Filha de Che lembra pai com ternura
Aleida, hoje com 45 anos, fala sobre temas atuais e recorda momentos que passou junto ao seu pai quando criança
Marcelo Netto Rodrigues, da Redação
Aleida, hoje com 45 anos, fala sobre temas atuais e recorda momentos que passou junto ao seu pai quando criança
Marcelo Netto Rodrigues, da Redação
Brasil de Fato- Você tinha seis anos quando seu pai foi assassinado. Quem lhe deu notícia e onde você estava?
Aleida Guevara - Eu ia cumprir sete anos em novembro e meu pai foi assassinado em outubro. Fazia dias que em Cuba já se ventilava a notícia, mas não havia uma certeza absoluta. Então, já haviam fotos grandes dele coladas nas paredes das ruas, trazendo alguns dizeres. E me lembro de estar dentro de um carro, vendo estas fotos do meu pai por toda a parte e eu não entendia por que justamente naquele dia havia tantas fotos do meu pai. Como eu ainda era pequena, não podia ler de forma corrida, com velocidade. Então, não sabia o que os cartazes diziam. E perguntava: "Por que o meu pai? Por que o meu pai". E ninguém me respondia. Alguns choravam, outros abaixavam a cabeça.
BF - Como você se deu conta?
Aleida - Numa dessas noites, me levaram à casa em que Fidel morava com a "tia" Célia Sánchez. Ela me disse que o meu "tio" (como Aleida chama Fidel) queria falar comigo. Então, subi encantada para o último andar onde ele vivia e vi que minha irmã mais velha (Hildita, filha única do primeiro casamento de Che, com Hilda Gadea) estava lá. E pensei: "Que estranho a Hildita estar aqui". E Fidel nos disse: "Eu recebi uma carta do seu pai que diz que se ele morrer em combate, ele não quer que vocês chorem por ele porque ele foi um homem que viveu como queria e morreu como queria. Portanto não se pode chorar por um homem que tenha feito isso". Então, Fidel pediu a nossa palavra de que não iríamos chorar pelo meu pai se isto um dia viesse a acontecer. E nós dissemos sim. A questão é que meu "tio" queria nos dar a notícia, mas minha mãe queria dar-lhe ela própria. De toda maneira, ele nos quis preparar. Ele não havia recebido nenhuma carta deste tipo, era simplesmente uma forma de preparar uma menininha a quem vão dizer que nunca mais verá o seu papai.
BF - Quantos dias já haviam passado da morte do seu pai?
Aleida - Uns dez dias depois de a notícia estar rondando. Isso porque a notícia oficial só foi dada ao povo cubano, depois de confirmada, no dia 18 de outubro, e meu pai havia morrido no dia 9. Bom, no dia seguinte ao nosso encontro com Fidel, me lembro que eu tinha uma inflamação de dente, e me levaram novamente à casa dele, e a tia Célia tentou me dar um remédio, que era muito ruim. Aí, Célia me diz: "Leva este prato de sopa de milho para a tua mãe que está no meu quarto". Eu fiquei feliz porque há dias minha mãe estava cortando cana como parte de um trabalho voluntário e, então, quando chego com o prato de sopa minha mãe está chorando, e ela me diz: "Senta na cama, que eu vou falar contigo". Eu não lembro de minha mãe ter dito algo como "seu papai morreu". O que recordo é que minha mãe tirou uma carta e que começou a lê-la. A carta é aquela que diz que "quando lerem este carta é que eu não estarei mais entre vocês, seu pai foi um homem que sempre atuou como pensa, segundo suas convicções, etc". Ao final da carta, ele diz: "recebam um beijo grande do seu papai". E esta menininha de seis anos uniu o início ao final da carta e aí eu me dei conta que meu papai havia morrido. Que eu não teria mais papai. Exatamente esta foi a minha sensação e não de que ele havia morrido.
BF - E qual foi a reação de sua mãe?
Aleida - Minha mãe, que sempre foi um píer que um se aproxima quando está em dificuldade, parecia completamente destroçada. Então eu me incorporei e disse: "Mamãe, não podemos chorar, meu papai morreu como ele queria e não se deve chorar por homens assim". Ela não imaginava o que Fidel havia me dito no dia anterior, que no final, sem querer acabou não somente me ajudando a receber a notícia como me ajudou a ajudar minha mãe.
BF - Como você passou esta noite?
Aleida - Dormimos cedo, e no outro dia quando amanhecemos eu tinha uma espécie de grade posta de um lado da minha cama, na mesma cama em que eu dormi com minha mãe. E perguntei: "O que é isto, mãe? Faz tempo que eu já durmo sozinha e nunca caí". Não, é que o seu "tio" veio durante a noite e como ele não sabe que você já é "grandinha" pôs a proteção para que você não caísse. Então, me enchi de ternura porque este homem grande estava preocupado por uma menininha que poderia cair de sua cama. Foi um gesto muito lindo de Fidel que eu sempre recordarei.
BF - E os dias seguintes?
Aleida - Meu "tio" quis nos proteger um pouco. Para nos dar um pouco de descanso, nos mandou para uma casa um pouco mais afastada para que ninguém nos incomodasse por um tempo porque todos na escola diziam: "Os filhos do Che, que pena". E pouco tempo depois, ele me manda buscar dizendo que quer me dar um presente. Minha mãe disse: "Eu sei que seu tio quer te dar um presente, mas você, por princípio, não pode aceitar nada". Fidel disse: "Eu quero te dar alguma coisa de presente. O que você quer?" Eu respondi: "Nada". Ele disse: "Uma menina que não queira nada é muito estranho. Diga-me o que quer". Respondi: "Quero um globinho terrestre para estudar". "Sim, mas mais que isso", disse ele. No apartamento em que estávamos haviam quatro quadros, uma pintura de uma guajira (camponesa), um guajiro, uma guajirita e um guajirito, ou seja, uma família de camponeses independente em casa quadro. E eu sempre fui apaixonada pelo olhar do guajirito. E eu disse: "Eu quero este", apontando com meu dedinho. E eu ainda tenho este quadro na minha casa até hoje. Fidel se desprendeu dele e o deu para mim. Estas coisas te fazem pensar no privilégio que eu tenho tido como ser humano. Não somente ser filha de um homem e uma mulher tão especial, mas sim ter a possibilidade de ter um contato mais humano com um homem tão lindo como Fidel também.
