sábado, 20 de agosto de 2011

A viagem (quase) redonda do PT

Em artigo publicado no Jornal de Resenhas, o professor Luiz Werneck Vianna analisa o giro intelectual e as circunstâncias que conduziram o governo Lula a retomar o repertório da tradição republicana brasileira. "Se o DNA do PT traz o registro das lutas operárias dos anos 1970 contra a estrutura corporativa sindical, a teoria que vai animar a sua atuação é bem anterior à sua própria fundação, tendo sido desenvolvida, entre meados de 1950 e 1960, nas obras de alguns dos mais importantes intelectuais e cientistas sociais do país", sustenta Werneck.

Luiz Werneck Vianna - Jornal de Resenhas

Com a expressão “viagem redonda”, metáfora-síntese do seu clássico os Donos do Poder, Raymundo Faoro queria aludir às grossas linhas de continuidade que, segundo a sua interpretação, dominavam o processo de formação histórica brasileira da colônia ao nosso tempo. Na sua explicação, tal continuidade se deveria a um fator estruturante desse processo – o patrimonialismo na ordem estatal centralizada –, nunca removido, e que, a tudo superior, se imporia como um desígnio da Providência na reprodução da vida social.

A ação da Providência nos negócios humanos é objeto de um pequeno ensaio de Hanna Arendt, “De Hegel a Marx”, contido em "A Promessa da Política" (Difel), em que confronta as posições desses autores sobre o assunto. Neste pequeno e brilhante texto, ela sustenta que só existiria uma diferença essencial entre Hegel e Marx: enquanto Hegel teria projetado sua visão histórica mundial exclusivamente para o passado, deixando sua consumação esbater-se no presente, Marx, contrariamente, a conceberia no sentido do futuro, compreendendo o presente como “simples provedor”.

Transformar o mundo
Não haveria mais porque interpretar o mundo, pois os filósofos, diz Marx na 11ª. tese sobre Feuerbach, já fizeram isso – exemplar a obra de Hegel –, cabendo, agora, transformá-lo. A ação consciente dos homens já não deveria ser prisioneira da Providência, nem vítima dos ardis com que a história parece se voltar contra as intenções dos humanos, tomando rumos que escapariam inteiramente do seu cálculo.

Estes dois registros – o da Providência e o da “vontade política” – parecem oportunos quando se considera a trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT), às vésperas de comemorar seus 30 anos, no governo há quase oito, e que ora se credencia para disputar mais uma sucessão presidencial. Com efeito, o PT nasce, no início dos anos 1980, com destino declarado de ser um agente de ruptura com a herança perversa, sempre renovada em nossa história – “os quinhentos anos” perdidos –, a fim de instituir uma nova fundação para o país. O ator, ao recusar os caminhos da Providência, ele próprio se apresentava como providencial. A interpretação do país estaria feita, o que faltava era a vontade política de transformá-lo.

Oito anos incompletos de governo do PT, no entanto, a “viagem redonda” de seis séculos, de João 1º a Vargas, da metáfora de Faoro, parece retomar seu curso, como se o partido assumisse, inconscientemente, a tradição que pretendeu renegar. Sintomático disso, tanto a acomodação do seu sindicalismo às estruturas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como sua atual valorização do nacional-desenvolvimentismo, ideologia da modernização brasileira, cuja forma mais bem acabada se encontra nas formulações do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), agência de intelectuais criada, ao tempo do governo JK, como lugar de reflexão sobre os rumos a serem seguidos para os fins de desenvolver o país.

O DNA do PT
De batismo, porém, suas marcas de origem são opostas às da sua maturidade, pois o PT vem ao mundo como contestador da modernização à brasileira, centrada no Estado e em suas agências, e, por isso mesmo, um projeto que teria sua origem em terreno externo à sociedade civil e se realizaria sem o seu controle. Nesse sentido, o PT nasce como uma expressão do moderno, personagem da sociedade civil, e que tem como valor a sua autonomia diante do Estado. O Estado, longe de ser o lugar da representação racional da sociedade, significaria o lugar em que os interesses privados dominantes se apresentariam, em nome da modernização, como de interesse público.

Se o DNA do PT traz o registro das lutas operárias dos anos 1970 contra a estrutura corporativa sindical – daí, o motivo principal da sua aversão à era Vargas –, a teoria que vai animar a sua atuação é bem anterior à sua própria fundação, tendo sido desenvolvida, entre meados de 1950 e 1960, nas obras de alguns dos mais importantes intelectuais e cientistas sociais do país, de que são exemplos, dentre outros, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes e Francisco Weffort. As afinidades eletivas entre as práticas do PT e o resultado de suas reflexões levaram muitos desses intelectuais, como é conhecido, a se filiarem aos seus quadros. Weffort foi seu secretário-geral, e Florestan Fernandes, influente deputado da sua bancada na Assembléia Constituinte de 1986.

