A VERDADEIRA RAZÃO DO CELIBATO CLERICAL
O escândalo da pedofilia estourado no seio da Igreja Católica, que levou a um dos maiores constrangimentos já sofridos por um papa em fim de pontificado, a uma crise humilhante do clero norte-americano e à exposição de abusos criminosos de religiosos, há muito tempo abafados no mundo inteiro - e, claro, também no Brasil -, tem levado a uma compreensível discussão a respeito do sentido do celibato clerical. Alguns representantes da Igreja têm-se saído muito mal, ao tentar passar a idéia de que uma coisa (pedofilia) não tem nada que ver com a outra (celibato) porque "pessoas casadas também fazem sexo com menores" e "nem todos os pedófilos são padres" (pudera!).
Em recente artigo na Folha, um monge beneditino e professor de Teologia tentava minimizar a incidência da pedofilia no clero dos Estados Unidos, referindo-se a uma estatística científica segundo a qual "apenas" 6% dos padres de lá tiveram contato sexual com menores - "4% deles com adolescentes e o restante com crianças". E o monge concluía: "Quer dizer que 94% dos sacerdotes norte-americanos se mantêm isentos de culpa nesse setor." Para se ter melhor idéia da enormidade desse abuso, em termos porcentuais, é só imaginar que no total da população da cidade de São Paulo houvesse (considerando os 6%) mais de 600 mil pedófilos - 400 mil "dedicados" a adolescentes e 200 mil a crianças! (Como protegeríamos nossos filhos desse colossal exército de tarados?) Mas é evidente que a alta incidência desse grave desvio de comportamento, no clero, não se repete no todo da sociedade, o que leva a se considerar o celibato como um dos fatores (não o único, é óbvio) da grande freqüência dessa prática, no meio clerical.
Mas o que parece mais estranho, em todo o debate que ora se trava em torno do celibato clerical, no qual não faltam doutas citações bíblicas, conceitos teológicos sobre a "vida indivisa", referências históricas e hermenêuticas conciliares - com citações dos Concílios de Elvira (do ano 307), de Latrão (1139) e outras tecnicalidades interpretativas das normas católicas -, é o fato de não se fazer referência alguma à verdadeira razão pela qual, ao longo dos séculos, a Igreja Católica Apostólica Romana tem imposto uma regra que não é dogma, não é exigência do Direito Canônico e significa uma violência contra a racionalidade e o espírito lógico, tão caros ao pensamento aristotélico-tomista, um dos mais preciosos fundamentos teóricos da doutrina católica.
O celibato é ilógico porque, em termos de princípio, vai de encontro a um dos sacramentos mais valiosos da Igreja, expressão maior do mandamento primordial de geração da vida, contido na sentença "crescei e multiplicai-vos". Por que estranhos desígnios aqueles que assumem a vocação sacerdotal devem ser impedidos de criar o que é a célula matriz, o núcleo central da sociedade humana - ou seja, a família? Que raio de coerência existe em proibir de formar família os maiores defensores da família?
O argumento que tem sido usado e repetido ad nauseam pelos porta-vozes da Igreja, em favor do celibato clerical, diz respeito, em última instância, a uma questão de concentração no trabalho - na função religiosa - que exigiria o afastamento de quaisquer outros compromissos, especialmente os da natureza familiar. Dentro desse raciocínio, a família - fulcro da procriação e da perpetuação da espécie humana, feita à imagem e semelhança de Deus - seria uma espécie de entrave, de cerceamento ao pleno ministério sacerdotal. Como se explicaria, então, o fato de em todas as demais religiões a família, em lugar de atrapalhar, ser sempre um importante apoio, para os que se dedicam, integralmente, à função religiosa, sejam evangélicos, judeus, muçulmanos, budistas ou que demais crenças professem e cultos conduzam? Só a família do religioso católico haveria de atrapalhar?
O celibato também é ilógico porque os padres sempre exerceram, dentro e fora do confessionário, um papel de conselheiros preferenciais, para os devotos, sobre questões de relacionamento conjugal, de educação de filhos e demais problemas específicos da família, sobre os quais jamais tiveram vivência direta - tirando a experiência de sua própria infância ou juventude, com pais e irmãos. É claro que esses religiosos não são os únicos a pôr em prática o exercício da "inexperiência aconselhadora". Conhecemos o caso de um cidadão que, tendo fracassado em toda as suas relações afetivas e, ao mesmo tempo, em todas as profissões tentadas (de engenheiro, filósofo, industrial plástico, bailarino e psicólogo), simplesmente resolveu adotar a profissão de psicoterapeuta de casais! Mas não chegaríamos ao exagero de afirmar que, quando o confessionário faz as vezes do divã, sempre repete o esquisito método de opinar sobre o desconhecido...
