segunda-feira, 8 de julho de 2013

Cedo demais para julgar (22/02)

Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje (22/02/2008) no Correio Braziliense.Há situações em que os povos estão dispostos a enveredar por caminhos extremos sob o impulso do orgulho nacional, ainda que isso vá lhes trazer imensos sofrimentos. A Revolução Cubana de 1959 não foi um fato isolado, um raio em céu azul no Caribe.
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Não sei se é só piada ou tem algo de verdade, mas consta que em 1989 certo líder político da China recusou-se a dar opinião sobre a Revolução Francesa, quando desembarcava em Paris para participar da comemoração do bicentenário dela. “É cedo demais para uma avaliação”, ponderou. Ainda que seja só lenda, faz sentido. Pouco mais de dois séculos depois, a insurreição que acabou por levar Luís XVI e Maria Antonieta à guilhotina ainda é objeto de controvérsia.A historiografia antiliberal, por exemplo, debita a emergência do marxismo e das revoluções proletário-socialistas do século 20 na conta dos rebeldes que derrubaram a Bastilha em 14 de julho de 1789. Sem, é claro, esquecer de jogar parte da culpa nos intelectuais iluministas, que forneceram o substrato teórico e filosófico para questionar coisas sagradas, como o direito divino dos reis, a servidão e a ausência de igualdade de direitos.
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Já quem enxerga a História do pólo oposto afirma que o Terror, simbolizado em Maximilien de Robespierre, foi um mal necessário, a demonstrar que a violência revolucionária é a parteira da História. E que sem o Comitê de Salvação Pública não teria havido Napoleão Bonaparte. Ao qual por justiça, devem ser creditados muitos dos méritos pelas atuais taxas democráticas na Europa Ocidental. Ainda que o serviço tivese que ser completado por americanos e russos, mais de um século depois.Fazer julgamentos históricos é mesmo complicado. Vamos tomar, por exemplo, a Grande Revolta Judaica contra a dominação do Império Romano, cerca de quatro décadas após a crucificação de Jesus. Um de seus episódios mais famosos foi o cerco a Masada, fortificação no topo de um plateau no deserto da Judéia, às margens do Mar Morto. Ali, um punhado de radicais, os zelotes, coroaram com o suicídio coletivo a feroz resistência que vinham antepondo às legiões romanas.
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Os resultados práticos da revolta foram desastrosos para os judeus. O Templo de Jerusalém foi destruído e teve início uma diáspora de quase 20 séculos. Ainda hoje, quem visita Roma vê no arco de Tito a imagem esculpida dos legionários a carregar, como um troféu, o candelabro principal retirado do Templo. Sobre cujos restos repousam agora dois dos mais importantes lugares santos do Islã: as mesquitas da Rocha (a de cúpula dourada, lugar de onde Muhammad subiu ao céu) e de Al-Aqsa (onde se deflagrou a segunda Intifada).
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Fidel Castro deixou definitivamente nesta semana as funções de Estado em Cuba. Sua saúde precária precipitou a decisão. Tudo indica que o gesto do líder cubano marca a culminância de uma transição interna de poder no Partido Comunista, uma página virada. Fidel agora é História, ainda que — diferentemente de Getúlio Vargas — tenha entrado nela antes mesmo de deixar a vida.
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Eu prefiro aderir à piada do chinês em Paris e fugir de um juízo histórico sobre a Revolução Cubana. Até para não ver cobradas conclusões definitivas sobre outros fatos, anteriores. Como os dois casos citados no começo desta coluna.
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O uso indiscriminado do terror, por exemplo, deveria levar-me a condenar decisivamente a Revolução Francesa. Já as tragédias humanas decorrentes da Grande Revolta Judaica do início da Era Cristã na Judéia não deixariam alternativa: por um ângulo puramente pragmático, afrontar Roma foi mesmo uma grande estupidez, decorrente de certo fanatismo incompatível com a lógica política fria e até com a civilização.
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Há situações, entretanto, em que os povos estão dispostos a enveredar por caminhos extremos sob o impulso do orgulho nacional, ainda que isso vá lhes trazer imensos sofrimentos. A Revolução Cubana de 1959 não foi um fato isolado, um raio em céu azul no Caribe. A trajetória da ilha na sua luta pela independência antes de Fidel é uma sucessão de sonhos que se alternam com frustrações, de promessas e traições vindas do grande irmão que repousa poucas milhas ao norte.
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O processo político cubano tem mais a ver com o patriotismo do que com o socialismo — ainda que nas circunstâncias de países como Cuba seja difícil separar os dois vetores. A simpatia que a revolução liderada por Fidel desperta está relacionada com a resistência heróica ao domínio colonial e com o avanço inegável de conquistas sociais num país caribenho que tinha tudo para repetir as trágicas experiências nas nações marcadas pela escravidão, pela monocultura e pela dominação externa.É um bom debate, e que tem tudo para se estender por largo tempo. Como recomenda a sabedoria oriental, trata-se de travá-lo com paciência.
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