O lulismo e o dilmismo
Jornal do Brasil
Jornal do Brasil
Gaudêncio Torquato
Ao entrar no nono mês, o governo Dilma deixa transparecer os primeiros traços de sua cara. Que permite divisar contornos mais homogêneos e menos oblíquos que a do ciclo Lula. As diferenças não se devem a razões de natureza política e nem de longe se abrigam na discutível hipótese, de viés conspirador, de que as criaturas, mais cedo ou mais tarde, acabam se rebelando contra o criador. Quem apostar na ideia de que um dia a criatura Dilma tomará rumos diferentes do criador Luiz Inácio perderá feio. Os dois atores fazem parte do mesmo enredo. E até se completam, pois o que sobra nele falta nela, e vice-versa. Exemplo: carisma e experimentação, de um lado, apuro técnico e organicidade, de outro. Um distanciamento, mesmo ocasional, traria perda para ambos. A configuração mais retilínea da atual administração resulta da identidade da presidente, da qual se extrai a ênfase em vetores como planejamento, controles e cobranças, análise de performances, calibragem da máquina, substituição de peças e sintonia fina nos programas. O dilmismo, como se pode designar tal modelagem, terá o condão de lapidar o lulismo, expurgar excessos, preencher reentrâncias, aplainar caminhos.
A imagem do "pente-fino" cai bem nas operações que o lulismo desenvolveu em diversas frentes. Convém definir o lulismo: um ajuntamento de programas, alguns de argamassa frouxa, implantados sob o escudo do real estável, que geraram um "novo milagre brasileiro", expressão de Rudá Ricci para explicar o ingresso de 30 milhões de pessoas no meio da pirâmide. Ainda conforme o sociólogo, "o lulismo teria se formado a partir do encontro com as classes menos abastadas do país, que rejeitam ideologias". E, claro, trombeteado por um líder que, no dizer de José Nêumanne Pinto, em seu livro O que sei de Lula, "é e sempre foi, sobretudo, um manipulador de emoções da massa". Sendo assim, diferencia-se do petismo, porquanto este tinha como foco as classes trabalhadoras organizadas em estruturas tradicionais e aquele abre os braços a contingentes desorganizados, desideologizados e pragmáticos. A análise do ciclo Lula permite distinguir alta dose de experimentalismo, como se constata nas idas e vindas que marcaram o início do Fome Zero. E mesmo após arrumar as coordenadas na área social, a partir da integração de projetos da era FHC, que redundou no símbolo da redenção de milhões de brasileiros, o Bolsa Família, o lulismo deixou, ao fim de oito anos de império de Luiz Inácio, a impressão de larga defasagem entre discurso e prática. Espaços como os de infraestrutura e educação registraram resíduos de improvisação, como se vê nas planilhas do PAC ou em livros didáticos editados sob o selo de patrulhas que ousaram apresentar nova versão para a História do país.
Aduz-se, portanto, que o dilmismo veste o figurino adequado ao momento. Primeiro, por mostrar disposição de cortar gorduras acumuladas no corpo administrativo, tarefa complexa, diga-se, porque decisão dessa natureza contraria interesses da base partidária. Confira-se, a título de exemplificação, a assepsia que a presidente tenta realizar nos recônditos ministeriais. De forma lenta e gradual, a chefe do governo desobstrui dutos congestionados por sujeira, formando novas composições com quadros técnicos. O estilo Dilma incomoda aliados? Sem dúvida. Os parceiros não lhe dão o troco, ouve-se à boca pequena, por sentirem que manobra contrária à limpeza seria um bumerangue. Andar na contramão da faxina é defender sujeira. Um risco para a imagem pública do representante do povo.
A condição de mulher, ademais, ajuda-a a empreender o mutirão de depuração, eis que projeta os valores encarnados pela dona de casa: zelo, preocupação, cuidados com a organização do lar. Se parcelas governistas ameaçam ir para o confronto, juntando-se à oposição, como indica a votação da Emenda 29 e da PEC 300, o governo brande o argumento da crise que nos ameaça. No planeta quase em chamas, onde nações poderosas dão sinais cada vez mais próximos de calote em credores, o Brasil não se pode dar ao luxo de gastança desbragada, como se via na era Lula. Querem mais dinheiro para a saúde? Indiquem a fonte, diz a presidente. Eis mais um elemento de diferenciação entre o ontem e o hoje. Luiz Inácio era um ás no campo da articulação política. Escudava-se na conversa ao pé do ouvido, no conchavo, na capacidade de convencimento. Lábia declamada com o mel do carisma é puro acalento. Tranquilizante. Já o estilo duro, direto, conciso de Dilma gera temor. É inegável, porém, que o país não aguentaria mais uma jornada de experimentações, andando em curvas, algumas bem fechadas, subindo em palanques no interregno de pleitos, escancarando cofres, expandindo ao infinito os gastos públicos. Se o dilmismo aperfeiçoar a rota da governança sob a marca da responsabilidade, ganhará o reconhecimento da sociedade.
Neste ponto, convém pinçar mais um traço relevante na metodologia da atual governante: a altanaria, a capacidade de não se deixar envolver pela competição interpartidária quando estão em jogo questões de absoluta prioridade. O programa Brasil sem Miséria, que complementa e ajusta a rede social tecida no ciclo anterior, foi lançado no Palácio dos Bandeirantes, ao lado do governador Alckmin e do ex-presidente Fernando Henrique. Significado: a vida pátria deve ser uma obra comum. Compartilhada por gregos e troianos. Gestos como esse abrem a esperança de que o dilmismo faça muito bem ao país.