Agora, indo ao ponto central da questão, que é a verdadeira razão do celibato clerical, é preciso dizer, sem disfarces, que a razão é uma só: não é teológica, nem filosófica, nem ética, nem religiosa, mas estritamente econômica, patrimonial, de sucessão hereditária e previdenciária. A Igreja Católica é a herdeira testamentária ou legatária de todas as pessoas que entram numa de suas ordens religiosas ou passam a integrar sua grande organização burocrática. Em praticamente todas as legislações dos povos do mundo, desde tempos imemoriais, na ordem da sucessão hereditária os filhos são sempre privilegiados e os cônjuges também ocupam lugar importante - o que equivale a dizer que as leis das nações sempre protegem a continuidade da sustentação material das famílias, na ausência de seus provedores originais. Em nosso Direito Civil, por exemplo, havendo herdeiros necessários, o testador só pode dispor de metade da herança. Por ocasião de inventários e partilhas, tratando-se de famílias em que há herdeiros pertencentes a ordens religiosas católicas, a primeira preocupação costuma ser a de "pagar o quinhão da Santa Sé" - e diga-se de passagem que esta sempre foi zelosa e muito rápida na cobrança do que lhe cabe. Sem celibato a Igreja teria de enfrentar a concorrência dos herdeiros necessários de seus compulsórios testadores.
Por outro lado, em casos de morte, de separação conjugal, de desamparo de órfãos, da necessidade de fixação de pensões e prestações de alimentos para filhos e/ou cônjuges de sacerdotes - caso não houvesse o celibato clerical obrigatório -, até que ponto a Igreja Católica não poderia ver-se obrigada a assumir, civilmente, uma responsabilidade - ou ônus econômico-financeiro - com a qual, mesmo com seu imenso patrimônio, não desejaria arcar?
É preciso, enfim, que a Igreja, por seus representantes e porta-vozes, assuma uma posição transparente nesse debate e argumente a partir de seus reais - e não escamoteados - motivos.
***
Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor e produtor cultural.
O escândalo da pedofilia estourado no seio da Igreja Católica, que levou a um dos maiores constrangimentos já sofridos por um papa em fim de pontificado, a uma crise humilhante do clero norte-americano e à exposição de abusos criminosos de religiosos, há muito tempo abafados no mundo inteiro - e, claro, também no Brasil -, tem levado a uma compreensível discussão a respeito do sentido do celibato clerical. Alguns representantes da Igreja têm-se saído muito mal, ao tentar passar a idéia de que uma coisa (pedofilia) não tem nada que ver com a outra (celibato) porque "pessoas casadas também fazem sexo com menores" e "nem todos os pedófilos são padres" (pudera!).
Em recente artigo na Folha, um monge beneditino e professor de Teologia tentava minimizar a incidência da pedofilia no clero dos Estados Unidos, referindo-se a uma estatística científica segundo a qual "apenas" 6% dos padres de lá tiveram contato sexual com menores - "4% deles com adolescentes e o restante com crianças". E o monge concluía: "Quer dizer que 94% dos sacerdotes norte-americanos se mantêm isentos de culpa nesse setor." Para se ter melhor idéia da enormidade desse abuso, em termos porcentuais, é só imaginar que no total da população da cidade de São Paulo houvesse (considerando os 6%) mais de 600 mil pedófilos - 400 mil "dedicados" a adolescentes e 200 mil a crianças! (Como protegeríamos nossos filhos desse colossal exército de tarados?) Mas é evidente que a alta incidência desse grave desvio de comportamento, no clero, não se repete no todo da sociedade, o que leva a se considerar o celibato como um dos fatores (não o único, é óbvio) da grande freqüência dessa prática, no meio clerical.
Mas o que parece mais estranho, em todo o debate que ora se trava em torno do celibato clerical, no qual não faltam doutas citações bíblicas, conceitos teológicos sobre a "vida indivisa", referências históricas e hermenêuticas conciliares - com citações dos Concílios de Elvira (do ano 307), de Latrão (1139) e outras tecnicalidades interpretativas das normas católicas -, é o fato de não se fazer referência alguma à verdadeira razão pela qual, ao longo dos séculos, a Igreja Católica Apostólica Romana tem imposto uma regra que não é dogma, não é exigência do Direito Canônico e significa uma violência contra a racionalidade e o espírito lógico, tão caros ao pensamento aristotélico-tomista, um dos mais preciosos fundamentos teóricos da doutrina católica.
