"Quem descobriu o Brasil foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda assim produziu milagres de fé no Extremo Ocidente". (Caetano Veloso, Milagres do Povo)
Comemorar é, literalmente, lembrar junto. É recordar - pensando com o coração - a conflitante saga do "cobrimento" que nos constituiu como massa que deve virar povo, superando a ninguendade. E como país que deve virar nação, superando a subordinação.
Nenhuma celebração, portanto. Mas reflexão, entendimento, ação transformadora. Chega de encobrimento! Somos indo-afro-europeus, isto é, bugres-negros-lusos, nesta ordem, inversa à da dominação colonialista. Somos ainda um vir a ser, na contramão da epopéia lusitana que realizava a profecia pós-Camoniana de Fernando Pessoa: " a busca de quem somos na distância de nós, e com febre de ânsia".
Pessoas brasileiras, buscamos febrilmente nossa realização com a ansiedade de quem suporta cinco séculos de escravidão e exclusão. Procuramos em rezas, passes, mandingas, gingas e gritos de gol (tantas vezes mal anulados) a consciência, a justiça, a solidariedade e a República. Dentro de nós.
Mas só aí não basta. Os que mandam desde 1500 nos querem isolados, individualistas, dispersos, na caravela-presídio do "cada um por si". Egoísmo como virtude é o auriverde cinzento pendão. Também na globalização: a matriarca do neoliberalismo, dona Tachter, decretou que "não há mais sociedade, mas apenas indivíduos".
Façamos a nova data! Da virada, do redescobrimento ("o Brazil não conhece o Brasil") não apenas cronológico: no lugar do macho, branco, dono de gado e gente, o sujeito coletivo feminino-masculino-plural que se reconhece na longa marcha, ao som das violas caipiras, dos atabaques vigorosos, na defesa do direito à dignidade, caetaneando Maiakovski (aquele que disse que "em algum lugar do mundo, talvez no Brasil, há uma pessoas feliz"): "gente é pra brilhar, não pra morrer de fome". Prefiramos a Luzia, mulher de Lagoa Santa, que lutou com sua tribo pela vida em nosso chão há 11500 anos, ao Cabral quinhentista da conquista de imposição do império e da fé mercantilista.
Celebremos, ainda assim, o grande dia, do cotidiano de quem abriu estradas, alargou pastos, semeou cana, café, laranja e feijão. De quem ergueu igrejas, cidades, casas onde não moraria. De quem botou a mesa onde jamais comeria. E moveu fábricas por minguado salário. Cinco séculos de dizimação dos povos nativos e escravidão dos povos da África, mas também de engenho, arte e suor negro, indígena e popular. Teimosa, malandra, operária e esperançosa resistência! João Ninguém, Maria Maria, Zé das Couves, Ana que ama e canta a terra em que nasceu. Construtores anônimos do Brasil!
Dando nome: Pindorama, a terra das palmeiras, a terra sem males ("antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade", proclamou Oswald de Andrade, um século depois da pseudo-independência anunciada à beira-riacho pelo príncipe português). Com a conquista, as denominações d'além mar: em 30 anos, fomos Ilha de Vera Cruz, Terra Nova, Terra dos Papagaios, Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Terra de Santa Cruz do Brasil, Terra do Brasil e Brasil. Crise de identidade? Tantos nomes para uma só realidade: latifúndio, monocultura, escravidão, patriarcalismo, dependência externa, exploração, chacinas. Justiça dos ricos, dos pistoleiros, das emboscadas, da impunidade. Melhor seria, agora, nos rebatizarmos: Terra de Tanta Cruz.
Fora com os festejos balofos e bolorentos que entediam os vivos e não ressuscitam os mortos! Esqueçamos o relojão que determina aos videotas, com enorme atraso, a descoberta que devemos fazer desde que nascemos! Viva a comemoração na batalha (razão de vida) pelo bolo repartido, pela diversidade respeitada, da soberania popular reconquistada!
Chico Alencar, Professor de História (UFRJ), é autor do livro BR-500 - Um guia para a redescoberta do Brasil (Editora Vozes), entre outros.
