segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O Governo Lula e a reforma do neoliberalismo *

O Governo Lula e a reforma do neoliberalismo *
Armando Boito [**]

A questão de saber se o Governo Lula mantém o modelo capitalista neoliberal colocou-se desde o início desse governo. Talvez, a maioria dos analistas e observadores tenha se encaminhado para um tipo de resposta segundo o qual Lula e os partidos que integram seu governo vêem reproduzindo o modelo capitalista neoliberal tal e qual esse modelo foi herdado de FHC. Nós pensamos um pouco diferente.

O Governo Lula está construindo uma nova versão do modelo capitalista neoliberal. Ele promoveu pequenas mudanças na política econômica e na política social que, embora não cheguem a provocar mudanças na dependência econômica e financeira da economia nacional e nas condições de vida da população trabalhadora, são mudanças que poderão dar um novo fôlego político a esse modelo antinacional e antipopular de capitalismo.

Na verdade, nenhuma das mudanças significa a introdução de elementos completamente novos em relação ao que vinha sendo feito anteriormente. Elas são, antes de tudo, a radicalização de algo que começara a ser feito sob o segundo mandato de FHC. De tal modo que, se fosse para nos fixarmos na questão de saber se Lula dá ou não dá seqüência à política de FHC, poderíamos dizer que ele dá seqüência ao que começou a ser feito no final do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Lula segue o FHC2, mas não o FHC1.

A política de exportação e a burguesia interna

O primeiro ajuste que o Governo Lula efetuou no modelo aparece na sua política agressiva de exportação. Essa política não rompe a hegemonia do capital financeiro, mas atende aos interesses de parte da burguesia interna, permitindo uma ampliação da base burguesa do modelo capitalista neoliberal.

Ao longo do seu primeiro mandato, Fernando Henrique Cardoso acumulou déficits crescentes e cumulativos na balança comercial do país. Isso, de um lado, agradou o capital internacional. Significava uma ruptura com a política desenvolvimentista e abria o mercado interno aos produtos estrangeiros. Porém, de outro, lado, a médio e longo prazo essa política pode gerar problemas para o próprio capital financeiro. O desequilíbrio das contas externas pode comprometer a capacidade do Estado brasileiro de pagar os juros da dívida interna e externa e, no limite, um nível muito baixo de reservas internacionais pode, inclusive, suprimir a liberdade básica do capital financeiro internacional que é a liberdade e entrar e (principalmente) de sair, sem atropelos ou prejuízos, do país. Estivemos próximo dessa situação com a crise cambial de 1999. A fuga de capital estrangeiro - dezenas de bilhões de dólares em poucas semanas - foi o sintoma de um desequilíbrio mais geral que exigia correções de rumo. Fernando Henrique Cardoso percebeu isso. Decidiu desvalorizar o real e, para fazê-lo, atirou ao mar seu até então fiel escudeiro, o Presidente do Banco Central Gustavo Franco. Em seguida, desvalorizou o real, abandonou a sua política de déficit na balança comercial e partiu para uma política de balança comercial superavitária.

Na campanha eleitoral de 2002, já estava claro que essa correção de rumo deveria se manter. Fernando Henrique Cardoso talvez não fosse o timoneiro mais indicado para dirigir o barco nessa direção. Lula, o seu partido e a CUT, ao contrário, sempre estiveram politicamente próximos da Fiesp quando essa protestara, ao longo da década de 1990, contra os “exageros” da abertura comercial e contra os juros elevados. Uma vez no governo, Lula decidiu radicalizar na direção desse ajuste. Iniciou a sua política agressiva de exportação, centrada no agronegócio e nos produtos industriais de baixa densidade tecnológica, e implementou as medidas cambiais, creditícias e outras necessárias para manter essa política. A eleição de Lula foi uma vitória parcial da burguesia interna que fustigou FHC ao longo dos anos 90, mesmo que sem nunca romper com ele – chamamos de burguesia interna aquele setor da burguesia que possui base de acumulação no território nacional mas não apresenta um comportamento político de burguesia nacional antiimperialista. Embora essa fração burguesa permaneça como uma força secundária no bloco no poder, uma vez que o Estado continua priorizando os interesses do capital financeiro, o fato é que o Governo Lula ofereceu para ela uma posição bem mais confortável na economia nacional. O resultado disso pode ser visto no comportamento da Fiesp. Essa entidade, que foi crítica dos aspectos mais financistas da política econômica e da abertura comercial dos anos 90, é presidida hoje por um homem de confiança do Palácio do Planalto, que se elegeu para a Fiesp com o apoio do governo federal. A parte da burguesia industrial que permanece insatisfeita e recalcitrante refugiou-se no Ciesp, em luta aberta com a Fiesp – divisão inédita na história da burguesia industrial paulista.