Ao entrar no nono mês, o governo Dilma deixa transparecer os primeiros traços de sua cara. Que permite divisar contornos mais homogêneos e menos oblíquos que a do ciclo Lula. As diferenças não se devem a razões de natureza política e nem de longe se abrigam na discutível hipótese, de viés conspirador, de que as criaturas, mais cedo ou mais tarde, acabam se rebelando contra o criador. Quem apostar na ideia de que um dia a criatura Dilma tomará rumos diferentes do criador Luiz Inácio perderá feio. Os dois atores fazem parte do mesmo enredo. E até se completam, pois o que sobra nele falta nela, e vice-versa. Exemplo: carisma e experimentação, de um lado, apuro técnico e organicidade, de outro. Um distanciamento, mesmo ocasional, traria perda para ambos. A configuração mais retilínea da atual administração resulta da identidade da presidente, da qual se extrai a ênfase em vetores como planejamento, controles e cobranças, análise de performances, calibragem da máquina, substituição de peças e sintonia fina nos programas. O dilmismo, como se pode designar tal modelagem, terá o condão de lapidar o lulismo, expurgar excessos, preencher reentrâncias, aplainar caminhos.
A imagem do "pente-fino" cai bem nas operações que o lulismo desenvolveu em diversas frentes. Convém definir o lulismo: um ajuntamento de programas, alguns de argamassa frouxa, implantados sob o escudo do real estável, que geraram um "novo milagre brasileiro", expressão de Rudá Ricci para explicar o ingresso de 30 milhões de pessoas no meio da pirâmide. Ainda conforme o sociólogo, "o lulismo teria se formado a partir do encontro com as classes menos abastadas do país, que rejeitam ideologias". E, claro, trombeteado por um líder que, no dizer de José Nêumanne Pinto, em seu livro O que sei de Lula, "é e sempre foi, sobretudo, um manipulador de emoções da massa". Sendo assim, diferencia-se do petismo, porquanto este tinha como foco as classes trabalhadoras organizadas em estruturas tradicionais e aquele abre os braços a contingentes desorganizados, desideologizados e pragmáticos. A análise do ciclo Lula permite distinguir alta dose de experimentalismo, como se constata nas idas e vindas que marcaram o início do Fome Zero. E mesmo após arrumar as coordenadas na área social, a partir da integração de projetos da era FHC, que redundou no símbolo da redenção de milhões de brasileiros, o Bolsa Família, o lulismo deixou, ao fim de oito anos de império de Luiz Inácio, a impressão de larga defasagem entre discurso e prática. Espaços como os de infraestrutura e educação registraram resíduos de improvisação, como se vê nas planilhas do PAC ou em livros didáticos editados sob o selo de patrulhas que ousaram apresentar nova versão para a História do país.
Aduz-se, portanto, que o dilmismo veste o figurino adequado ao momento. Primeiro, por mostrar disposição de cortar gorduras acumuladas no corpo administrativo, tarefa complexa, diga-se, porque decisão dessa natureza contraria interesses da base partidária. Confira-se, a título de exemplificação, a assepsia que a presidente tenta realizar nos recônditos ministeriais. De forma lenta e gradual, a chefe do governo desobstrui dutos congestionados por sujeira, formando novas composições com quadros técnicos. O estilo Dilma incomoda aliados? Sem dúvida. Os parceiros não lhe dão o troco, ouve-se à boca pequena, por sentirem que manobra contrária à limpeza seria um bumerangue. Andar na contramão da faxina é defender sujeira. Um risco para a imagem pública do representante do povo.
A condição de mulher, ademais, ajuda-a a empreender o mutirão de depuração, eis que projeta os valores encarnados pela dona de casa: zelo, preocupação, cuidados com a organização do lar. Se parcelas governistas ameaçam ir para o confronto, juntando-se à oposição, como indica a votação da Emenda 29 e da PEC 300, o governo brande o argumento da crise que nos ameaça. No planeta quase em chamas, onde nações poderosas dão sinais cada vez mais próximos de calote em credores, o Brasil não se pode dar ao luxo de gastança desbragada, como se via na era Lula. Querem mais dinheiro para a saúde? Indiquem a fonte, diz a presidente. Eis mais um elemento de diferenciação entre o ontem e o hoje. Luiz Inácio era um ás no campo da articulação política. Escudava-se na conversa ao pé do ouvido, no conchavo, na capacidade de convencimento. Lábia declamada com o mel do carisma é puro acalento. Tranquilizante. Já o estilo duro, direto, conciso de Dilma gera temor. É inegável, porém, que o país não aguentaria mais uma jornada de experimentações, andando em curvas, algumas bem fechadas, subindo em palanques no interregno de pleitos, escancarando cofres, expandindo ao infinito os gastos públicos. Se o dilmismo aperfeiçoar a rota da governança sob a marca da responsabilidade, ganhará o reconhecimento da sociedade.
Neste ponto, convém pinçar mais um traço relevante na metodologia da atual governante: a altanaria, a capacidade de não se deixar envolver pela competição interpartidária quando estão em jogo questões de absoluta prioridade. O programa Brasil sem Miséria, que complementa e ajusta a rede social tecida no ciclo anterior, foi lançado no Palácio dos Bandeirantes, ao lado do governador Alckmin e do ex-presidente Fernando Henrique. Significado: a vida pátria deve ser uma obra comum. Compartilhada por gregos e troianos. Gestos como esse abrem a esperança de que o dilmismo faça muito bem ao país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário