segunda-feira, 10 de novembro de 2008

90 ANOS DA REVOLUÇÃO RUSSA

Marly Vianna
14/11/2007



As opiniões sobre a Revolução Russa são geralmente bastante polarizadas: ou furiosamente contra ou apaixonadamente a favor. Nos dias de hoje, quando muitos comemoram seu fim, surge uma outra posição que, sem se dar ao trabalho de criticá-la (pois já não se foi?), simplesmente a colocam num passado remoto, fora de moda, fora de época, jurássica.

É compreensível que assim seja. A Revolução Russa foi a primeira grande revolução proletária do mundo. Foi o primeiro acontecimento mundial a mostrar que o capitalismo não é o fim da história, que é possível constituir uma sociedade sem que um grupo humano explore outro, uma sociedade solidária para além de suas fronteiras nacionais. Essa é uma visão de mundo que a Revolução Russa concretizou e, por ter sido tão radical em sua transformação da sociedade capitalista, é natural que polarize opiniões: de um lado, como disse Marx, os que nada tinham a perder e todo um mundo a ganhar; de outro, aqueles que defendiam sua sobrevivência enquanto classe. Inevitável polarização, de idéias e de atitudes.

Para aqueles que se colocam na firme defesa da Revolução Russa, cabe entendê-la, tanto nos seus acertos, que foram imensos, quanto nos seus erros e descaminhos, que foram também imensos e que levaram a que se encerrassem ingloriamente 70 anos de socialismo.

Marx e Engels, como todos os revolucionários, esperavam que a revolução proletária ocorresse em país com alto nível não só econômico como cultural. Mas sabiam que não bastam as condições objetivas para que se dê uma revolução. Na Alemanha, que parecia cumprir todos os requisitos para a ocorrência e consolidação do socialismo, as vontades revolucionárias enfrentaram uma oposição tenaz e violenta, acabando por fracassar em seus intentos de transformação social. Já na Rússia, atrasada econômica e culturalmente, a guerra ajudou a enfraquecer não só o tzarismo absolutista quanto a burguesia vacilante do primeiro momento revolucionário. Por outro lado, a humanidade jamais viu um grupo de políticos como o primeiro grupo bolchevique que, sob a direção de Lênin, soube organizar e comandar o povo russo pelo caminho da revolução proletária.

Dá-se sempre a Revolução Russa como exemplo de uma revolução violenta, sangrenta, o que não é verdade. A tomada do Palácio de Inverno foi quase que pacífica. Violenta foi a reação à revolução. Sangrentos e violentos foram os ataques da Entente, países coligados, depois da guerra, para atacar a jovem República Soviética. Violenta foi a contra-revolução dentro do país. Realizada em meio ao caos da Grande Guerra, contabilizando as perdas sofridas em seu território para garantir a paz, enfrentando as poderosas forças coligadas contra ela, que lhe impuseram um verdadeiro cordão sanitário, que lhe isolaram atrás de uma “cortina de ferro”, a revolução havia sobrevivido e começava a consolidar uma nova sociedade. E isso não teria sido possível sem o apoio maciço da população. Em 1930 o país havia retomado o nível econômico de 1913, antes da 1ª Guerra Mundial, e parecia que teria agora, vencidos tantos obstáculos, a paz necessária para reconstruir-se - esperança logo frustrada pela II Guerra.

Disse Maiakósviski, em um de seus poemas, que é impossível pensar na revolução com um prego no sapato. Era preciso criar as bases materiais para alicerçar sobre elas o socialismo. Nisso a revolução teve pleno êxito: saúde gratuita e ao alcance de todos, casas sendo construídas a ritmo vertiginoso e distribuídas à população, educação para todos, com um mínimo de oito anos de escolaridade obrigatória, transporte subsidiado e praticamente gratuito. Os êxitos econômicos foram imensos, mas não bastam. Uma série de situações históricas dificultaram – e muitas vezes impediram mesmo – a caminhada na direção de uma sociedade socialista – fundamentalmente humanista.

Nesse ponto, o fenômeno Stalin deve ser analisado, porque o que passou a ser chamado de stalinismo, isto é, o conjunto de situações históricas que configuraram os rumos da revolução, e que explicam, inclusive o comportamento de seus dirigentes, foi o responsável pelos descaminhos do marxismo e da revolução.

Stalin era o representante mais coerente de uma situação histórica, de uma Rússia atrasada, preconceituosa, sem tradição de respeito ao indivíduo, de uma Rússia muito mais autêntica do que a Rússia culta e humanista representada por Lênin, Trótski, Bukárin, Zínoviev, Kámenev e tantos outros. Dentro das inúmeras dificuldades por que passava a revolução, a personalidade de Stálin ganhou força porque sua atuação, e os apelos místicos a que era dado, chegaram - exatamente pelo que tinham de apelativos -, ao coração de uma massa que fizera a revolução, lutava por ela, mas estava exausta de sacrifícios e dificuldades.

O PCUS, depois da sangria da guerra civil, estava profundamente debilitado. Os melhores quadros bolcheviques haviam morrido na luta e as dificuldades imensas a serem enfrentadas foram fazendo, como notou Isaac Deutscher , com que o partido substituísse o povo, que soubera tão bem conduzir no início da revolução. Depois o comitê central substituiu o partido, o birô político o comitê central e Stalin pôde dominar o birô político.

Por ter um pensamento teórico e político pouco elaborado, Stalin foi um mestre nas simplificações e abastardamento do marxismo, o que o fez com que qualquer um pensasse entendê-lo bem, sem qualquer esforço ou dificuldade. Foi um sucesso. Sua doutrina, ainda segundo Deutscher, “sem raízes profundas em idéias e sem qualquer originalidade em suas previsões, resumem uma corrente de opinião ou emoção poderosa e não expressada até então. (...) Uma de suas características notáveis era a de sentir as tendências psicológicas subterrâneas prevalecentes no partido e imediações, esperanças não confessadas e desejos tácitos, de que se constituiu porta-voz.”

A Rússia, premida pelas dificuldades internas e ataques externos, viu-se forçada, para sobreviver, a atitudes extremas, como foi a industrialização e a coletivização forçada, que levou mais de 100 milhões de camponeses a abandonarem suas primitivas explorações. A alfabetização, também forçada, fez com que milhões de analfabetos aprendessem a ler e escrever. Tudo tinha que ser forçado, até mesmo a mudança de costumes arraigados, como a poligamia de certas regiões, ou o profundo desprezo pela mulher, que passou a ser tratada com igualdade pela República soviética. Ivan o Terrível, Pedro o Grande e outros reformadores de outras nações parecem anões ao lado do vulto gigantesco do secretário-geral, escreveu Deutscher: “Um homem comum, de idéias medianas, com punhos e pés de gigante”.

Construir o socialismo na Rússia, nas circunstâncias históricas em que isso foi possível, revolucionar o país por completo, era uma tarefa hercúlea. Era preciso “forçar”. E nesse processo, foram sendo destruídos postulados fundamentais do marxismo, como a democracia interna do partido, a democracia socialista para o povo, o respeito ao ser humano. Desse processo Stalin foi tanto artífice quanto vítima.

No espaço que temos não podemos nos aprofundar em tantas questões de fundamental importância para a compreensão da Revolução Russa. Quero então frisar que para opinar sobre a Revolução Russa com um mínimo de seriedade é preciso estudá-la, entendê-la e explicá-la, saber porque os acontecimentos históricos se desenrolaram da forma em que ocorreram e não de outra.

Estar ao lado dos revolucionários russos não quer dizer esquecer os erros que cometeram. É preciso abominar as barbaridades cometidas na época do chamado stalinismo, sem esquecer que a Revolução Russa foi a primeira tentativa de criação de um estado proletário na história da humanidade, e que seu povo pagou alto preço pelo sonho de construir uma sociedade igualitária. Pagou com 20 milhões de vidas a derrota do nazi-fascismo. Tirou de suas mais básicas necessidades recursos para ajudar a manter a paz no mundo, o respeito à autodeterminação dos povos, a luta contra o colonialismo, o apoio à Revolução Cubana. É patético ouvir pessoas que jamais foram capazes de desejar algo além de mesquinhas necessidades, vivendo num país carente de quase tudo, julgando com altivo desprezo e espantosa superficialidade um povo que foi capaz de feitos e sacrifícios inauditos para construir um mundo verdadeiramente humano.

Evidentemente, aqueles que estamos ao lado da Revolução Russa sofremos uma derrota, assim como aqueles que prezam a paz e querem fazer frente à barbárie em que nos encontramos. Mas ser derrotado não quer dizer não ter razão. Como expressou um revolucionário, Buonaventura Durutti: “Não temos medo de ruínas – nós herdaremos a Terra. Não há a menor dúvida quanto a isso. A burguesia pode fazer explodir e arruinar seu próprio mundo antes de abandonar o palco da História. Nós trazemos o novo mundo em nossos corações.”

Marly Vianna - Professora de História da Universidade Federal de São Carlos.

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