Mas, por que é possível afirmar que, apesar disso, o capital financeiro permanece hegemônico? Porque Lula estimula a produção na exata medida em que isso atenda os interesses do capital financeiro. Em primeiro lugar, ele estimula a produção voltada para a exportação. Não teria sentido, de fato, estimular a produção voltada para o mercado interno. Isso interessaria aos trabalhadores brasileiros que aspiram melhorar suas condições de vida, mas não ao capital financeiro e ao governo que representa os interesses desse capital. O objetivo da produção é a caça aos dólares e o trabalhador brasileiro compra a sua comida em moeda nacional. Por isso, estimula-se especificamente a exportação e não a produção em geral. Em segundo lugar, mesmo no estímulo à exportação, é preciso não ultrapassar a medida daquilo que interessa às finanças. Mais dólares, mas - atenção! - desde que esses dólares possam ser direcionados para o pagamento dos juros da dívida. Logo, o superávit primário e os juros devem permanecer elevadíssimos mesmo que isso limite as exportações. Faltam estradas, portos, funcionários em quantidade e qualidade suficientes para fazer do Brasil uma grande plataforma de exportação de produtos primário e industriais rudimentares – nem mesmo esse destino tacanho nos parece permitido. Mas, do ponto de vista do capital financeiro, não teria sentido desviar para a infraestrutura o dinheiro que deve ser reservado para remunerar os bancos – logo, em vez de investimentos em infraestrutura, tome superávit primário, com ou sem acordo com o FMI. O mesmo raciocínio aplica-se à política de juros elevados, que limita a produção e, inclusive, a exportação. A produção deve ser estimulada na direção (comércio exterior) e na medida que interesse aos banqueiros e, por não compreender isso, Carlos Lessa foi posto para fora do BNDES.

A política externa do Governo Lula faz parte dessa nova política exportadora. Os defensores desse governo costumam afirmar que sua política externa é a sua parte sã. Não pensamos assim. O que todos devem se perguntar é sobre os laços dessa política externa com a política interna do governo. Feita essa pergunta veremos o seguinte: a política externa visa, centralmente, ampliar mercado para os produtos brasileiros no exterior. Seu carro chefe é a luta contra o protecionismo agrícola dos países centrais. O G20, organizado pelo Estado brasileiro e por outros Estados da periferia na reunião de Cancun da OMC em outubro de 2003, visa exatamente suspender tal protecionismo. O discurso que o Governo Lula aciona para legitimar a reivindicação do G20 é um discurso neoliberal que pleiteia a “verdadeira abertura” dos mercados e concentra a luta no protecionismo agrícola. Abdica, simultaneamente, de lutar por novas regras do comércio internacional que favoreçam e protejam os países menos desenvolvidos, luta que não teria nada a ver com liberdade de comércio, e abdica também de lutar pela melhoria da posição da economia brasileira na divisão internacional do trabalho, aceitando nossa condição de vendedor de soja, algodão, sapato e similares.

As políticas compensatórias e o novo populismo conservador

O que analisamos até aqui foi o ajuste que o Governo Lula promoveu no interior do bloco no poder em decorrência dos vetores convergentes oriundos do desequilíbrio econômico nas contas externas e da pressão política de parte da burguesia brasileira – o agronegócio e a grande indústria. Agora, vamos examinar a segunda mudança no modelo neoliberal, mudança que diz respeito mais diretamente às classes trabalhadoras.

Se a burguesia interna pressionou contra alguns aspectos da política neoliberal de FHC, grande parte dos trabalhadores resistiu a essa política, com greves, manifestações de massa, ocupação de terras e, também, com votação em candidatos filiados a partidos que se diziam antiliberais. Essa pressão avolumou-se, como é sabido, ao longo da década de 1990. Porém, para os trabalhadores organizados, o Governo Lula não fez concessão. Continua sonegando uma política salarial e mantém o arrocho dos salários com mão de ferro, é omisso diante do drama do desemprego, retirou direitos previdenciários do setor público e, também, do setor privado, enfim, não trouxe nada de novo. Porém, o Governo Lula não ficou parado. Ele recuperou e ampliou o populismo conservador de Collor e de FHC. As reivindicações dos trabalhadores organizados são preteridas, pois o seu atendimento custaria muito caro ao capitalismo brasileiro e ao capital financeiro, mas, ao mesmo tempo, o governo passa a fazer demagogia social com os trabalhadores pauperizados, desorganizados e politicamente desinformados. É importante notar que esse novo populismo deve provocar deslocamentos na base social do próprio PT, cujas relações com os trabalhadores organizados está se deteriorando.

Fernando Henrique Cardoso multiplicou as bolsas e ajudas efêmeras, incertas e insuficientes que vinham sendo implementada desde o Governo Sarney: auxílio gás, auxílio leite, bolsa escola, renda de emergência etc. O Governo Lula unificou tudo isso numa bolsa família e aumentou um pouco a dotação orçamentária para esse fim. Não são direitos, são sobras de caixa que dependem do humor de Antonio Palocci, isto é, do humor do capital financeiro. Ademais, o Governo Lula está sabendo explorar simbolicamente essa iniciativa: faz solenidades para distribuir bolsas, faz publicidade na rádio e na TV etc. Os ministros da área social simulam resolver no varejo a desgraça que os ministros da área econômica promovem no atacado. Não se trata de uma proposta de organização política dos trabalhadores pauperizados pelo capitalismo neoliberal para fazer deles uma força pela mudança do modelo econômico. O Governo Lula mantém essa população pobre desorganizada e desinformada, explora-a politicamente – para ser mais preciso, explora-a eleitoralmente – porque sabe que a organização do povo poderia criar uma situação que o obrigaria a substituir a oferta de bolsas pela consolidação de direitos. Todos se mobilizam para apresentar a pessoa de Lula como o pai dos pobres – personagem que ele assumiu com gosto e persistência apresentando-se, a todo momento, como o pai da “família Brasil”. Há semelhanças entre esse novo populismo e antigo populismo de Getúlio Vargas, mas há diferenças importantes também. Vargas apelava aos trabalhadores para levar de vencida ou contornar a resistência das oligarquias e do imperialismo à industrialização do Brasil, enquanto o Governo Lula, dando seqüência a um novo filão descoberto por Fernando Collor, apela aos descamisados para jogá-los contra os trabalhadores organizados de modo a fazer passar a política do capital financeiro nacional e internacional.

As políticas compensatórias não vão resolver os graves problemas da população trabalhadora que recebe um salário insuficiente, que está subempregada ou desempregada. Veja-se o mais recente exemplo desse tipo de iniciativa. O Governo Lula criou uma bolsa para jovens que atendam os seguintes requisitos: a) habitem grandes capitais, b) tenham entre 18 e 24 anos, c) estejam desempregados e d) tenham completado o ciclo de ensino fundamental. Pois bem, se preencherem essa série de quatro atributos decididos pelos tecnocratas das políticas compensatórias poderão usufruir da bolsa? Não! Poderão, simplesmente, entrar num sorteio para concorrer a uma dessas bolsas de R$100,00 a ser paga ao longo de doze meses e desde que tal beneficiário faça um curso de qualificação profissional. Ou seja, uma espécie de loteria do escárnio e que só pode se explicar pelo interesse eleitoral rasteiro do governo, que foi derrotado nas eleições municipais das principais capitais brasileiras.

