O que é o Estado afinal? Um leviatã sedento de poder e ávido por controlar-nos os destinos, ou uma entidade quase benigna, que, além de possibilitar a vida em sociedade, oferece-nos, através da seguridade social e de programas específicos, meios de viver mais e melhor?
Até meados do século passado, o mais sensato era apostar na primeira possibilidade. É claro que não existiriam nações e nem mesmo assentamentos humanos maiores do que vilarejos se não houvesse desde a aurora das civilizações um poder central capaz de organizar empreendimentos coletivos (preparar o campo para o plantio, construir estradas) e garantir um mínimo de ordem, a fim de que cada um pudesse cuidar de seus próprios afazeres sem precisar preocupar-se em período integral com vizinhos invejosos e bandidos. Daí que a função de policial é quase tão antiga quanto uma outra atividade também iniciada com a letra "p".
Ainda assim, até a consolidação das democracias burguesas no final do século 19 e início do 20, o Estado era mais bem descrito como um mal necessário cujo poder tínhamos de tentar controlar para não sermos por ele devorados do que como um potencial aliado na busca pela felicidade. Para qualquer um que não estivesse sempre de acordo com a vontade do soberano, as chances de ser declarado inimigo de El-Rei e desaparecer ou ver-se esquecido nas masmorras superavam em muito as de receber algum tipo de auxílio.
É só a partir do advento das social-democracias européias no pós-guerra que surge de modo inequívoco a noção de Estado como promotor do bem-estar social. Tal movimento foi em grande medida uma reação ao comunismo, mas que se torna ainda mais significativa diante do fracasso das experiências socialistas.
Se for para escolher um dos termos da dicotomia, eu não hesitaria muito em afirmar que o Estado, mesmo o Estado brasileiro atual, age mais para o bem do que para o mal. Essas considerações estão longe de significar um cheque em branco. Até o mais inocente dos tumores pode, sob determinadas condições, tornar-se maligno. Por mais "bonzinho" que o Estado tenha se tornado, ele ainda conserva uma irresistível tendência a concentrar poderes e avançar sobre liberdades que precisa ser contrabalançada.
Assim, por mais otimistas que sejamos quanto às transformações --e para melhor-- por que o poder público vem passando, sempre nos depararemos com ações abusivas que precisam ser expostas e de preferência também lancetadas. Continuo esta coluna comentando dois casos aparentemente desconexos, mas emblemáticos dos riscos que continuamos correndo.
Encabeça o rol dos desvarios oficiais a estapafúrdia reforma ortográfica que, depois da capitulação do Parlamento português, deverá começar a ser adotada dos dois lados do Atlântico.
Mais uma vez, burocratas pretendem enfiar-nos caprichos lingüísticos alheios goela abaixo. Há aí dois despropósitos e uma sacanagem. Em primeiro lugar, a reforma proposta é ruim: gasta-se muita energia para obter avanços menos do que tímidos em termos de unificação da escrita dos países lusófonos. Em segundo e mais importante, é errado e inútil tentar definir os rumos de uma língua natural --grafia inclusa.
Quanto mais penso, mais fico revoltado. Toda a situação pode ser resumida como um conluio entre acadêmicos espertos e parlamentares obtusos para, à custa do esforço de algo como 300 milhões de usuários da língua portuguesa, que terão de perder tempo "reciclando-se", beneficiar meia dúzia de editores que já têm prontos dicionários, gramáticas, cursos de atualização e material didático de acordo com a "nova ortografia".
Nunca foram meia dúzia de consoantes mudas --como nas formas lusitanas "adopção" e "óptimo"-- que constituíram barreira à intercomunicabilidade entre leitores e escritores dos dois lados do oceano. O mesmo se pode dizer do trema, das quatro ou cinco regras de acentuação que serão alteradas e das sempre exóticas disposições sobre o hífen --os demais pontos que a reforma abarca. Se há empecilhos à boa compreensão entre falantes do Brasil, de Portugal e de países africanos e asiáticos, eles estão na escolha do léxico e no uso de expressões locais, felizmente ao abrigo da sanha legiferante de dicionaristas e parlamentares.
Línguas são como organismos vivos: nascem, crescem e morrem. Fazem-no independentemente de leis e decretos. E, até onde me lembro, jamais deleguei a nenhum parlamentar ou governante poderes para regular o meu quinhão do contrato social lingüístico que vigora entre falantes de um idioma. Se dependesse de mim, o acordo seria denunciado e todos poderíamos seguir escrevendo sem a interferência de burocratas de pouco tino.
A outra historieta que me deixou irado foi a proibição, pela Justiça, de uma série de games de computador considerados excessivamente violentos. Não jogo nada além de uma eventual e inocente paciência no meu micro, mas não sabia que haviam revogado a Constituição brasileira.
Juízes e promotores podem pensar o que bem entenderem de qualquer livro, música ou jogo que lhe caia em mãos, mas não podem vetá-los. Não conheço os games proscritos e, pela descrição, não estão entre os meus favoritos, mas proibir uma peça ficcional por julgá-la violenta é a negação de séculos e séculos de luta pela liberdade de expressão. Mesmo que a "missão" atribuída ao jogador seja aniquilar velhinhas empurrando carrinhos de bebê e escarrar sobre os cadáveres, esse tipo de criação está, nos termos dos artigos 5º e 220 da Carta, protegidos até contra leis tendentes a censurá-la e, "ex fortiori" de despachos de juízes singulares. Nesses casos, tudo o que o poder público pode fazer é desrecomendar o uso por menores de idade. E é muito bom que seja assim, não pelos games específicos, mas pelo princípio. Se a moda de proibir o que é "violento" pega, até obras como a "Ilíada" de Homero --a peça inaugural da literatura do Ocidente-- poderiam ser censuradas, pois trazem algumas das mais impressionantes e vívidas descrições de batalhas que jamais li. Há versos que fazem a gente ver o sangue jorrar.
No mais, se há uma tese que sempre me pareceu particularmente imbecil é a de que assistir a filmes e desenhos violentos torna crianças violentas. Há candidatos bem mais verossímeis, como viver numa sociedade violenta, apanhar de pais violentos e ter a violência inscrita nos genes (a minha preferida).
Se há um passo importante que a democracia brasileira ainda precisa dar é o de responsabilizar agentes públicos pelos absurdos que pratiquem. Viveremos num país melhor depois que juízes começarem a pagar do próprio bolso pelos prejuízos que causam a terceiros sempre que tomam decisões manifestamente ilegais ou inconstitucionais. De modo análogo, seria adorável ver um promotor ou delegado respondendo civil e penalmente pelas violações de direitos fundamentais que freqüentemente perpetram.
Não há dúvida de que, na escala do tempo histórico, o Estado pode hoje apresentar feições benignas, o que era bem mais difícil até há pouco. Se, no passado, o pagamento de impostos não passava de uma extorsão dentro da lei, hoje é possível encará-lo como uma mensalidade de clube ou taxa condominial, que não temos como evitar, mas que nos dá direito a gozar de certos serviços. E, para que as coisas continuem assim e não degringolem --o que sempre pode acontecer--, é necessário manter vigilância cerrada sobre nossos governantes, representantes e servidores. É nesse quesito que o Brasil ainda deixa muito a desejar.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
Até meados do século passado, o mais sensato era apostar na primeira possibilidade. É claro que não existiriam nações e nem mesmo assentamentos humanos maiores do que vilarejos se não houvesse desde a aurora das civilizações um poder central capaz de organizar empreendimentos coletivos (preparar o campo para o plantio, construir estradas) e garantir um mínimo de ordem, a fim de que cada um pudesse cuidar de seus próprios afazeres sem precisar preocupar-se em período integral com vizinhos invejosos e bandidos. Daí que a função de policial é quase tão antiga quanto uma outra atividade também iniciada com a letra "p".
Ainda assim, até a consolidação das democracias burguesas no final do século 19 e início do 20, o Estado era mais bem descrito como um mal necessário cujo poder tínhamos de tentar controlar para não sermos por ele devorados do que como um potencial aliado na busca pela felicidade. Para qualquer um que não estivesse sempre de acordo com a vontade do soberano, as chances de ser declarado inimigo de El-Rei e desaparecer ou ver-se esquecido nas masmorras superavam em muito as de receber algum tipo de auxílio.
É só a partir do advento das social-democracias européias no pós-guerra que surge de modo inequívoco a noção de Estado como promotor do bem-estar social. Tal movimento foi em grande medida uma reação ao comunismo, mas que se torna ainda mais significativa diante do fracasso das experiências socialistas.
Se for para escolher um dos termos da dicotomia, eu não hesitaria muito em afirmar que o Estado, mesmo o Estado brasileiro atual, age mais para o bem do que para o mal. Essas considerações estão longe de significar um cheque em branco. Até o mais inocente dos tumores pode, sob determinadas condições, tornar-se maligno. Por mais "bonzinho" que o Estado tenha se tornado, ele ainda conserva uma irresistível tendência a concentrar poderes e avançar sobre liberdades que precisa ser contrabalançada.
Assim, por mais otimistas que sejamos quanto às transformações --e para melhor-- por que o poder público vem passando, sempre nos depararemos com ações abusivas que precisam ser expostas e de preferência também lancetadas. Continuo esta coluna comentando dois casos aparentemente desconexos, mas emblemáticos dos riscos que continuamos correndo.
Encabeça o rol dos desvarios oficiais a estapafúrdia reforma ortográfica que, depois da capitulação do Parlamento português, deverá começar a ser adotada dos dois lados do Atlântico.
