanto os políticos tradicionais disseminam o desencanto. E mesmo por isto, é preciso ordenhar esta pedra oca e suas gêmeas tetas que nos são oferecidas antes e depois do túnel, para que algo fisgue nossa consciência crispada e um arrepio irrigue nossa pele quando formos vistos caminhando pela pátria corroída. É nos seus lábios que tocamos, entre a ferrugem da doce e verde saliva brasileira; e são seus olhos que fechamos, hirtos e trêmulos, quando tateamos nas paredes do labirinto oficial. Assim, tudo em nós indica que já basta. A pedra da ordenha, aquela que dá leite talhado e salobro, é a que carregamos às costas como Sísifo. Tudo o que tocamos, derramamos. E o que derramamos não tem remédio e nem remediado está. Pisoteamos não apenas no que resta - nas migalhas dos nosso sonhos e na utopia tênue - mas na possibilidade também dos nossos restos ainda restarem. Da nossa horda, da nossa tribo, surgiu a pele do cordeiro e o corpo do lobo alucinado. Em sua mirada estão os olhos que nos cabem olhar, para entender que o mito da nossa juventude vai transgredir noite à dentro. E vai beber da água proibida. E vai cheirar o céu no espelho. Para encurtar as distâncias enquanto as pedras continuam rolando. É a fome do corpo e do espírito que está nos rondando e a ela se deve uma resposta que todos os calendários rodando não conseguiram dar. Por conta desta fome de sentido, muitos de nós permitiram que seus dias e noites passassem como folhas em branco. Nó na garganta da noite, de braço com o desterro, soluçamos tantas vezes acuados pela dúvida: devemos sentar junto às folhas da relva de Whitmam? Devemos povoar as avenidas? E os cílios cintilantes de nossas amadas, irão dominar nossa fera sem sono? Os que perderam sua juventude, já não se colocam dúvidas. Caíram em uma armadilha aconchegante onde não queriam estar e de onde não podem mais sair. O malogro o suplantou. A mediocridade os nivelou. Olhamos para eles, os burocratas, e vemos que, de perto, eles são normais. Foi por isto que Kurt Cobain cedeu à tentação da pólvora e tudo o que ela impulsiona. Seus acordes de guitarra recortavam o conformismo e não cederam aos padrões da mídia. Kurt Cobain não queria ser transformado em um sonâmbulo e sua estrada recém se anunciava pela poeira de sua voz. A pedra da vida que se ordenha pesou demais sobre seus ombros de Sísifo exaurido. Todos nós levamos às costas, por nós e por todos os que se despedem e se anunciam, o pó, a caliça, o ferimento caloso da experiência, prosseguida e perseguida, sem sabermos por quanto tempo. Desejamos durar enquanto durar a águia e a pedra e isto é só um desejo. Mas o que é maior ou menor que um desejo? Todos nós carregamos os destinos esquecidos, o lamento dos atordoados pássaros abatidos na madrugada, o ranger de dentes nos manicômios, a sinfonia dos ossos nos cárceres, o choro dos homens e das mulheres. Lutar contra esta herança já é o bastante, se somos jovens. Já é um sentido, se temos fome. Quando o poeta russo Sierguéi lessiênin se matou, escreveu com o sangue dos pulsos o poema "Até logo, companheiro". Na última estrofe ele diz: "Adeus amigo, sem mãos nem palavras. /Não faças um sobrolho pensativo/ Se morrer, nesta vida, não é novo/ Tampouco há novidade em estar vivo/." Maiakovsky lhe respondeu dizendo: "É preciso arrancar alegria ao futuro /Nesta vida, morrer não é difícil./ O difícil é a vida e seu oficio." Talvez, para que seja possível prosseguir vivendo, devamos unir os Sísifos de todas as galeras. Estar no PT, lutar por um mundo melhor, compartilhar com tantos outros pulsos o desejo de rolar esta pedra até o cume, para recomeçar tantas vezes quantas forem necessárias, é só uma forma de inventar a vida, de atribuir a ela um sentido radicalmente humano. A todos nós, cabe arrancar a alegriados dias que virão, tornando-a presente e concreta, como a névoa de um bar, como o orvalho sobre a relva, como a primavera em nosso olhos.
Marcos Rolim - 1998
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