quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Teocracia antiteocrática

Talvez seja melhor nos habituarmos à democracia. Estado laico não significa que as igrejas (tomadas aqui como sinônimo de religiões) estejam impedidas de opinar. Estado laico não é estado ateu

Está certo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando diz que a opinião pública tem cada vez menos donos. É possível que aqui o chefe de governo esteja a empregar “opinião pública” como sinônimo de “opinião da sociedade”.

Prefiro usar a expressão com outro significado. “Opinião pública” nesta coluna tem servido tanto para designar os profissionais de comunicação que buscam influenciar o ambiente político quanto o pedaço do ambiente político que se influencia por eles.

Opinião pública e sociedade não são sinônimos. A disseminação dos meios para distribuir informação digitalizada torna-os coisas diferentes cada vez mais. Tenho até dúvida se algum dia foram a mesma coisa. Ou se é um passado mitificado para ajudar a explicar o presente.

No obrigatório “Minha Razão de Viver”, Samuel Wainer (com texto final de Augusto Nunes) conta como a imprensa da época “escondia” a campanha de Getúlio Vargas à Presidência em 1950, e mesmo assim o então ex-ditador acabou eleito. E bem eleito.

Wainer era aliado de Getúlio e eventualmente sua descrição daqueles momentos históricos possa ser contestada, um dia. O fato é que até hoje ninguém o contestou.

O eleitor não tem dono. Quando está mais vulnerável a ter, é por razões de ordem econômica, não por falta de informação.

O debate sobre o aborto é um bom exemplo. A opinião pública é esmagadoramente adepta de que o tema não deve ser debatido na campanha eleitoral. Só que está sendo.

Os candidatos a donos da opinião alheia são como o sujeito que olha pela janela num dia de agosto aqui em Brasília e descobre que chove intensamente. Mas não deveria estar chovendo nessa época, e por isso ele sai de casa a pé e sem guarda-chuva.

Só que está chovendo sim, e o “formador de opinião” chega ao destino todo encharcado.

E chega protestando contra o absurdo de chover numa época naturalmente programada para a seca.

É bom que nos habituemos. O Brasil é uma democracia e ninguém possui o monopólio da agenda eleitoral. Como os principais contendores tem cada um sua mídia reservada em rede nacional, cada um tenta emplacar os temas que mais convêm.

Mais democrático é discutir os assuntos e ponto final. Responder às acusações esclarecendo, sem achar que fugir delas fará o milagre de levá-las ao desaparecimento “natural”.

Talvez o Brasil esteja assistindo à melhor corrida presidencial desde a redemocratização. Ou pelo menos desde que Lula e Fernando Collor se enfrentaram no segundo turno de 1989. Há uma disputa real, com possibilidades ainda algo abertas.

De 1994 para cá, todas as vezes, a reta final do turno decisivo já apontava um vitorioso muitíssimo provável, e a natural agregação em torno dele tirava o oxigênio do debate.

O favorito já se comportava como presidente eleito, e o marcado para a derrota só se preocupava em tocar o barco dignamente até o dia da má notícia definitiva.

Agora não. Há algum espaço para a dúvida. Então, em vez de resmungar sobre a “agenda errada” seria mais proveitoso surfar nas ondas antes que acalmem.

É a hora em que o eleitor pode arrancar compromissos dos candidatos. Por que não aproveitar? E por que tentar discriminar certos assuntos?

Estado laico não significa que as igrejas (tomadas aqui como sinônimo de religiões) estejam impedidas de opinar. Estado laico não é estado ateu.

Como reagiriam os ateus se as igrejas procurassem interditar o debate dos temas mais críticos aos adeptos do ateísmo? Achariam bom? Duvido. Aliás já aconteceu e não acharam bom.

Não faz sentido invocar a ameaça teocrática para, de contrabando, tentar impor a teocracia antiteocrática.

Aborto, privatizações, corrupção, analfabetismo. Que se discuta tudo.

Coluna (Nas entrelinhas) publicada nesta quinta (14) no Correio Braziliense.

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por Alon Feuerwerker

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