Uma mulher incomum
Por Dora Kramer*
A principal característica de Ruth Cardoso como mulher de presidente da República era ser peculiar, diferente de todas as antecessoras.
Discreta, não poderia ser comparada às submissas; atuante, nem de longe lembrava as intrometidas; austera, guardava distância das puritanas; severa, não se enquadrava no modelo das intolerantes; refratária ao cotidiano da política partidária, estava a léguas das alienadas; impecável no pentear e no vestir, nem por isso formava no rol das entusiastas da ostentação.
Ruth Cardoso tinha a veleidade de preservar sua identidade como cidadã comum, mas, no que tange à Presidência da República, sem dúvida foi uma mulher incomum. Com todos os ônus e os bônus contidos na definição.
No início, mais ônus que bônus. Brasília e a mulher do novo presidente se estranharam. A capital nunca tinha visto nada parecido.
Se Fernando Henrique Cardoso com suas maneiras apuradas e fala de acadêmico já parecia esquisito, algo presunçoso, quem diria a mulher, mais interessada na carreira de observadora ativa da vida brasileira do que nas alegorias do poder, sempre preparadas para dar curso ao exercício da bajulação.
Com Ruth não seria assim.
Uma intelectual internacionalmente reconhecida que não escondia sua ojeriza aos rituais do poder e uma especial antipatia por jornalistas, fossem eles interessados em detalhes fúteis ou estivessem sinceramente empenhados em ouvir o que a professora, mestre, doutora e escritora tinha a dizer sobre os destinos do País.
Ruth chegou a provocar um contido escândalo quando, depois da eleição e antes da posse, cogitou da hipótese de não se mudar para a capital. Queria ficar em São Paulo, levando "vida normal".
A corte sentiu-se rejeitada. Enxergou antipatia, soberba e um resquício de impertinência na novidade da rejeição ao título de "primeira-dama". Ruth não dizia com todas as letras, mas estava claro que achava a denominação antiquada e, sobretudo, cafona.
Tinha toda razão. Nem por isso, entretanto, insistiu na imposição de novas leis. A recíproca foi verdadeira e, aos poucos, os espíritos foram se desarmando. A capital desistiu de enquadrar Ruth nos parâmetros conhecidos e ela, enquanto fazia concessões na forma, conquistava respeito na exposição do conteúdo.
Falava pouco, mas era sempre certeira na análise dos problemas brasileiros, não abria mão das opiniões, ainda que polêmicas, aliava-se ao bom combate e, como não precisava, como o marido, fazer concessões inerentes à condição do governante, Ruth Cardoso foi se firmando no cenário nacional como um símbolo de dignidade e correção.
Os políticos aliados ao governo do marido logo perceberam o potencial eleitoral contido nessa boa figura, tentaram discretamente conquistá-la como parceira de palanque, mas Ruth, naquela firmeza típica dos seres lastreados em ouro, não se deixava seduzir por bobagem.
Mais importante para ela eram as discussões, as elaborações e as projeções de programas sociais distanciados do assistencialismo e sustentados na concepção da inclusão produtiva. Jovens, por exemplo, não recebiam dinheiro, mas incentivo para aprender profissões ao alcance das suas realidades: DJs, dançarinos, cabeleireiros "afro", etc.
Livre das regras do jogo bruto da política cotidiana, Ruth preservou as antigas relações e construiu novas admirações entre partidos de todos os matizes. Distante do ambiente de denúncias, de escândalos, fiel a suas convicções sem ceder à tentação de extrapolar para o papel de heroína, foi naturalmente sendo vista como uma espécie de reserva moral não explícita, consciência crítica do governo.
Aquilo que no começo causou estranheza - uma simplicidade vista como majestática, a aversão ao estrelato, o retraimento, a fidelidade à conduta da vida inteira - acabou sendo visto pelo Brasil como sua melhor qualidade: a noção de que ocupantes do poder são apenas cidadãos aos quais se confere temporariamente a prerrogativa de fazer acontecer.
Isso não lhes dá o direito de se acharem diferentes dos demais ou mesmo diferentes de si mesmos antes do advento da votação, ao ponto de justificar a adoção de artifícios para marcar a distância entre representantes e representados.
Ao preservar sua naturalidade, Ruth Cardoso marcou pela peculiaridade. Em sua cerimônia de adeus, reuniu o pesar dos partidos, das entidades, das sociedades, das instituições, algo inédito em se tratando de mulheres de presidentes.
Mais inusitado ainda porque o presidente em questão está fora do poder. Quem se manifestou, portanto, o fez pela figura de Ruth Cardoso e tudo o que ela conseguiu representar.
Simbolismo resumido nas inquietações que lhe assaltavam a alma: a degradação dos costumes, a total indiferença aos princípios éticos, a passividade da população diante desse quadro e, para citar palavras ditas por ela em setembro de 2007, "o mais incrível é que ninguém é punido, fica tudo por isso mesmo".
* Dora Kramer, jornalista, escritora e colunista política diária dos jornais O Estado de S. Paulo e O Dia e das rádios Band News FM e JB FM. É autora de "O Resumo da História" (Editora Objetiva). Artigo originalmente publicado em O Estado de S. Paulo em 26 de Junho de 2008
O Estadão On Line traz uma série de 12 artigos sobre o trabalho da antropóloga Ruth Cardoso e seu legado. Eis os links:
Ruth, das paixões serenas
Por Dora Kramer*
A principal característica de Ruth Cardoso como mulher de presidente da República era ser peculiar, diferente de todas as antecessoras.
Discreta, não poderia ser comparada às submissas; atuante, nem de longe lembrava as intrometidas; austera, guardava distância das puritanas; severa, não se enquadrava no modelo das intolerantes; refratária ao cotidiano da política partidária, estava a léguas das alienadas; impecável no pentear e no vestir, nem por isso formava no rol das entusiastas da ostentação.
Ruth Cardoso tinha a veleidade de preservar sua identidade como cidadã comum, mas, no que tange à Presidência da República, sem dúvida foi uma mulher incomum. Com todos os ônus e os bônus contidos na definição.
No início, mais ônus que bônus. Brasília e a mulher do novo presidente se estranharam. A capital nunca tinha visto nada parecido.
Se Fernando Henrique Cardoso com suas maneiras apuradas e fala de acadêmico já parecia esquisito, algo presunçoso, quem diria a mulher, mais interessada na carreira de observadora ativa da vida brasileira do que nas alegorias do poder, sempre preparadas para dar curso ao exercício da bajulação.
Com Ruth não seria assim.
Uma intelectual internacionalmente reconhecida que não escondia sua ojeriza aos rituais do poder e uma especial antipatia por jornalistas, fossem eles interessados em detalhes fúteis ou estivessem sinceramente empenhados em ouvir o que a professora, mestre, doutora e escritora tinha a dizer sobre os destinos do País.
Ruth chegou a provocar um contido escândalo quando, depois da eleição e antes da posse, cogitou da hipótese de não se mudar para a capital. Queria ficar em São Paulo, levando "vida normal".
A corte sentiu-se rejeitada. Enxergou antipatia, soberba e um resquício de impertinência na novidade da rejeição ao título de "primeira-dama". Ruth não dizia com todas as letras, mas estava claro que achava a denominação antiquada e, sobretudo, cafona.
Tinha toda razão. Nem por isso, entretanto, insistiu na imposição de novas leis. A recíproca foi verdadeira e, aos poucos, os espíritos foram se desarmando. A capital desistiu de enquadrar Ruth nos parâmetros conhecidos e ela, enquanto fazia concessões na forma, conquistava respeito na exposição do conteúdo.
Falava pouco, mas era sempre certeira na análise dos problemas brasileiros, não abria mão das opiniões, ainda que polêmicas, aliava-se ao bom combate e, como não precisava, como o marido, fazer concessões inerentes à condição do governante, Ruth Cardoso foi se firmando no cenário nacional como um símbolo de dignidade e correção.
Os políticos aliados ao governo do marido logo perceberam o potencial eleitoral contido nessa boa figura, tentaram discretamente conquistá-la como parceira de palanque, mas Ruth, naquela firmeza típica dos seres lastreados em ouro, não se deixava seduzir por bobagem.
Mais importante para ela eram as discussões, as elaborações e as projeções de programas sociais distanciados do assistencialismo e sustentados na concepção da inclusão produtiva. Jovens, por exemplo, não recebiam dinheiro, mas incentivo para aprender profissões ao alcance das suas realidades: DJs, dançarinos, cabeleireiros "afro", etc.
Livre das regras do jogo bruto da política cotidiana, Ruth preservou as antigas relações e construiu novas admirações entre partidos de todos os matizes. Distante do ambiente de denúncias, de escândalos, fiel a suas convicções sem ceder à tentação de extrapolar para o papel de heroína, foi naturalmente sendo vista como uma espécie de reserva moral não explícita, consciência crítica do governo.
Aquilo que no começo causou estranheza - uma simplicidade vista como majestática, a aversão ao estrelato, o retraimento, a fidelidade à conduta da vida inteira - acabou sendo visto pelo Brasil como sua melhor qualidade: a noção de que ocupantes do poder são apenas cidadãos aos quais se confere temporariamente a prerrogativa de fazer acontecer.
Isso não lhes dá o direito de se acharem diferentes dos demais ou mesmo diferentes de si mesmos antes do advento da votação, ao ponto de justificar a adoção de artifícios para marcar a distância entre representantes e representados.
Ao preservar sua naturalidade, Ruth Cardoso marcou pela peculiaridade. Em sua cerimônia de adeus, reuniu o pesar dos partidos, das entidades, das sociedades, das instituições, algo inédito em se tratando de mulheres de presidentes.
Mais inusitado ainda porque o presidente em questão está fora do poder. Quem se manifestou, portanto, o fez pela figura de Ruth Cardoso e tudo o que ela conseguiu representar.
Simbolismo resumido nas inquietações que lhe assaltavam a alma: a degradação dos costumes, a total indiferença aos princípios éticos, a passividade da população diante desse quadro e, para citar palavras ditas por ela em setembro de 2007, "o mais incrível é que ninguém é punido, fica tudo por isso mesmo".
* Dora Kramer, jornalista, escritora e colunista política diária dos jornais O Estado de S. Paulo e O Dia e das rádios Band News FM e JB FM. É autora de "O Resumo da História" (Editora Objetiva). Artigo originalmente publicado em O Estado de S. Paulo em 26 de Junho de 2008
O Estadão On Line traz uma série de 12 artigos sobre o trabalho da antropóloga Ruth Cardoso e seu legado. Eis os links:
Ruth, das paixões serenas
De Lourdes Sola
Lembrando da Ruth
De Yvone Maggie
Elegia às mulheres da Maria Antônia
Anna Veronica Mautner
Voz do povo, voz de Deus, voz do mundo
Pedro Malan
Vida exemplar de uma intelectual
Lilia Moritz Schwarcz
Uma mulher de estilo
Maria Ignez Barbosa
Que dama!
Gaudêncio Torquato
A guerreira da lógica feminina
Eva Blay
Ruth, a opção pascal na política
José de Souza Martins
O meu adeus a Ruth Cardoso
Ignácio de Loyola Brandão
A guerreira suave
José Gregori
Uma mulher incomum
Dora Kramer
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