domingo, 20 de abril de 2008

A Guerra Fria na Cultura

A Guerra Fria na Cultura

A Guerra Fria, confronto permanente entre o capitalismo norte-americano e o comunismo soviético que se estendeu de 1947 a 1991, não se limitou aos aspectos estratégicos, político-diplomáticos e militares. Atingiu círculos ainda mais amplos com a inclusão das artes, das letras e da cultura em geral, arregimentadas por ambos os lados no confronto das idéias, do embate ideológico e estético que contrapôs as duas superpotências. Num livro bem pesquisado, a historiadora inglesa Frances Stonor Saunders, publicado em 1999, revelou "Quem pagou a conta?".


O antecedente comunista

Willi Münzenberg, um apparatchik e deputado do KDP, o Partido Comunista Alemão, nascido em Erfurt em 1889 - quando jovem privou com Lenin na Suíça e depois na Rússia - foi uma das figuras mais enigmáticas que agiu nos bastidores do Movimento Comunista Internacional no período do Entre-Guerras (1918-1939). Homem da Comintern, a Internacional Comunista controlada por Moscou, e ligado a OGPU/NKVD (então política secreta soviética), durante quase vinte anos ele envolveu-se na maioria das causas célebres que mobilizaram a esquerda daquela época.

Projetado pela campanha para enviar alimentos para a URSS durante a terrível fome de 1921, Willi, que tinha notável capacidade de agregar pessoas, tornou-se o agente perfeito para angariar recursos financeiros para as causas que abraçava.

Em 1925, desembarcando nos Estados Unidos, ele ajudou transformar o caso de dois operários anarquistas, a dupla Sacco e Fanzetti, condenados à morte pelo assassinato de um contador e um guarda de uma fábrica, num movimento contra a injustiça universal do capitalismo. Atiçando a opinião pública contra as autoridades norte-americanas, de Nova York a Londres, de Buenos Aires a Johanesburgo, protestos explodiram contra a aplicação da sentença de morte, ocorrida finalmente em 1927.

Desde então, por detrás de qualquer acontecimento político, social ou cultural que fosse relevante sobre o ponto de vista da luta ideológica, lá estava o engenho profissional de Willi Münzenberg que se revelou um mestre em recorrer à comitês ou comissões como fachada para as operações de apoio.

Um dos seus maiores feitos foi ter organizado um contra-tribunal em Londres para julgar o incêndio do Reichtag, ocorrido em fevereiro de 1933 (incidente que serviu de pretexto para Hitler impusesse a ditadura nacional-socialista na Alemanha).

Tão bem sucedida foi a encenação, materializada na publicação The Brown Book of the Reichtag fire (O Livro marrom do incêndio do Reichtag), certamente redigida por Otto Katz, que durante muitos anos se acreditou teriam sido os nazistas quem realmente haviam tocado fogo no prédio do poder legislativo alemão (versão acatada por muitos historiadores e que somente foi desmentida pela pesquisa de Fritz Tobias em 1960). Tudo indica também que foi ele quem conseguiu aliciar Kim Philby, então estudante inglês da Universidade de Cambridge, para atuar como espião da KGB soviética.


Seduzindo a intelligenstia esquerdista

Especializou-se ainda, com a cobertura da International Aid Committee for the Victims of Fascism, Comitê Internacional de Ajuda às Vítimas do Fascismo, na busca da adesão da intelligenstia da Europa Ocidental, amparando-a financeiramente com a publicação de livros e na veiculação de artigos favoráveis à URSS junto à mídia impressa da época, sempre dando um ar de "espontaneidade" às manifestações que surgiam.

Na capital britânica, por intermédio do mesmo Otto Katz, o seu braço-direito, aproximou-se do sofisticado grupo londrino de Bloomsbury, especialmente de John Strachey, um dos fundadores do Left Book Club, Clube do Livro de Esquerda, que provavelmente aceitou recursos de Münzenberger. Durante a Guerra Civil Espanhola esmerou-se em recrutar voluntários para as Brigadas Internacionais que atuaram na defesa da República.

Homem de sete instrumentos, chegou a ser chamado de o "Milionário Vermelho", tais eram os meios que ele dispunha para atuar como um mecenas da causa marxista graças aos inumeráveis Fundos que engendrou em seu apoio. Indisposto finalmente com Stalin em 1938, viu-se expulso do Comintern. Münzenberg terminou seus dias em 22 de outubro enforcado numa floresta perto de Grenoble, na fronteira franco-suiça, quando os nazistas invadiram a França em 1940 (provavelmente ele se suicidou para não ser capturado).

Pois foi exatamente a técnica operacional e articuladora dele, atuando nas sombras por meio dos "Clubes Inocentes" que, paradoxalmente, terminou por servir para que os anticomunistas norte-americanos, durante a Guerra Fria, a ela recorressem nas suas "operações culturais encobertas" para lutar contra a União Soviética, que então gozava de enorme prestígio junto a escritores e pensadores ocidentais. Tanto assim que vários ex-comunistas que haviam trabalhado para o "Münzenberg trust", desiludidos com a causa, como foi o caso do escritor Arthur Koestler, terminaram por oferecer seus serviços para a CIA (Agência Central de Inteligência).