O que podemos esperar

Não valeria a pena apoiar uma política que, pelo menos, oferece uma posição mais favorável para a produção, reduzindo um pouco o poder absoluto do capital financeiro? Ou colocando a coisa em termos sociológicos e políticos: não valeria a pena os trabalhadores se aliarem à burguesia interna na luta contra o capital financeiro?

Muitos poderiam responder afirmativamente a essa questão. Há uma longa tradição na esquerda brasileira que insiste na necessidade e na possibilidade de os trabalhadores aliarem-se àquilo que seria uma burguesia nacional. Nós não pensamos que esse seja um caminho correto. A política de oferecer um certo alento à produção, como está delimitada pelas necessidades do capital financeiro, é uma política voltada para a exportação. Ora, isso significa, de um lado, que reproduzimos a condição de economia dependente e subordinada às economias centrais e, de outro lado, que condenamos o trabalhador brasileiro a permanecer nas péssimas condições de vida nas quais ele já se encontra. O arrocho salarial é o principal trunfo competitivo dos produtos brasileiros no exterior. Contar com a tecnologia do agronegócio e da indústria no Brasil não é sensato, já que essa tecnologia é sofrível e a infraestrutura de transporte e de escoamento é péssima (devido à necessidade do superávit primário para remunerar o capital financeiro); aliviar ainda mais o imposto que incide sobre as empresas exportadoras seria inviável (de novo o superávit primário se impõe); desvalorizar de modo desmedido o real para aumentar a renda dos exportadores ameaçaria o clima de segurança que o capital estrangeiro exige para entrar e sair sem sustos do país; o que resta mesmo é explorar ao máximo o trabalhador. O Governo Lula mantém o arrocho draconiano sobre o salário mínimo não apenas, e nem principalmente, para, como ele quer fazer crer, conter o “gasto” da previdência. O arrocho do salário mínimo é fundamental para reduzir o preço dos produtos exportados, aumentando a competitividade das exportações brasileiras, e é justamente por isso que os trabalhadores não têm nada a ganhar numa eventual aliança com a burguesia voltada para a exportação.

As mudanças secundárias promovidas na política social tampouco trarão, como já disse, melhoria para os trabalhadores – essas mudanças configuram algo que poderíamos denominar social-liberalismo, política que não altera a “face social” do modelo capitalista neoliberal. Mas, essas mudanças estão criando, como têm indicado diversos militantes dos movimentos sociais, uma situação política nova. De um lado, é verdade que essas mudanças reforçam o apelo populista do Governo Lula junto aos trabalhadores pobres e desorganizados. O governo aproxima-se, com uma política populista conservadora, dos mesmos trabalhadores que o derrotaram em 1989 - naquela ocasião, a candidatura Lula defendia uma plataforma de expansão dos direitos sociais e Fernando Collor logrou fazer com que esses trabalhadores a vissem como uma plataforma que proporia o aumento de privilégios. Mas, de outro lado, o PT vai perdendo força entre os trabalhadores organizados, agravando suas tensões com esse setor. Abre-se aqui, portanto, todo um campo de trabalho para a oposição de esquerda ao Governo Lula. Esse campo precisa ser explorado sem conciliação e sem sectarismo.

[*] As idéias aqui apresentadas foram expostas inicialmente em duas palestras a estudantes e ativistas dos movimentos populares – uma no CecAC do Rio de Janeiro e outra no Instituto de Física Teórica da Unesp-SP. Para redigir este texto, pude aproveitar a contribuição dessas duas discussões. Claro, contudo, que apenas eu sou responsável pelo que apresento aqui.

[**] Professor Ciência Política da Unicamp e Editor da revista Crítica Marxista

Publicado na Revista da Adusp de maio de 2005.

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