Comemorar é, literalmente, lembrar junto. É recordar - pensando com o coração - a conflitante saga do "cobrimento" que nos constituiu como massa que deve virar povo, superando a ninguendade. E como país que deve virar nação, superando a subordinação.
Nenhuma celebração, portanto. Mas reflexão, entendimento, ação transformadora. Chega de encobrimento! Somos indo-afro-europeus, isto é, bugres-negros-lusos, nesta ordem, inversa à da dominação colonialista. Somos ainda um vir a ser, na contramão da epopéia lusitana que realizava a profecia pós-Camoniana de Fernando Pessoa: " a busca de quem somos na distância de nós, e com febre de ânsia".
Pessoas brasileiras, buscamos febrilmente nossa realização com a ansiedade de quem suporta cinco séculos de escravidão e exclusão. Procuramos em rezas, passes, mandingas, gingas e gritos de gol (tantas vezes mal anulados) a consciência, a justiça, a solidariedade e a República. Dentro de nós.
Mas só aí não basta. Os que mandam desde 1500 nos querem isolados, individualistas, dispersos, na caravela-presídio do "cada um por si". Egoísmo como virtude é o auriverde cinzento pendão. Também na globalização: a matriarca do neoliberalismo, dona Tachter, decretou que "não há mais sociedade, mas apenas indivíduos".
Façamos a nova data! Da virada, do redescobrimento ("o Brazil não conhece o Brasil") não apenas cronológico: no lugar do macho, branco, dono de gado e gente, o sujeito coletivo feminino-masculino-plural que se reconhece na longa marcha, ao som das violas caipiras, dos atabaques vigorosos, na defesa do direito à dignidade, caetaneando Maiakovski (aquele que disse que "em algum lugar do mundo, talvez no Brasil, há uma pessoas feliz"): "gente é pra brilhar, não pra morrer de fome". Prefiramos a Luzia, mulher de Lagoa Santa, que lutou com sua tribo pela vida em nosso chão há 11500 anos, ao Cabral quinhentista da conquista de imposição do império e da fé mercantilista.
Celebremos, ainda assim, o grande dia, do cotidiano de quem abriu estradas, alargou pastos, semeou cana, café, laranja e feijão. De quem ergueu igrejas, cidades, casas onde não moraria. De quem botou a mesa onde jamais comeria. E moveu fábricas por minguado salário. Cinco séculos de dizimação dos povos nativos e escravidão dos povos da África, mas também de engenho, arte e suor negro, indígena e popular. Teimosa, malandra, operária e esperançosa resistência! João Ninguém, Maria Maria, Zé das Couves, Ana que ama e canta a terra em que nasceu. Construtores anônimos do Brasil!
Dando nome: Pindorama, a terra das palmeiras, a terra sem males ("antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade", proclamou Oswald de Andrade, um século depois da pseudo-independência anunciada à beira-riacho pelo príncipe português). Com a conquista, as denominações d'além mar: em 30 anos, fomos Ilha de Vera Cruz, Terra Nova, Terra dos Papagaios, Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Terra de Santa Cruz do Brasil, Terra do Brasil e Brasil. Crise de identidade? Tantos nomes para uma só realidade: latifúndio, monocultura, escravidão, patriarcalismo, dependência externa, exploração, chacinas. Justiça dos ricos, dos pistoleiros, das emboscadas, da impunidade. Melhor seria, agora, nos rebatizarmos: Terra de Tanta Cruz.
Fora com os festejos balofos e bolorentos que entediam os vivos e não ressuscitam os mortos! Esqueçamos o relojão que determina aos videotas, com enorme atraso, a descoberta que devemos fazer desde que nascemos! Viva a comemoração na batalha (razão de vida) pelo bolo repartido, pela diversidade respeitada, da soberania popular reconquistada!
Chico Alencar, Professor de História (UFRJ), é autor do livro BR-500 - Um guia para a redescoberta do Brasil (Editora Vozes), entre outros.
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