Congressos de todos os tipos

No auge do esfriamento das relações EUA-URSS, baseados ainda nas experiências do falecido Münzenberger, os comunistas sob o comando do escritor Alexander Fadeev organizaram um congresso que foi realizado nas dependências do Waldorf-Astoria em Nova York, em maio de 1949, reunindo a nata dos simpatizantes esquerdistas ou de "companheiros-de-viagem". O objetivo da Cultural and Scientific Conference for World Peace, a Conferência Cultural e Científica pela Paz Mundial, era retomar o clima de confraternização que caracterizara as duas superpotências na época da Segunda Guerra Mundial, desanuviando no que fosse possível o clima pesado de enfrentamento provocado pela Guerra Fria.


Sob fogo cerrado das organizações direitistas, entre os 800 delegados que nela estiveram presentes estavam nomes famosos como os teatrólogos Arthur Miller e Lillian Hellman, o jovem romancista Norman Mailler, o compositor Aaron Copland, o poeta Louis Untermeyer, e o crítico do New York Times Olin Downes.

Ainda que o Congresso do Waldorf estivesse bem longe de ser um sucesso, ele serviu como inspiração para que a CIA (Agencia Central de Inteligência), tomasse medidas para organizar algo semelhante na Europa, uma espécie de contra-congresso para arregimentar as forças anticomunistas e da esquerda anti-stalinista, ainda que por vezes antiamericana, para fazer frente ao aliciamento de cérebros e de simpatias promovido pela URSS.

Foi assim que surgiu o Congress for Cultural Freedom, ou CCF, Congresso pela Liberdade Cultural, aberto no Titania Palace em 26 de junho de 1950, organizado pelo seu secretário-administrativo Michael Josselson (1908-1978). Este era um homem-forte da Agência, um diligente poliglota que nascera na Estônia e que servira na inteligência militar durante a guerra.(*)

Para tanto, contou com a colaboração direta de dois ex-comunistas alemães, Franz Borkenau e Ruth Fischer e a capacidade operacional e o entusiasmo de Melvin J. Lasky, editor da revista Der Monat. Além deles ainda estiveram presentes o historiador inglês Hugh Trevor-Roper, o escritor italiano Ignazio Silone, o sociólogo francês Raymond Aron e o filósofo nova-iorquino Sidney Hook. A palavra de ordem alardeada frente aos 15 mil exaltados participantes foi: "Amigos! A Liberdade tomará a ofensiva!" - como Arthur Koestler gritou para eles ao final da leitura do Manifesto pela Liberdade ao encerrar o congresso no dia 29 de junho.

(*) Josselson deixou para a Harry Ransom Humanities Research Center 34 caixas de documentos, entre elas a sua correspondência com intelectuais e políticos como Raymond Aron, Ulli Beier, Daniel Bell, Francois Bondy, Willy Brandt, Zbignew Brzezinski, Theodore Draper, Pierre Emmanuel, John Kenneth Galbraith, George F. Kennan, Arthur Koestler, Irving Kristol, Melvyn Lasky, Minoo Masani, Ezekiel Mphahlele, Jayaprakash Narayan, Nicolas Nabokov, William Oppenheimer, Michael Polanyi, Arthur Schlesinger, Jr., Edward Shils, Iganzio Silone, Stephen Spender, e Shepard Stone. A maioria deles formava o que se pode denominar como o estado-maior do anticomunismo ocidental.


Financiando a esquerda também

Portanto, foi no biênio de 1949-1950, caudatário da Doutrina Truman e do Plano Marshall, que se formou o embrião de uma série de atividades encobertas que visavam apoiar revistas, editoras, lançamentos de livros, encontros intelectuais e até espetáculos sinfônicos, para angariar simpatia para a política norte-americana. A engenhosidade do programa da CIA, que se estendeu por quase vinte anos até ser denunciado em 1967, revelou-se no fato de não somente patrocinar os anticomunistas mais notórios, mas sim de procurar atrair para o "o lado bom" os intelectuais esquerdistas que haviam rompido com o stalinismo ou que simplesmente eram assumidamente anti-soviéticos.

Exatamente esta política é que deveria ser ocultada da opinião pública norte-americana, na época fortemente influenciada pelas campanhas anticomunistas do senador Joseph McCarthy, que então presidia o Comitê das Atividades Antiamericanas. Seria intolerável para o cidadão norte-americano saber que o seu serviço secreto despejava o dinheiro dos contribuintes nos bolsos de esquerdistas, ainda que “amigos”.

A CIA então, temerosa de atrair contra si o furor do Macarthismo, ainda que por motivos diferentes, tratou de camuflar duplamente suas operações, tanto junto ao público interno (omitindo seu apoio ao ex-comunistas), como ao externo (ocultando que suas promoções culturais serviam aos interesses políticos e ideológicos do estado norte-americano).

Bibliografia

Grémion ,Pierre - Intelligence de l'anticommunisme. Le congrès pour la liberté de la culture à Paris (1950-1975), Paris, Fayard, 1995.
Koch, Stephen - Double Lives: Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West. Nova York: Free Press, 1993.
Koch, Stephen - Lying for the truth: Münzenberg & the Comintern. The New Criterion, on line.
Meekin, Sean - The Red Millionaire: A Political Biography of Willy Munzenberg, Moscow's Secret Propaganda Tsar in the West. Yale University Press, 2003.
Sauders, Frances Stonor – Quem pagou a conta? A CIA e a Guerra Fria da Cultura. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
Wilford, Hugh - The Mighty Wurlitzer: How the CIA Played America. Harvard University Press, 2008.
Voltaire Shilling

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