sábado, 11 de maio de 2013

Neurônios e ideologia

Neurônios e ideologia


Somos todos adultos que pautam suas decisões políticas por considerações racionais, certo? Às vezes, mas devo admitir que fico tentado a responder a essa pergunta com um "quase nunca". Entre os vários "bugs" de nossa programação cerebral, destaca-se aquele que nos faz reagir a determinadas proposições políticas não com a cabeça, como seria desejável, mas com o fígado. É longa a lista de temas que nos levam a um posicionamento visceral: aborto, pena de morte, religião, legalização das drogas, porte de armas, direitos de homossexuais e, mais recentemente, ONU, invasão do Iraque e o governo George W. Bush.

Não estou afirmando que estes sejam assuntos invulneráveis ao toque da razão. É perfeitamente possível desenvolver argumentos em favor ou contra cada um dos tópicos acima bem como mudar de lado em relação a um ou mais deles, ainda que isso seja mais raro. O que estou dizendo é que, por herança genética ou cultural, chegamos quase que intuitivamente a uma posição e tendemos a ficar com ela, valorizando sobremaneira as evidências em favor do nosso campo e desprezando as que poderiam dar vantagem ao partido adversário. Pior, muitas vezes lançamo-nos tão obstinadamente na defesa de nossas convicções originais que acabamos abraçando teses que, numa análise mais detida, contrariam outros pontos de nosso sistema de crenças ou mesmo nossos interesses de médio e longo prazos.

Dois exemplos banais. Considera-se "de esquerda" defender o direito ao aborto e condenar a pena de morte. Eu próprio abraço essas duas teses. Mas não é necessário PhD em Aristóteles para perceber que seria mais lógico para os que rejeitam a interrupção voluntária da gravidez atacar também a pena capital. O primado da "santidade da vida" poderia assim aparecer em toda sua amplitude.

De modo análogo, a "direita" costuma entusiasmar-se com a prerrogativa dos cidadãos de bem de andar armados e, ao mesmo tempo, opor-se à liberação das drogas. Não há muita dúvida de que a consistência estaria mais bem servida pela defesa simultânea de ambos. O que está em jogo, afinal, é a liberdade e a responsabilidade individuais, seja para defender-se de bandidos, seja para fartar-se em prazeres hedonistas, ainda que a alto preço orgânico.

Um exemplo recente do noticiário internacional escancara todas as contradições e limites do que a língua inglesa qualifica como "partisanship" (partidarismo/parcialidade). Falo da decisão da Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Representantes dos EUA de aprovar uma resolução que qualifica como genocídio a matança de 1,5 milhão de armênios por turcos otomanos em 1915. A moção só deve ir a plenário em meados de novembro, mas já provoca reações.

Os turcos modernos, que não admitem nem por hipótese o genocídio, ficaram ressabiados e ameaçam tomar medidas contra Washington caso a resolução vá adiante. Elas incluem a diminuição ou o fim da cooperação militar com os americanos, que usam território turco como base logística para suas operações no Iraque. Pior, num lance claramente retaliatório, o Parlamento turco autorizou ontem as tropas do país a realizarem incursões no norte do Iraque para localizar e capturar rebeldes de etnia curda que se refugiam em território iraquiano. Há cerca de 60 mil soldados turcos dispostos ao longo da fronteira anatólio-iraquiana.

Analisando o caso apenas com a razão, estamos diante de um delírio: uma votação no único campo acerca do qual legisladores estão fisicamente impossibilitados de legislar --o passado-- ganha uma dimensão tal que compromete as relações presentes entre dois países aliados e ameaça, num futuro próximo, complicar ainda mais a guerra no Iraque. Não sou, devido a minhas inclinações políticas, de dar razão a Bush, mas ele está absolutamente certo ao afirmar que não cabe ao Congresso dos EUA, mas a historiadores, dizer o que houve em 1915.

Eles, aliás, já o fizeram. Não há dúvida de que a matança dos armênios foi um genocídio, aliás, o primeiro grande genocídio do século 20. Há abundante documentação histórica a respeito. Negá-lo é o equivalente de afirmar que os campos de extermínio de Adolf Hitler nunca existiram, ou seja, um "nonsense" completo. Na Turquia, entretanto, intelectuais que ousaram falar das atrocidades cometidas por seus avós contra os armênios foram ameaçados de prisão ou mesmo encarcerados com base no artigo 301 do Código Penal turco, que veda ofensas ao Estado e à "turquidade". A veemência da negação das autoridades é, se quisermos, uma prova adicional de que o crime foi de fato cometido.

Também há que se desconfiar das intenções dos congressistas norte-americanos. A resolução foi proposta por um deputado da Califórnia cujo distrito tem forte presença de eleitores de origem armênia. Até aí, tudo bem. Ele está de olho em votos étnicos. O que faz menos sentido é a presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, seguir com o trâmite da matéria mesmo quando está claro que sua eventual aprovação produzirá claros e palpáveis danos para a política externa do país. Não estou, é claro, sugerindo que o Congresso adote a hipocrisia e deixe de chamar as coisas pelo nome. Nem que volte a ser subserviente à Casa Branca.

Meu ponto é que não interessa aos EUA como Estado criar problemas diplomáticos com a Turquia nem complicar ainda mais a situação do Iraque. A região norte do país, o chamado Curdistão iraquiano, é a única que experimenta um pouco de paz, e ela poderá ser quebrada com a entrada de tropas turcas no cenário. Chega a ser ridículo colocar tanto em risco apenas para que o Legislativo se manifeste sobre um tema acerca do qual calou por 90 anos e poderia permanecer assim indefinidamente.

A única explicação para o caso é que Pelosi, os democratas e mesmo parte dos republicanos querem marcar posição, criando dificuldades para Bush no ponto em que ele é mais sensível: o desastre iraquiano. O problema é que, no ano que vem, ao que tudo indica, os democratas vencerão as eleições presidenciais e precisarão lidar com o Iraque. A estratégia que hoje pode parecer atraente do quanto pior melhor tende a revelar-se autodestrutiva. Um tiro no pé.

Não é preciso bola de cristal ou mais do que meia dúzia de neurônios interligados para perceber que o "partisanship" de Pelosi é limitado. A questão é que Pelosi, uma mulher inteligente como reconhecem até seus adversários, tem esses e muitos outros neurônios. Ela não os está utilizando como deveria porque os seres humanos tendemos a lidar com questões políticas e ideológicas de forma muito mais emocional do que racional --e isso num campo em que cada decisão deveria poder ser justificada e provada como um teorema. É por essas e outras que duvido da existência de um Projetista, pelo menos de um que possa ser chamado de inteligente.

Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

E-mail: helio@folhasp.com.br

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