Florestan, um crítico do ISEB, tinha procurado demonstrar que as coalizões pluriclassistas em que se ancorava o projeto da modernização nacional-desenvolvimentista, ao contrário de viabilizar uma emancipação da vida popular do controle exercido sobre elas pelas elites dominantes no comando do Estado, na verdade, o preservava, além de não tornar a sociedade menos desigual. Weffort, compartilhando o argumento com Florestan, assentava sua crítica, no entanto, no terreno especificamente sindical. Segundo ele, a estrutura corporativa sindical fazia o movimento operário refém do Estado e de suas manipulações populistas, levando-os a declinar dos seus interesses classistas e a abdicar da construção de uma identidade própria.

Mas será, sobretudo, nos trabalhos de Faoro que o emergente PT vai encontrar a maior parte das suas escoras intelectuais. Nosso capitalismo, na sua análise famosa, não teria sido obrigado a remover antigas elites para encontrar passagem para sua imposição. Ele teria sido gerado no ventre do patrimonialismo, preservando-se os monopólios administrados pelo Estado ou concedidos por ele, enquanto os interesses privados teriam sido abafados pela ação onipresente das agências estatais na vida econômica e social. Daí teria resultado um capitalismo politicamente orientado, confundidas as esferas pública e privada, não se revestindo a sociedade civil de autonomia diante do Estado.

“Névoa estamental”
A forma patrimonial do Estado teria ainda envolvido as relações entre as classes sociais em uma “névoa estamental”, travando o processo de formação de identidades sociais fortes e definidas, raiz da debilidade do nosso sistema de representação política e da usurpação da voz da sociedade civil pelo Estado e sua burocracia. Nesse contexto, os movimentos nacional-desenvolvimentistas, mesmo que de inspiração reformista, ao invés de vitalizarem a sociedade, reforçariam ainda mais a presença do Estado – estado-maior do projeto de modernização – e dos interesses econômicos e socialmente dominantes articulados com ele. Da modernização não deveria provir o moderno, que suporia autonomia dos sujeitos na trama do social, e sim heteronomia.

Com maior ou menor intensidade, essas referências cognitivas sobre o estado de coisas no Brasil vão se instalar no código genético do PT, vindo a se combinar com outras influências culturais. Assim com a incorporação de amplos setores provenientes do mundo da catolicidade, avessos à cultura material, e com a de numerosos segmentos da esquerda com história de resistência armada ao regime militar. A presença da esquerda católica trouxe consigo uma valorização da “alma do povo”, da espontaneidade de suas manifestações, e da autenticidade da vida popular, orientações que se demonstraram eficazes no estímulo a vários movimentos sociais, apesar do sentimento negativo que portavam quanto à política e suas instituições.

Com essa configuração heteróclita, sua opção estratégica foi a da conquista do governo – e não do Estado – pela via eleitoral. Contudo, em razão da interpretação que lhe servia de norte, o PT recusava-se a alianças com outros partidos, chegando a negar o seu palanque eleitoral a Ulysses Guimarães, líder das oposições brasileiras ao regime militar, no segundo turno da sucessão presidencial de 1989. Após a terceira tentativa de vencer a sucessão presidencial, essa política mostrou seus limites, e não à toa, em 2002, o empresário José de Alencar veio a integrar a chapa de Lula.

A ida ao centro político, movimento bem-sucedido com a vitória eleitoral, implicou uma inflexão de largo alcance. A conquista do governo não seria compreendida como recurso tático para uma posterior conquista do Estado, em uma trajetória de revolução permanente. O ator declinou do papel de herói providencial e adaptou-se às circunstâncias, com uma forte representação de empresários nos ministérios e a direção da vida econômica entregue a operadores merecedores da confiança do mercado.

História absolvida
Mas, o centro político não se constitui apenas de personagens sociais e políticos. É também uma história e um denso repertório de temas, entre os quais o do papel ativo do Estado na construção do país. Tal mudança de orientação, como natural, não se limitou a repercutir no plano superficial da política, implicando uma revisão nos juízos predominantes no governo do PT sobre o nosso passado, sobretudo no segundo mandato presidencial de Lula, em particular quanto aos governos Vargas e JK. A história do Brasil foi absolvida. Valorizam-se as agências estatais – BNDES, Banco do Brasil, Petrobrás, Caixa Econômica Federal – no papel de indutoras do desenvolvimento econômico, e, com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo se põe à testa de um projeto de modernização.

Mais que mudanças tópicas ou de ênfase, é toda uma forma de Estado que ressurge, em particular no novo papel concedido às corporações e à representação funcional, evidente nas funções delegadas ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). O Estado se amplia com a incorporação de representantes das entidades classistas de empresários e de trabalhadores, e são guindadas à condução de ministérios estratégicos as lideranças das múltiplas frações da burguesia brasileira – a industrial, a comercial, a financeira, a agrária, inclusive estes culaques à brasileira, que começaram a sua história na pequena e média propriedades –, lado a lado com as centrais sindicais e com os representantes do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST).

