A Carta ao Leitor, que vem a ser, na prática, o editorial da revista Veja desta semana (1º de julho), anuncia com pompa: “Um país melhor que seus políticos”. E mostra que, apesar de a vida pública viver em permanente crise, que passou sucessivamente do Executivo para a Câmara dos Deputados e agora o Senado, o resto do País estaria dando lições ao mundo de “resiliência*, coragem, inventividade, organização, disciplina e arrojo”. Alguns d esses exemplos: Obama já louvou o papel civilizatório do Brasil em relação aos seus vizinhos e a condução impecável da política econômica dentro das nossas fronteiras; o sistema brasileiro foi lembrado como exemplo a ser imitado quando presidentes de bancos centrais dos principais países do mundo discutiam na Basileia como regular os mercados financeiros; em todos os fóruns ambientais globais, a vanguarda brasileira no domínio dos combustíveis limpos é reconhecida e invejada.
“Nesse contexto”, diz o editorialista, “a política clientelista e coronelista de Brasília é um contrassenso em termos, herança de atraso e privilégios que já foi superada em outros campos da vida nacional.” E termina com uma ameaça que tem tanto de tonitroante quanto de ingênua: “Já passou da hora de a classe política se engajar no processo de mudança de comportamento, tão fundamental para entrar e m sintonia com as exigências, expectativas e necessidades do país”. Nada mau, embora seja duvidoso que no universo ambientalista sejamos reconhecidos como heróis a serem imitados, mesmo quando se esteja a falar dos nossos combustíveis “limpos”. Alguém poderia lembrar que políticos não formam uma classe social – talvez uma categoria –, mas isso não é importante. O que importa é verificar se há, realmente, exigências, expectativas e mesmo um processo de mudança em andamento.
O Brasil que emergiu da ditadura militar adota o sistema de democracia parlamentar representativa. Ou seja, os parlamentares representam a população do País, ainda que os senadores, formalmente, representem os Estados como unidade administrativa. E para chegar a isso, valemo-nos de um sistema eleitoral, este sim, invejável: no Brasil votam todos os cidadãos, sem exceção: homens, mulheres, doutor es, analfabetos, brancos, negros, mulatos, portadores de necessidades especiais, desde que tenham mais de 16 anos. De eleições assim amplas e irrestritas sai sempre um retrato irretocável do país, ou melhor, do eleitorado do País – não vamos culpar os nossos adolescentes por essa vergonheira que anda por aí. Mas fica claro que, adolescentes a parte, o eleitorado é o país – e o resultado da eleição é o seu retrato, sem retoques. A ameaça contida na última frase do editorial, portanto, precisa ser redirecionada: “Já passou da hora de o eleitorado se engajar no processo de mudança de comportamento, tão fundamental para entrar em sintonia com as exigências, expectativas e necessidades do País”.
Vamos à História. O sistema político vigente nos países ocidentais e em alguns orientais e africanos nasceu no século 18, quando os senhores filósofos se puseram a falar de liberda des e direitos – e por isso o dezoitão ficou conhecido como o Século das Luzes, e esse falatório filosófico como Iluminismo. O Século das Luzes terminou em duas revoluções portentosas e consagradoras: a declaração da independência dos Estados Unidos, primeiro, e a francesa, logo a seguir. Mas as sementes do que viria a ser a pedra fundamental do sistema político criado começaram a ser cultivadas bem antes, na Inglaterra, quando os já ricos proprietários de terras, bancos, casas comerciais e indústrias, começaram a exigir o direito de também influir nas decisões governamentais, para defender seus interesses, um privilégio até então reservado à nobreza. Ali nasceu o Parlamento, local onde representantes de todos os segmentos da população podiam dar os seus palpites sobre a administração pública.
As duas revoluções – a francesa e a americana –, um pouco mais tarde,radicalizaram: estenderam o direito de representação a todos os cidadãos, declarando que “o poder emana do povo (todo o povo, não apenas nobres, proprietários, comerciantes e industriais) e em seu nome será exercido”. É o povo, por meio de eleições de que todos podem participar, quem escolhe os políticos que o representarão no Parlamento, principalmente, mas também no Executivo. E vamos voltar às origens do Parlamento moderno, para não ficarem dúvidas: as outras categorias sociais, que não a nobreza, exigiram o direito de enviar representantes para lá para defenderem seus interesses, não as suas idéias. Por mais que pareça desagradável, convém insistir: no Parlamento defendem-se interesses, não idéias, e negocia-se a melhor forma de harmonizá-los.
Se, como podemos constatar diariamente, a pestilenta rotina parlamentar decorre sem a mais leve preocupação com a moralidade pública, é porque, hoje, moralidade pública não é interesse de nenhuma categoria social no Brasil. Trocando por uma linguagem mais rasteira e inteligível: moralidade não dá voto a ninguém. Mas já deu: em 1960 Jânio Quadros recebeu uma estrondosa votação em todo o país, para presidente da República, falando em combate à corrupção e exibindo como símbolo de luta uma vassoura, com que prometia fazer o que o senador José Sarney alega não ser seu dever, como presidente do Senado e do Congresso: uma limpeza na vida pública nacional, inclusive na cozinha e na despensa. Isso foi há 50 anos. Hoje vem do Maranhão a evidência de que não é mais assim: o longo domínio político da família Sarney naquele Estado foi interrompido nas eleições passadas por um candidato que, para vencer, precisou lançar mão dos mesmos métodos e argumentos utilizados pelo adversário ao longo de muitas décadas. E por isso teve o mandato cassado pela Justiça, que devolveu o poder aos que, nesses tempos imorais, bem podem ser considerados seus legítimos donos.
