O papel de Dilma
Merval Pereira, O Globo
Por duas vezes nesta semana ouvi referências sobre a teoria dos papéis, a primeira delas em uma palestra do antropólogo Roberto Da Matta que, partindo de seu trabalho sobre o espaço da casa e da rua na nossa realidade, analisou as questões éticas da sociedade brasileira à luz dos papéis sociais que desempenhamos.
Do que me interessa para efeito do raciocínio que pretendo desenvolver sobre os dias atuais na nossa política, Da Matta mostrou que nem sempre escolhemos nosso papel na sociedade, e muitas vezes ele é maior do que nós, os atores.
Outras, é apenas uma questão de circunstâncias que nos levam, os atores, a momentos ou ações nunca pensados.
Arrancou aplausos da platéia quando destacou a disfuncionalidade de nosso sistema político.
Dias depois, foi a vez do vice-presidente Michel Temer falar do mesmo assunto, citando uma experiência pessoal.
Ao ser escolhido pelo então governador Franco Montoro para assumir a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, ele, que era um professor de Direito, sentiu-se despreparado para a missão e só não desistiu por que viu uma entrevista na televisão do ator Gianfrancesco Guarnieri que havia assumido a Secretaria de Cultura.
Perguntado sobre como se sentia na nova função, tendo que usar terno e gravata e se submeter a certos cerimoniais oficiais, Guarnieri foi explícito na citação de Shakespeare, que Da Matta também usara na sua palestra: a vida é um palco e nós somos atores a quem cabia desempenhar o papel que ela nos reservara.
Da Matta ainda sublinhara um detalhe perverso dessa metáfora shakesperiana, a de que, ao contrário do teatro, na vida nós não sabemos o momento em que a cortina vai descer, dando fim à nossa representação.
Mas o que importa aqui é justamente esse aspecto da representação do papel social. O vice Michel Temer disse que a partir daquela declaração de Guarnieri decidiu que poderia “representar” o papel de Secretário de Segurança, e assumiu o cargo que o levaria a entrar para a política partidária a partir da Constituinte de 1988.
Tem representado bem o papel de político, se olharmos apenas os cargos e funções que seguidamente vem galgando.
Neste momento, por exemplo, exerce o papel de moderador na crise da base aliada, especialmente dentro de seu partido, o PMDB, que se encontra totalmente dividido em disputas internas e, principalmente, descontente com o comportamento da presidente Dilma Rousseff em relação às ambições de poder do partido.
Levada mais pelas dificuldades crescentes de relacionamento com sua base congressual do que pela afinidade com o vice-presidente, Dilma tem tido que recorrer mais e mais a seus conselhos e, a partir deles, tem se esforçado para se aproximar dos partidos que a apóiam, e não apenas do PMDB, representando um papel que recusava a assumir.
Neste ponto é que me interessa especular sobre o “papel” da presidente Dilma nesse processo tão rico quanto conturbado que estamos vivendo.
A faxina ética que agora rejeita como objetivo de seu governo foi um papel que exerceu durante a crise do Ministério dos Transportes apenas com fins marqueteiros, para saciar a sede de justiça da sociedade sem colocar em risco seu apoio político, visto que o PR é um partido pequeno que não tem como viver longe do poder?
Ou é um anseio verdadeiro que ela está sendo obrigada a relevar devido às pressões políticas internas, inclusive do próprio ex-presidente Lula?
O fato é que, assim como o combate à hiperinflação acabou dando resultado com o Plano Real por que a sociedade já estava esgotada por um processo histórico que prejudicava a todos, também o combate à hipercorrupção que assola historicamente o país parece estar chegando a um ponto de não retorno, mesmo que a Presidente dê mostras de que está prestes recuar, ou pelo menos quer dar uma parada estratégica no processo que desencadeou para tentar rearrumar sua base de apoio.
Chega a ser engraçado o comentário da Presidente Dilma sobre a reportagem da revista inglesa The Economist, que elogia seu combate à corrupção, mas prevê que ela terá problema políticos pela frente ao mexer na verdadeira casa de marimbondos da política brasileira.