Sob essa formatação, instituiu-se um Estado de compromisso entre classes e frações de classes com interesses contraditórios entre si, que passam a ser processados no interior do governo e arbitrados, em casos de litígio, pelo vértice do poder executivo em estilo decisionista. Tem-se, então, no âmbito do Estado a presença de um parlamento paralelo, à margem do sistema da representação política, onde se delibera sobre políticas e se decide sobre a sua implementação. Os conflitos de interesse, na lógica dessa construção, não deveriam se expressar no terreno aberto da sociedade civil, quando tendem a se encontrar com os partidos e as correntes de opinião, e sim restritos a negociações realizadas no interior de agências estatais, evitando-se, desse modo, uma radicalização que viesse a comprometer a difícil convivência entre contrários na fórmula vigente do Estado de compromisso.

O Estado como condomínio aberto a todas as classes traz também para si os movimentos sociais, como os de gênero e os de etnia. Articula-se igualmente com as Organizações Não Governamentais (ONGs), boa parte delas dependentes do seu financiamento, e, por meio de programas de assistência social, como o bolsa-família, vinculam-se diretamente os setores socialmente excluídos. Dessa complexa articulação, apequena-se o espaço para o exercício da política a partir das motivações e expectativas da sociedade civil, inclusive por parte dos partidos políticos, convertidos em partidos de Estado, destituídos de relações vivas com seus representantes. Na prática, a política se reduz a ser mais outro monopólio do Estado, e o fluxo da sua comunicação parece conhecer apenas um sentido: o de cima para baixo.

As forças que deveriam trazer a descontinuidade se tornam as portadoras da continuidade, trazendo de volta a lógica política dos processos de modernização. Com eles, os imperativos de aceleração do tempo, a via de mudanças guiadas pelo alto, e a subsunção do social ao Estado. Dessa vez, porém, a modernização não nos chega de um projeto previamente amadurecido na reflexão e nos embates político-ideológicos, mas dos acidentes do caminho.

Adaptação às circunstâncias
Nos idos de 2003, havia a alternativa da mobilização social de um governo que vinha da esquerda em torno de um programa de reformas políticas, sociais e econômicas, cujo alcance poderia experimentar um leque de possibilidades entre soluções moderadas ou radicais. As radicais, de pronto, no contexto da época, pareciam apontar para uma crise institucional que poderia inviabilizar o cumprimento do mandato. As moderadas, por sua vez, desagradando a gregos e a troianos, comprometeriam a conquista de um segundo mandato.

A opção, como se sabe, foi a adaptação às circunstâncias, garantindo-se uma linha de continuidade com o governo anterior. O êxito imprevisto desse movimento, ao garantir a estabilização do governo, concedeu-lhe o tempo para que, por ensaio e erro, viesse a experimentar, e logo a praticar com evidente sucesso, o antigo repertório da tradição republicana brasileira, e nele os temas do nacional-desenvolvimentismo, do Estado como agente de indução de economia, o papel das estatais e das corporações sociais.

Faoro talvez pudesse dizer que esse movimento de encontro do PT com um capitalismo politicamente orientado não teria sido mais uma “mistificação de cúpula”, uma vez que persistiam as estruturas garantidoras da sua reprodução. A história não deixou de ser irônica quanto ao ator que não soube interpretá-la, e que, vindo do campo do moderno, fez ressurgir a modernização, muitos dos seus personagens e de suas instituições.

De qualquer forma, este ciclo de modernização sob a condução do governo do PT, embora revele, ao tempo em que a consolida, a mesma assimetria nas relações entre o Estado e a sociedade civil nos processos desse tipo, é o mais brando, quanto ao uso de meios repressivos, dentre quantos conhecemos desde o Estado Novo – no governo JK, lembre-se, os sindicatos estavam sob estrita vigilância do Estado, e os trabalhadores do campo viviam sob forte controle social dos proprietários de terras.

Na periferia do mundo são perturbadoras as relações entre o moderno e a modernização. Se esta, da perspectiva de uma agenda democrática, não pode implicar o rebaixamento da autonomia dos seres subalternos, aquele não pode se limitar aos planos cognitivo e ético-normativo, indiferente às questões substantivas. Mas é um argumento senil, anacrônico, o que tergiversa sobre os valores da democracia, da auto-organização do social, e da autonomia do indivíduo em nome de alegadas urgências da questão social. Onde isso prevaleceu –, a história, aí, não é irônica –, não se teve nem o moderno, nem a modernização.

Luiz Werneck Vianna é professor do IUPERJ e autor de Esquerda brasileira e tradição republicana (Revan)

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