O celibato é ilógico porque, em termos de princípio, vai de encontro a um dos sacramentos mais valiosos da Igreja, expressão maior do mandamento primordial de geração da vida, contido na sentença "crescei e multiplicai-vos". Por que estranhos desígnios aqueles que assumem a vocação sacerdotal devem ser impedidos de criar o que é a célula matriz, o núcleo central da sociedade humana - ou seja, a família? Que raio de coerência existe em proibir de formar família os maiores defensores da família?
O argumento que tem sido usado e repetido ad nauseam pelos porta-vozes da Igreja, em favor do celibato clerical, diz respeito, em última instância, a uma questão de concentração no trabalho - na função religiosa - que exigiria o afastamento de quaisquer outros compromissos, especialmente os da natureza familiar. Dentro desse raciocínio, a família - fulcro da procriação e da perpetuação da espécie humana, feita à imagem e semelhança de Deus - seria uma espécie de entrave, de cerceamento ao pleno ministério sacerdotal. Como se explicaria, então, o fato de em todas as demais religiões a família, em lugar de atrapalhar, ser sempre um importante apoio, para os que se dedicam, integralmente, à função religiosa, sejam evangélicos, judeus, muçulmanos, budistas ou que demais crenças professem e cultos conduzam? Só a família do religioso católico haveria de atrapalhar?
O celibato também é ilógico porque os padres sempre exerceram, dentro e fora do confessionário, um papel de conselheiros preferenciais, para os devotos, sobre questões de relacionamento conjugal, de educação de filhos e demais problemas específicos da família, sobre os quais jamais tiveram vivência direta - tirando a experiência de sua própria infância ou juventude, com pais e irmãos. É claro que esses religiosos não são os únicos a pôr em prática o exercício da "inexperiência aconselhadora". Conhecemos o caso de um cidadão que, tendo fracassado em toda as suas relações afetivas e, ao mesmo tempo, em todas as profissões tentadas (de engenheiro, filósofo, industrial plástico, bailarino e psicólogo), simplesmente resolveu adotar a profissão de psicoterapeuta de casais! Mas não chegaríamos ao exagero de afirmar que, quando o confessionário faz as vezes do divã, sempre repete o esquisito método de opinar sobre o desconhecido...
Agora, indo ao ponto central da questão, que é a verdadeira razão do celibato clerical, é preciso dizer, sem disfarces, que a razão é uma só: não é teológica, nem filosófica, nem ética, nem religiosa, mas estritamente econômica, patrimonial, de sucessão hereditária e previdenciária. A Igreja Católica é a herdeira testamentária ou legatária de todas as pessoas que entram numa de suas ordens religiosas ou passam a integrar sua grande organização burocrática. Em praticamente todas as legislações dos povos do mundo, desde tempos imemoriais, na ordem da sucessão hereditária os filhos são sempre privilegiados e os cônjuges também ocupam lugar importante - o que equivale a dizer que as leis das nações sempre protegem a continuidade da sustentação material das famílias, na ausência de seus provedores originais. Em nosso Direito Civil, por exemplo, havendo herdeiros necessários, o testador só pode dispor de metade da herança. Por ocasião de inventários e partilhas, tratando-se de famílias em que há herdeiros pertencentes a ordens religiosas católicas, a primeira preocupação costuma ser a de "pagar o quinhão da Santa Sé" - e diga-se de passagem que esta sempre foi zelosa e muito rápida na cobrança do que lhe cabe. Sem celibato a Igreja teria de enfrentar a concorrência dos herdeiros necessários de seus compulsórios testadores.
Por outro lado, em casos de morte, de separação conjugal, de desamparo de órfãos, da necessidade de fixação de pensões e prestações de alimentos para filhos e/ou cônjuges de sacerdotes - caso não houvesse o celibato clerical obrigatório -, até que ponto a Igreja Católica não poderia ver-se obrigada a assumir, civilmente, uma responsabilidade - ou ônus econômico-financeiro - com a qual, mesmo com seu imenso patrimônio, não desejaria arcar?
É preciso, enfim, que a Igreja, por seus representantes e porta-vozes, assuma uma posição transparente nesse debate e argumente a partir de seus reais - e não escamoteados - motivos.
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Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor e produtor cultural.
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