*Resiliência – Propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica.
Almyr Gajardoni - Chefe do Núcleo de Redação da Imprensa Oficial de São Paulo
“Nesse contexto”, diz o editorialista, “a política clientelista e coronelista de Brasília é um contrassenso em termos, herança de atraso e privilégios que já foi superada em outros campos da vida nacional.” E termina com uma ameaça que tem tanto de tonitroante quanto de ingênua: “Já passou da hora de a classe política se engajar no processo de mudança de comportamento, tão fundamental para entrar e m sintonia com as exigências, expectativas e necessidades do país”. Nada mau, embora seja duvidoso que no universo ambientalista sejamos reconhecidos como heróis a serem imitados, mesmo quando se esteja a falar dos nossos combustíveis “limpos”. Alguém poderia lembrar que políticos não formam uma classe social – talvez uma categoria –, mas isso não é importante. O que importa é verificar se há, realmente, exigências, expectativas e mesmo um processo de mudança em andamento.
O Brasil que emergiu da ditadura militar adota o sistema de democracia parlamentar representativa. Ou seja, os parlamentares representam a população do País, ainda que os senadores, formalmente, representem os Estados como unidade administrativa. E para chegar a isso, valemo-nos de um sistema eleitoral, este sim, invejável: no Brasil votam todos os cidadãos, sem exceção: homens, mulheres, doutor es, analfabetos, brancos, negros, mulatos, portadores de necessidades especiais, desde que tenham mais de 16 anos. De eleições assim amplas e irrestritas sai sempre um retrato irretocável do país, ou melhor, do eleitorado do País – não vamos culpar os nossos adolescentes por essa vergonheira que anda por aí. Mas fica claro que, adolescentes a parte, o eleitorado é o país – e o resultado da eleição é o seu retrato, sem retoques. A ameaça contida na última frase do editorial, portanto, precisa ser redirecionada: “Já passou da hora de o eleitorado se engajar no processo de mudança de comportamento, tão fundamental para entrar em sintonia com as exigências, expectativas e necessidades do País”.
Vamos à História. O sistema político vigente nos países ocidentais e em alguns orientais e africanos nasceu no século 18, quando os senhores filósofos se puseram a falar de liberda des e direitos – e por isso o dezoitão ficou conhecido como o Século das Luzes, e esse falatório filosófico como Iluminismo. O Século das Luzes terminou em duas revoluções portentosas e consagradoras: a declaração da independência dos Estados Unidos, primeiro, e a francesa, logo a seguir. Mas as sementes do que viria a ser a pedra fundamental do sistema político criado começaram a ser cultivadas bem antes, na Inglaterra, quando os já ricos proprietários de terras, bancos, casas comerciais e indústrias, começaram a exigir o direito de também influir nas decisões governamentais, para defender seus interesses, um privilégio até então reservado à nobreza. Ali nasceu o Parlamento, local onde representantes de todos os segmentos da população podiam dar os seus palpites sobre a administração pública.
As duas revoluções – a francesa e a americana –, um pouco mais tarde,radicalizaram: estenderam o direito de representação a todos os cidadãos, declarando que “o poder emana do povo (todo o povo, não apenas nobres, proprietários, comerciantes e industriais) e em seu nome será exercido”. É o povo, por meio de eleições de que todos podem participar, quem escolhe os políticos que o representarão no Parlamento, principalmente, mas também no Executivo. E vamos voltar às origens do Parlamento moderno, para não ficarem dúvidas: as outras categorias sociais, que não a nobreza, exigiram o direito de enviar representantes para lá para defenderem seus interesses, não as suas idéias. Por mais que pareça desagradável, convém insistir: no Parlamento defendem-se interesses, não idéias, e negocia-se a melhor forma de harmonizá-los.
Se, como podemos constatar diariamente, a pestilenta rotina parlamentar decorre sem a mais leve preocupação com a moralidade pública, é porque, hoje, moralidade pública não é interesse de nenhuma categoria social no Brasil. Trocando por uma linguagem mais rasteira e inteligível: moralidade não dá voto a ninguém. Mas já deu: em 1960 Jânio Quadros recebeu uma estrondosa votação em todo o país, para presidente da República, falando em combate à corrupção e exibindo como símbolo de luta uma vassoura, com que prometia fazer o que o senador José Sarney alega não ser seu dever, como presidente do Senado e do Congresso: uma limpeza na vida pública nacional, inclusive na cozinha e na despensa. Isso foi há 50 anos. Hoje vem do Maranhão a evidência de que não é mais assim: o longo domínio político da família Sarney naquele Estado foi interrompido nas eleições passadas por um candidato que, para vencer, precisou lançar mão dos mesmos métodos e argumentos utilizados pelo adversário ao longo de muitas décadas. E por isso teve o mandato cassado pela Justiça, que devolveu o poder aos que, nesses tempos imorais, bem podem ser considerados seus legítimos donos.
*Resiliência – Propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica.
Almyr Gajardoni - Chefe do Núcleo de Redação da Imprensa Oficial de São Paulo
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