Carta-resposta de um inadimplente
Prezado credor;
Creio que vossa senhoria não me conheça, sou apenas mais um número nos seus registros de clientes que foi lembrado quando resolveu me enviar a correspondência que agora respondo mui cordialmente.
O senhor me mandou uma carta, gastou papel, tinta e contribuiu para o desmatamento só para me dizer aquilo que já sei: sou um inadimplente. Recebi, na citada correspondência, a informação de que não consta em seus registros o pagamento de minha dívida… Óbvio, pois eu não paguei mesmo…
Venho pois, por meio desta, justificar minha inadimplência… Sou mais uma vítima da crise capitalista, que aliás, só atingiu realmente, os pobres, porque aquela pequena porcentagem da população, a qual o senhor pertence, que concentra a maioria esmagadora da renda deste país, teve prejuízos muito menores que os meus…
Ano passado, quando fechamos o contrato, meu salário era o dobro de hoje… O senhor pode alegar que também está em crise e que as vendas de seu estabelecimento diminuíram pela metade. Acredito e não ouso discordar de seus argumentos, mas quero deixar bem claro que a sua metade é infinitamente maior que a minha… Além disso, como no ano passado minha renda era razoável, tive que me explicar com o leão no começo deste ano, e precisei parcelar o imposto de renda em oito suaves prestações que resultaram numa enorme cratera em meu orçamento mensal… Mesmo assim, não nego minha dívida. E vossa senhoria que sonegou impostos ao me vender sem nota fiscal?… Tudo o que recebi foi uma tripinha de papel com uma impressão horrível que já desapareceu, só restou a folha em branco com o timbre de sua empresa no verso…
Como se não bastasse, aquele banco que era do nosso estado e agora virou um “BBB”, resolveu ressuscitar uma dívida que nem eu lembrava, para tomar mais uma preciosa parte de meus honorários mensais com a garantia de que eu teria o crédito liberado novamente… Mas não foi isso que aconteceu, acabei ficando com mais um boleto para pagar e uma tal de restrição interna… Fizeram isso porque sou proletariado, pois se fosse mais um empresário bem sucedido as custas de seus humildes funcionários, engravatado e de fala macia, com certeza teriam negociado mais generosamente comigo.
Na cordial e bem redigida carta a mim enviada, consta a informação de que se eu não regularizar o pagamento no prazo estipulado pela sua empresa, serão tomadas medidas legais, ou seja, cobrança jurídica terceirizada… Certamente minha caixa de correios vai receber mais uma correspondência, com um remetente intitulado “alguma coisa advogados”, ou “tal coisa capitalização”. Nomes de efeito assustador, mas que não mudam, em nada minha situação nem a sua, só contribuem para inflamar ainda mais nossa relação comercial… Aliás, as medidas legais não foram lembradas quando houve sonegação de impostos e cobrança de taxa pela emissão do boleto, práticas que eu e você sabemos ser igualmente ilegais, aliás muito mais que minha dívida, da qual tenho total ciência… Mas também tenho conhecimento de minhas condições atuais.
Vossa senhoria pode estar em crise também, mas enquanto seu filho estiver dormindo confortavelmente, o meu chorará de fome se acaso eu optar por render-me às suas ameaças e pagar o que lhe devo imediata e preferencialmente… Sua crise, não lhe baixa o nível social, a minha está furtando silenciosamente a dignidade e a pouca qualidade de vida que ainda resta…
Por fim, se ao receber esta correspondência, por um milagre, minha dívida já estiver quitada, favor desconsiderar o conteúdo desesperadamente aqui escrito.
Márcio Roberto Goes
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