Dilma se dignou a responder à reportagem em uma declaração pública – o que fala muito de nosso provincianismo – dizendo que os estrangeiros não conhecem “nossos usos e costumes”, e por isso acham que ela terá problemas com seus aliados.
Segundo sua versão, no papel de ingênua que não lhe cabe muito bem, mas que é obrigada a desempenhar, a presidente Dilma diz que seus aliados também não concordam com os malfeitos.
Ora, o que ela está combatendo, e a sociedade brasileira se mobiliza para apoiar, é justamente esses “usos e costumes”, o que Roberto da Matta chama de “ética dupla” brasileira.
Para o antropólogo, o nosso famoso “jeitinho” em querer apaziguar, a partir da idéia de que “todos têm razão”, representaria uma tentativa de manter a honra dos implicados ou, muitas vezes, expressa a impossibilidade de parâmetros quando “todos têm o rabo preso”.
Compaixão (para “os nossos”) e justiça (para “os outros”) formam a difícil dialética que constitui a ética como instrumento de gestão pública, critica o antropólogo.
É o que está acontecendo neste momento, em que o governo, mesmo depois de retirar de seu convívio diversas autoridades, e três Ministros de Estado, por denúncias graves de corrupção, tenta reabilitá-los de diversas maneiras, seja pedindo formalmente que o PR retorne à base aliada da qual se desligara “em protesto”, seja tentando mostrar que não existe nenhum projeto de limpeza ética, simplesmente por que todos da base aliada são éticos.
Tão éticos que indicam para comandar a comissão que estudará o novo Código Civil dois deputados que respondem a diversos processos no Supremo Tribunal Federal.
Além do mais, tanta sujeira para ser limpa significa que anteriormente houve quem deixasse sujar. E quem veio antes, e promete vir depois, é o ex-presidente Lula, seu líder e tutor.
Que papel a presidente Dilma escolherá para marcar sua passagem pela Presidência da República?
Merval Pereira, O Globo
Por duas vezes nesta semana ouvi referências sobre a teoria dos papéis, a primeira delas em uma palestra do antropólogo Roberto Da Matta que, partindo de seu trabalho sobre o espaço da casa e da rua na nossa realidade, analisou as questões éticas da sociedade brasileira à luz dos papéis sociais que desempenhamos.
Do que me interessa para efeito do raciocínio que pretendo desenvolver sobre os dias atuais na nossa política, Da Matta mostrou que nem sempre escolhemos nosso papel na sociedade, e muitas vezes ele é maior do que nós, os atores.
Outras, é apenas uma questão de circunstâncias que nos levam, os atores, a momentos ou ações nunca pensados.
Arrancou aplausos da platéia quando destacou a disfuncionalidade de nosso sistema político.
Dias depois, foi a vez do vice-presidente Michel Temer falar do mesmo assunto, citando uma experiência pessoal.
Ao ser escolhido pelo então governador Franco Montoro para assumir a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, ele, que era um professor de Direito, sentiu-se despreparado para a missão e só não desistiu por que viu uma entrevista na televisão do ator Gianfrancesco Guarnieri que havia assumido a Secretaria de Cultura.
Perguntado sobre como se sentia na nova função, tendo que usar terno e gravata e se submeter a certos cerimoniais oficiais, Guarnieri foi explícito na citação de Shakespeare, que Da Matta também usara na sua palestra: a vida é um palco e nós somos atores a quem cabia desempenhar o papel que ela nos reservara.
Da Matta ainda sublinhara um detalhe perverso dessa metáfora shakesperiana, a de que, ao contrário do teatro, na vida nós não sabemos o momento em que a cortina vai descer, dando fim à nossa representação.
Mas o que importa aqui é justamente esse aspecto da representação do papel social. O vice Michel Temer disse que a partir daquela declaração de Guarnieri decidiu que poderia “representar” o papel de Secretário de Segurança, e assumiu o cargo que o levaria a entrar para a política partidária a partir da Constituinte de 1988.