Mais uma vez, burocratas pretendem enfiar-nos caprichos lingüísticos alheios goela abaixo. Há aí dois despropósitos e uma sacanagem. Em primeiro lugar, a reforma proposta é ruim: gasta-se muita energia para obter avanços menos do que tímidos em termos de unificação da escrita dos países lusófonos. Em segundo e mais importante, é errado e inútil tentar definir os rumos de uma língua natural --grafia inclusa.
Quanto mais penso, mais fico revoltado. Toda a situação pode ser resumida como um conluio entre acadêmicos espertos e parlamentares obtusos para, à custa do esforço de algo como 300 milhões de usuários da língua portuguesa, que terão de perder tempo "reciclando-se", beneficiar meia dúzia de editores que já têm prontos dicionários, gramáticas, cursos de atualização e material didático de acordo com a "nova ortografia".
Nunca foram meia dúzia de consoantes mudas --como nas formas lusitanas "adopção" e "óptimo"-- que constituíram barreira à intercomunicabilidade entre leitores e escritores dos dois lados do oceano. O mesmo se pode dizer do trema, das quatro ou cinco regras de acentuação que serão alteradas e das sempre exóticas disposições sobre o hífen --os demais pontos que a reforma abarca. Se há empecilhos à boa compreensão entre falantes do Brasil, de Portugal e de países africanos e asiáticos, eles estão na escolha do léxico e no uso de expressões locais, felizmente ao abrigo da sanha legiferante de dicionaristas e parlamentares.
Línguas são como organismos vivos: nascem, crescem e morrem. Fazem-no independentemente de leis e decretos. E, até onde me lembro, jamais deleguei a nenhum parlamentar ou governante poderes para regular o meu quinhão do contrato social lingüístico que vigora entre falantes de um idioma. Se dependesse de mim, o acordo seria denunciado e todos poderíamos seguir escrevendo sem a interferência de burocratas de pouco tino.
A outra historieta que me deixou irado foi a proibição, pela Justiça, de uma série de games de computador considerados excessivamente violentos. Não jogo nada além de uma eventual e inocente paciência no meu micro, mas não sabia que haviam revogado a Constituição brasileira.
Juízes e promotores podem pensar o que bem entenderem de qualquer livro, música ou jogo que lhe caia em mãos, mas não podem vetá-los. Não conheço os games proscritos e, pela descrição, não estão entre os meus favoritos, mas proibir uma peça ficcional por julgá-la violenta é a negação de séculos e séculos de luta pela liberdade de expressão. Mesmo que a "missão" atribuída ao jogador seja aniquilar velhinhas empurrando carrinhos de bebê e escarrar sobre os cadáveres, esse tipo de criação está, nos termos dos artigos 5º e 220 da Carta, protegidos até contra leis tendentes a censurá-la e, "ex fortiori" de despachos de juízes singulares. Nesses casos, tudo o que o poder público pode fazer é desrecomendar o uso por menores de idade. E é muito bom que seja assim, não pelos games específicos, mas pelo princípio. Se a moda de proibir o que é "violento" pega, até obras como a "Ilíada" de Homero --a peça inaugural da literatura do Ocidente-- poderiam ser censuradas, pois trazem algumas das mais impressionantes e vívidas descrições de batalhas que jamais li. Há versos que fazem a gente ver o sangue jorrar.
No mais, se há uma tese que sempre me pareceu particularmente imbecil é a de que assistir a filmes e desenhos violentos torna crianças violentas. Há candidatos bem mais verossímeis, como viver numa sociedade violenta, apanhar de pais violentos e ter a violência inscrita nos genes (a minha preferida).
Se há um passo importante que a democracia brasileira ainda precisa dar é o de responsabilizar agentes públicos pelos absurdos que pratiquem. Viveremos num país melhor depois que juízes começarem a pagar do próprio bolso pelos prejuízos que causam a terceiros sempre que tomam decisões manifestamente ilegais ou inconstitucionais. De modo análogo, seria adorável ver um promotor ou delegado respondendo civil e penalmente pelas violações de direitos fundamentais que freqüentemente perpetram.
Não há dúvida de que, na escala do tempo histórico, o Estado pode hoje apresentar feições benignas, o que era bem mais difícil até há pouco. Se, no passado, o pagamento de impostos não passava de uma extorsão dentro da lei, hoje é possível encará-lo como uma mensalidade de clube ou taxa condominial, que não temos como evitar, mas que nos dá direito a gozar de certos serviços. E, para que as coisas continuem assim e não degringolem --o que sempre pode acontecer--, é necessário manter vigilância cerrada sobre nossos governantes, representantes e servidores. É nesse quesito que o Brasil ainda deixa muito a desejar.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
Um comentário:
Na verdade é como o Rei da história do Pequeno Príncipe fala quando questionado sobre para que servem as fronteiras. A resposta: Ora, o que seriam dos chefes de estado se não fossem as fronteiras...
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