BF - O que você recorda da última janta em família antes do seu pai partir para Bolívia, na qual ele apareceu já disfarçado como Rámon, supostamente um amigo de Che?
Aleida - Minha mãe havia advertido o meu pai de que eu conhecia muito bem os seus gostos. Que ele teria que ter cuidado com isso. Quando percebi que Rámon (na verdade Che) se serviu de vinho tinto puro - já que eu tinha a lembrança de que meu pai sempre tomava o vinho com água em casa -, e ele despejou o vinho no copo sem água, eu dou um pulo e grito: "Você não é amigo do meu papai nada porque meu papai põe água no vinho e é assim como se toma". Minha mãe me disse que o homem não se cabia na roupa de tão orgulhoso que estava de sua filha por ter defendido os seus gostos com tanta paixão. Quando acabamos de jantar, cai e machuquei a cabeça numa mesa de mármore rosa no meio de uma brincadeira com meus irmãos. E aí, meu pai me tomou em seus braços, já que também era médico e sabia que eu havia acabado de comer e havia batido fortemente a cabeça. De alguma maneira, ele me comunica um sentimento. Voltamos a brincar e eu digo a minha mãe que quero lhe contar um segredinho. E segredinhos de crianças de cinco, seis anos sempre saem a plena voz, e aí eu digo: "Mamãe, eu acho que aquele homem está apaixonado por mim". E para ela foi tremendo, mas para o meu pai mais ainda e se emocionou muito neste momento porque não podia me explicar por que queria de uma forma especial.
BF- Qual a primeira recordação que tem do seu pai?
Aleida - É muito nebuloso. Talvez, uma noite que ele me põe de castigo no meu quarto. Ele estava jantando com uns amigos argentinos, e como a janta não era oficial, a comida vinha do abastecimento normal de nossa casa, da "libreta", que não era suficiente. Nesta época, as crianças tomavam café-da-manhã na escola e almoçavam também por lá, depois voltávamos para casa, nos banhávamos e dormíamos sem problemas. Mas como eu vi os preparativos de uma festa, eu disse que também queria participar e voltar a comer. Como se explica para uma menina que não tem comida suficiente para ela e para os convidados? Meu pai tentou me explicar e eu insisti: "Não, eu quero comer com eles e pronto". E começo a chorar. Ele me põe no quarto e me diz: "Quando você parar, me chame que eu venho te buscar". Voltou à mesa, e percebeu que sua filha não chorava mais. Ele achou tanta graça que me sentou em suas pernas e me deu de sua própria comida. Muito pedagogo não era, mas era meu papai.
BF - Você consegue imaginar como seria a fisionomia do seu pai hoje com 78 anos, se estivesse vivo?
Aleida - Não me passa pela cabeça e não me interessa. Sabe por quê? Porque um dia quando eu era adolescente eu disse ao meu irmão Camilo (engasga um pouco para falar): "Se meu papai estivesse aqui, poderíamos discutir com ele coisas, aprender coisas dele, imagine quantas coisas poderíamos fazer (...) E Camilo, que é muito mais alto que eu, me olhou de sua altura e me disse: "Se o papai estivesse vivo, ele não seria nosso papai". E é verdade. E aprendi a lição que a vida você não pode mudar. E esta é ponto. Então, para que tentar imaginar coisas que não são? A imagem que tenho do meu pai está ali como nas fotos que vi ou como as que tenho em minhas recordações que aparecem como flashes.
BF- É possível recordar do momento em que foi tirada aquela que é considerada a última foto em família?
Aleida - Não. Eu tinha quatro anos e meio. Contudo, lembro de algo mais bonito. Nestes mesmos dias da foto, Ernestito (último filho de Che) acaba de nascer e eu vejo um homem vestido de militar, que agora eu sei que era meu pai. Imagina uma menina baixinha olhando para um homem que lhe parece enorme com uma mão grande está tocando a cabeça do meu irmãozinho que está apoiado no ombro da minha mãe, com um gesto de ternura tão extraordinário, que eu estou com 45 anos e me recordo perfeitamente bem desta cena. E tenho certeza de que ninguém me a contou. Fecho os olhos e a estou vendo. O que me chama a atenção é o gesto desta mão grande tocando com tanta ternura a cabecinha do bebê. Depois, me coloquei a pensar, a inventar, quantas coisas meu pai poderia estar pensando neste momento porque logo ele estará deixando nossa casa, não sabe o que vai pensar meu irmão um dia quando cresça e que talvez nunca possa voltá-lo a ver.
BF - Quantos anos tem sua mãe hoje (ela está com 71 ou 72 anos)?
Aleida - Não. Não digo nada sobre ela. Ela nunca dá entrevistas sobre o meu pai. Jamais. Nunca. Ela não quer.
BF - Por quê?
Aleida - Porque não quer. Você quer uma razão maior do que não querer fazer uma coisa? Internamente ela respeita muito a sua intimidade para compartilhá-la com os outros. Muitos sugeriram que ela escrevesse suas memórias. E ela acaba de escrevê-las, e quem sabe, será logo publicada. Esperemos isso.
Fonte Brasil de Fato
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