terça-feira, 7 de maio de 2013

Jean Charles

Jean Charles

Fui assistir ao filme Jean Charles, com o sempre excelente Selton Mello no papel daquele rapaz brasileiro que foi estupidamente assassinado num vagão de metrô, quatro anos atrás, confundido com um terrorista. O filme é quase um documentário, não tem artifícios técnicos, é uma narrativa comum, descolorida, acinzentada como a Londres dos imigrantes.

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Londres é minha cidade preferida fora do Brasil. A primeira vez em que estive lá, me hospedei na casa de uma inglesa que tinha quatro filhos e um monte de dívidas, por isso amontoava os filhos num mesmo quarto para poder alugar o outro para estrangeiros e ganhar algum trocado extra. A casa ficava num bairro ótimo, Pimlico, mas a vida dela não era um passeio. Lembro que comprava comida com data de validade vencida, porque era mais barato. Já eu estava mais a fim era de bater perna na rua e conhecer a tal cidade que inspirou a frase: quem enjoou de Londres, enjoou de viver.

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Foi amor à primeira vista pela capital londrina. Foram apenas 18 dias, e não enjoei nem um segundo. Voltei mais três vezes depois daquela, me hospedando não mais em quartos de casa de família, mas em pequenos hotéis. Enfim, uma turista clássica curtindo os parques, os museus, os pubs, as feiras, os monumentos, as livrarias, as ruas. Há quem não tenha paciência pra isso e acredita que, se é pra viajar pro exterior, que seja pra morar, vivenciar de fato o dia-a-dia da cidade. Lindo. Quem me dera poder passar um longo tempo estudando em Londres, escrevendo em Londres... Mas isso é para poucos. Quem resolve sair do Brasil para morar fora, geralmente vai para lavar prato, fazer faxina, pegar no pesado, e nem passa perto das flores do Hyde Park.

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Jean Charles de Menezes morava numa cidadezinha no interior de Minas e resolveu ir para o exterior tentar ganhar a vida como eletricista, imaginando um futuro melhor pra sua família. Passou a viver com mais três primos, todos tentando faturar algum em moeda forte. Eu saí do cinema pensando em como essa ilusão custa caro. A gente deveria ter condições de viver dignamente como eletrecista ou garçom ou o que for, aqui mesmo, no Brasil. É barra ter que enfrentar um cotidiano bruto, sem nenhuma fantasia. Há um momento em que a atriz Vanessa Giácomo, que interpreta a prima Vivian, que largou o namorado no Brasil para trabalhar em Londres como garçonete numa espelunca onde o dono cospe nos pratos que serve aos muçulmanos, diz a Jean Charles algo como: "maldita a hora que eu vim pra cá para ralar nessa porcaria de cidade". Diz isso à beira do Tâmisa, em frente ao deslumbrante prédio do Parlamento, que para ela não tem nenhum significado - ela está na Europa apenas pelo dinheiro, longe do seu amor, do seu idioma e sem nenhuma oportunidade de crescimento real. Numa situação como essa, é perfeitamente compreensível que Londres se transforme numa porcaria, por mais que doa no nosso ouvido associar essa palavra à terra de Shakespeare.

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Jean Charles se divertia como? Não era ouvindo jazz no Ronnie Scott´s, no Soho, e sim ouvindo Sidney Magal ao vivo num teatro de quinta, cercado de outros brasileiros, muitos deles ilegais no país, sem a possibilidade de absorver a cultura local, sofisticar o gosto, viver uma experiência nova. O lance era economizar, faturar o máximo possível e voltar pra casa assim que desse. Como fazem milhares de trabalhadores rurais que se transferem para centros urbanos, que saem do interior para as capitais. O êxodo atrás de grana, de trabalho, de dignidade. Não bastasse a dureza que é viver desse modo, em Londres ou São Paulo ou em qualquer lugar, ainda levar uns tiros na cabeça às dez da manhã dentro de um transporte público, sem chance de defesa, entra pra categoria das histórias inacreditáveis.

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Vivian, a prima que chegou pela primeira vez em Londres odiando tudo aquilo, volta anos depois à capital inglesa, mais madura e mais mulher. E faz o quê? Coloca uma mochila nas costas e vai, sozinha, rodar o mundo e conhecer melhor a Europa e a si mesma. Decide, enfim, viajar - e honrar a vida que Jean Charles não teve tempo de merecer.


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Bom início de semana a todos!

Martha Medeiros

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