Tem representado bem o papel de político, se olharmos apenas os cargos e funções que seguidamente vem galgando.
Neste momento, por exemplo, exerce o papel de moderador na crise da base aliada, especialmente dentro de seu partido, o PMDB, que se encontra totalmente dividido em disputas internas e, principalmente, descontente com o comportamento da presidente Dilma Rousseff em relação às ambições de poder do partido.
Levada mais pelas dificuldades crescentes de relacionamento com sua base congressual do que pela afinidade com o vice-presidente, Dilma tem tido que recorrer mais e mais a seus conselhos e, a partir deles, tem se esforçado para se aproximar dos partidos que a apóiam, e não apenas do PMDB, representando um papel que recusava a assumir.
Neste ponto é que me interessa especular sobre o “papel” da presidente Dilma nesse processo tão rico quanto conturbado que estamos vivendo.
A faxina ética que agora rejeita como objetivo de seu governo foi um papel que exerceu durante a crise do Ministério dos Transportes apenas com fins marqueteiros, para saciar a sede de justiça da sociedade sem colocar em risco seu apoio político, visto que o PR é um partido pequeno que não tem como viver longe do poder?
Ou é um anseio verdadeiro que ela está sendo obrigada a relevar devido às pressões políticas internas, inclusive do próprio ex-presidente Lula?
O fato é que, assim como o combate à hiperinflação acabou dando resultado com o Plano Real por que a sociedade já estava esgotada por um processo histórico que prejudicava a todos, também o combate à hipercorrupção que assola historicamente o país parece estar chegando a um ponto de não retorno, mesmo que a Presidente dê mostras de que está prestes recuar, ou pelo menos quer dar uma parada estratégica no processo que desencadeou para tentar rearrumar sua base de apoio.
Chega a ser engraçado o comentário da Presidente Dilma sobre a reportagem da revista inglesa The Economist, que elogia seu combate à corrupção, mas prevê que ela terá problema políticos pela frente ao mexer na verdadeira casa de marimbondos da política brasileira.
Dilma se dignou a responder à reportagem em uma declaração pública – o que fala muito de nosso provincianismo – dizendo que os estrangeiros não conhecem “nossos usos e costumes”, e por isso acham que ela terá problemas com seus aliados.
Segundo sua versão, no papel de ingênua que não lhe cabe muito bem, mas que é obrigada a desempenhar, a presidente Dilma diz que seus aliados também não concordam com os malfeitos.
Ora, o que ela está combatendo, e a sociedade brasileira se mobiliza para apoiar, é justamente esses “usos e costumes”, o que Roberto da Matta chama de “ética dupla” brasileira.
Para o antropólogo, o nosso famoso “jeitinho” em querer apaziguar, a partir da idéia de que “todos têm razão”, representaria uma tentativa de manter a honra dos implicados ou, muitas vezes, expressa a impossibilidade de parâmetros quando “todos têm o rabo preso”.
Compaixão (para “os nossos”) e justiça (para “os outros”) formam a difícil dialética que constitui a ética como instrumento de gestão pública, critica o antropólogo.
É o que está acontecendo neste momento, em que o governo, mesmo depois de retirar de seu convívio diversas autoridades, e três Ministros de Estado, por denúncias graves de corrupção, tenta reabilitá-los de diversas maneiras, seja pedindo formalmente que o PR retorne à base aliada da qual se desligara “em protesto”, seja tentando mostrar que não existe nenhum projeto de limpeza ética, simplesmente por que todos da base aliada são éticos.
Tão éticos que indicam para comandar a comissão que estudará o novo Código Civil dois deputados que respondem a diversos processos no Supremo Tribunal Federal.
Além do mais, tanta sujeira para ser limpa significa que anteriormente houve quem deixasse sujar. E quem veio antes, e promete vir depois, é o ex-presidente Lula, seu líder e tutor.
Que papel a presidente Dilma escolherá para marcar sua passagem pela Presidência da República?
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