quarta-feira, 9 de abril de 2008

A armação do poste

A interrogação jorra abundante em ambientes fechados e abertos: Lula fará o sucessor? Por que antecipa a campanha de 2010 ao subir em palanques nos Estados apresentando a "mãe do PAC" e "capitã do time" Dilma Rousseff, que veste com crescente desenvoltura o figurino de pré-candidata preferencial do presidente? Ao abrir o jogo sucessório, o dono da bola não comete o desatino de provocar com antecedência atritos na própria base, acirrar as oposições e, conseqüentemente, queimar reservas estratégicas que poderão comprometer a dinâmica administrativa nos longos meses pela frente até às margens eleitorais?
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Afinal, o que poderia justificar tanta efervescência no ânimo presidencial, a ponto de provocar adversários com a ênfase: "Se a oposição pensa que vai fazer o sucessor, pode tirar o cavalinho da chuva."Em se tratando de um governante cada vez mais ciente de que é um enviado dos céus para salvar o Brasil, a resposta às questões acima foge da lógica para se abrigar na intrincada malha da psicologia. Para começo de conversa, a cada nova pesquisa que confere crescimento à sua popularidade, Lula transmite a convicção de que é capaz de tudo. Inclusive de eleger um poste. O simbolismo implícito na eleição de um perfil inodoro, insípido e incolor é o estado máximo do poder, a onipotência. Como se isso não bastasse, seu sistema cognitivo se adorna com uma aura de onisciência, o conhecimento pleno das coisas. Quem tudo pode tudo sabe. Elevado ao Olimpo, espaço das divindades, Lula contempla as artes da nossa política com ar superior. Não se acanha de subir em palanque, fechar ouvidos a reclamos de ministros do TSE sobre seu comportamento eleitoreiro ou de atribuir a outros lamúrias que partem dele mesmo, como esta: "Enquanto a oposição grita e xinga, a gente trabalha." Embalado por um índice de 58% de aprovação ao governo, não percebe grito nem xingamento na frase em que defende o "companheiro Severino Cavalcanti", de triste memória: "Partes da elite paulista e do Paraná o derrubaram." Pano de fundo: ao derrubar o artigo que permitia o controle das contas das centrais sindicais pelo TCU, Lula expande o mando da República sindicalista. Esta é a nova elite.
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O presidente se acha um Feola que não precisa combinar com os russos, como advertia Garrincha, em 1958, a um gordo e simpático técnico que explicava como a seleção brasileira deveria fazer para golear a equipe da antiga União Soviética. Nosso técnico maior da política não precisa combinar com os russos porque tem certeza que elegerá o sucessor, como o fez Vladimir Putin, o todo-poderoso que colocou em seu lugar Dmitry Medvedev, eleito com mais de 70% dos votos. Lula quer fazer o mesmo com Dilma Rousseff. A ex-guerrilheira, como o jovem e quase desconhecido burocrata russo, é um poste levado aos palanques como um balão-de-ensaio. Se der certo, irá em frente. Caso não emplaque, o mestre buscará alternativas. Mas o que o presidente quer mesmo é fazer campanha. Se seu primeiro mandato abriu palanques, este os multiplica. Pergunta recorrente: o poste será aceso pela luz divina de Lula?
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Transferir votos não é tarefa simples. O sucesso da operação não depende apenas de esforço e competência do líder de massas. Abriga fatores imponderáveis, como momento, circunstâncias, competitividade, perfil de adversários e, principalmente, qualidades do receptor dos votos a serem transferidos. O poste precisa ter formato adequado para receber iluminação. Pela lupa de Max Weber, Lula é um líder carismático, com expressões próprias e qualidades intransferíveis, como o foram Getúlio, Juscelino, Jânio, Brizola e Arraes, entre outros. Dilma entra mais no figurino racional, burocrático, sem peculiaridades que gerem impacto. A sombra da árvore frondosa seria suficiente para fazer florescer um galho que parece desprovido de viço? Seria possível, claro, se o galho ainda abrigasse vida. Será esse o caso da ministra-chefe da Casa Civil?
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No modelo de Weber, o líder também se legitima pela incorporação de poderes especiais. Lula concede a Dilma tais poderes, dando-lhe uma designação de "mãe" de monumental programa de obras. Esses poderes, porém, poderão não passar pelo teste da percepção popular, o fator mais importante da equação eleitoral. O povo tende a distinguir o perfil do iluminador da figura do poste. Não é difícil imaginar para onde afluiria a multidão caso visse Lula conduzindo Dilma Rousseff na rua.
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Como Putin iluminou seu poste? Como Maluf elegeu Pitta prefeito de São Paulo? E, ainda, por que Quércia elegeu o governador Fleury? Eis a resposta: se houve transferência de votos, o receptor contribuiu para o processo. O novo primeiro-ministro russo é avaliado como um perfil liberal adequado para ocupar o centro da cena neste momento da vida russa. Pitta, negro e com perfil de administrador moderno, estudou na Inglaterra e nos EUA, mas dizia ter origem pobre. Fleury, promotor, trazia na bagagem a imagem de combatente duro contra a criminalidade. Dilma, quadro técnico de valor, mestre em teoria econômica e doutora em economia monetária e financeira, tem contra si a fama de arrogante e cara de quem tem ojeriza à política tal como ela é. O fato de ser eficiente gerente ajudaria na eleição? Pouco provável. A suspeita de ter autorizado a confecção de um dossiê contra gastos sigilosos do governo Fernando Henrique a prejudicaria? Teria, a favor, o charme de mulheres em ascensão na política e, o mais importante, o escudo de Lula.
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Desconfia-se, porém, de que nada disso é para valer. O poste pode ser um postiço, figura artificial, falsa, criada para confundir. Lulinha Paz e Amor, nas horas vagas, Lula Palanqueiro da Silva, nas horas ocupadas, bota a campanha de 2010 nas ruas, desde já, porque só pensa naquilo: o terceiro mandato. Essa pregação do vice-presidente da República, José Alencar, dizendo que os brasileiros querem Lula por mais tempo, tem cheiro de armação.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político

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