As televisões públicas francesas estão em plena guerra contra os reality-shows - e sua principal arma é, adivinhem?, um reality-show.
Ontem foi ao ar na France 2 um documentário chocante sobre um falso jogo de TV produzido com o objetivo de desmascarar este tipo de programa.
Parte de uma pesquisa sobre os impactos da comunicação de massa, o "jogo da morte" selecionou 80 participantes reais que se imaginavam em um programa de auditório - com direito a cenário, câmeras, plateia.
Com o objetivo de ganhar um prêmio final, sua missão seria de aplicar choques elétricos em um outro participante caso ele não respondesse corretamente determinadas questões. Sem que os jogadores soubessem disso, o outro participante era um ator instruído a gritar e a pedir para deixar o jogo, simulando dor com os supostos choques.
O formato do "jogo" é uma releitura fiel da pesquisa realizada em Harvard por Stanley Milgram, em 1960, que colocava em causa a explicação dada por Adolphe Eichmann, carrasco nazista julgado em Israel, de que ao organizar a morte de milhares de judeus ele teria apenas "obedecido ordens".
A pesquisa acadêmica realizada então, sem palco nem apresentadores, teve um resultado já surpreendente: mais de 60% dos indivíduos que participaram da investigação travestida de "jogo" não hesitaram em aplicar nos outros "jogadores" a descarga elétrica mortal de 450 volts.
No documentário produzido pela France 2, sob a pressão de uma plateia, de uma equipe de filmagem e da figura de autoridade representada pela apresentadora, a resposta foi ainda mais expressiva: 81% dos participantes aplicaram a voltagem máxima proposta pelo jogo - de 460 volts, mais que o dobro da potência da descarga elétrica de uma tomada doméstica.
No livro lançado simultaneamente ao documentário, o depoimento dos participantes impressiona: "Apliquei o procedimento". "Simplesmente obedeci". "Ele podia gritar, não estou nem aí: vim aqui para ganhar". "Tem a pressão do público, das câmeras, da apresentadora - é difícil dizer não".
Sociólogos veem na experiência um efeito do que Le Bon apontou como o comportamento de massa - aquela velha história de fazermos em grupo o que não faríamos sozinhos. A ideia é que, na televisão, ainda que o indivíduo esteja sozinho na cabine de jogo, tem-se a impressão de estar "acompanhado" por todos os telespectadores.
Para os críticos radicais da televisão (como já contei aqui antes, isso é o que não falta na França), a lógica também contamina o telespectador comum, que "aceita" comportamentos amorais recebidos pela telinha graças à sensação de cumplicidade de se saber parte de um enorme grupo.
Além de tudo o que já sabemos - do tempo que a televisão nos rouba de atividades intelectualmente mais ricas, do convívio familiar, de tudo o que nos faz verdadeiramente ativos, e não simples espectadores - o documentário deixa uma pergunta profunda: será que essa televisão-trash nos torna piores? Não só menos bons, mas ainda por cima mais malvados?
Carolina Nogueira é jornalista e mora há dois anos em Paris, de onde mantém o blog Le Croissant (www.le-croissant.blogspot.com)
Ontem foi ao ar na France 2 um documentário chocante sobre um falso jogo de TV produzido com o objetivo de desmascarar este tipo de programa.
Parte de uma pesquisa sobre os impactos da comunicação de massa, o "jogo da morte" selecionou 80 participantes reais que se imaginavam em um programa de auditório - com direito a cenário, câmeras, plateia.
Com o objetivo de ganhar um prêmio final, sua missão seria de aplicar choques elétricos em um outro participante caso ele não respondesse corretamente determinadas questões. Sem que os jogadores soubessem disso, o outro participante era um ator instruído a gritar e a pedir para deixar o jogo, simulando dor com os supostos choques.
O formato do "jogo" é uma releitura fiel da pesquisa realizada em Harvard por Stanley Milgram, em 1960, que colocava em causa a explicação dada por Adolphe Eichmann, carrasco nazista julgado em Israel, de que ao organizar a morte de milhares de judeus ele teria apenas "obedecido ordens".
A pesquisa acadêmica realizada então, sem palco nem apresentadores, teve um resultado já surpreendente: mais de 60% dos indivíduos que participaram da investigação travestida de "jogo" não hesitaram em aplicar nos outros "jogadores" a descarga elétrica mortal de 450 volts.
No documentário produzido pela France 2, sob a pressão de uma plateia, de uma equipe de filmagem e da figura de autoridade representada pela apresentadora, a resposta foi ainda mais expressiva: 81% dos participantes aplicaram a voltagem máxima proposta pelo jogo - de 460 volts, mais que o dobro da potência da descarga elétrica de uma tomada doméstica.
No livro lançado simultaneamente ao documentário, o depoimento dos participantes impressiona: "Apliquei o procedimento". "Simplesmente obedeci". "Ele podia gritar, não estou nem aí: vim aqui para ganhar". "Tem a pressão do público, das câmeras, da apresentadora - é difícil dizer não".
Sociólogos veem na experiência um efeito do que Le Bon apontou como o comportamento de massa - aquela velha história de fazermos em grupo o que não faríamos sozinhos. A ideia é que, na televisão, ainda que o indivíduo esteja sozinho na cabine de jogo, tem-se a impressão de estar "acompanhado" por todos os telespectadores.
Para os críticos radicais da televisão (como já contei aqui antes, isso é o que não falta na França), a lógica também contamina o telespectador comum, que "aceita" comportamentos amorais recebidos pela telinha graças à sensação de cumplicidade de se saber parte de um enorme grupo.
Além de tudo o que já sabemos - do tempo que a televisão nos rouba de atividades intelectualmente mais ricas, do convívio familiar, de tudo o que nos faz verdadeiramente ativos, e não simples espectadores - o documentário deixa uma pergunta profunda: será que essa televisão-trash nos torna piores? Não só menos bons, mas ainda por cima mais malvados?
Carolina Nogueira é jornalista e mora há dois anos em Paris, de onde mantém o blog Le Croissant (www.le-croissant.blogspot.com)
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