Sustento que não foi o clima frio que favoreceu o crescimento de civilizações mais avançadas. É que os habitantes de climas frios passaram mais tempo contemplando o fogo. Os povos de climas quentes têm menos necessidade de fogo para aquecê-los, por isso foram privados das divagações que vêm com a contemplação do fogo e são menos filosóficos e mais superficiais. Nos climas frios, de tanto olhar as chamas qualquer pessoa acabaria desenvolvendo, se não escatologias ou sistemas ontológicos completos, pelo menos teses. Foi contemplando o fogo de uma lareira, no último inverno, que desenvolvi a minha. Ou teria sido o conhaque?
Os povos de clima quente têm a experiência direta do sol na cabeça, os de clima frio experimentavam o sol armazenado na madeira, portanto o sol intermediado, reciclado pelo tempo. O fogo armazenado é o sol de segunda mão, quase uma versão literária. Olhar para o sol transformado em fogo domesticado leva a abstrações e ponderações, olhar para o sol original leva à cegueira. Mas tanto o sol vivo no céu quanto o sol ressuscitado no fogo podem destruir o cérebro, um fritando-o e outro levando-o para tão longe que ele se eteriza. Não há notícia de Einsteins em regiões tropicais, mas também não há notícia de cientistas loucos. Abstrações e ponderações em overdose também podem ser fatais. Contemplar muito o fogo também enlouquece.
A combustão da madeira, sendo consumida pelo fogo do sol que absorveu a vida toda, é uma metáfora para a existência: você também é consumido pela que lhe dá energia — mais ou menos rapidamente, dependendo de ser graveto ou nó de pinho. E concluí o seguinte, olhando as chamas: se envelhecer é ir ficando cada vez mais grave, só atingiremos nossa verdadeira seriedade depois de mortos, quando nos juntaremos aos fósseis. Também levaremos energia aprisionada para baixo da terra e seremos como o carvão, o petróleo e os restos degradados de tudo que já viveu, integrados na capa explosiva do planeta — o que pode ser mais sério?
Toda matéria orgânica, da jabuticaba ao Papa, almeja isso, essa respeitabilidade subterrânea, essa dignidade de mineral depois da frivolidade efêmera da vida. Do barro viemos e ao barro voltaremos, mas agora em outra categoria, depois da nossa temporada ao sol: a de combustível. Entendo quem prefira a cremação (que é quando a nossa identificação com lenha fica mais completa), mas eu quero tudo a que tenho direito depois de morto. Decomposição, gases — enfim, minha iniciação na nobre irmandade dos inflamáveis.
Olhando o fogo também pensei em seu poder hipnótico e em como ele devia inflamar a imaginação de quem o contemplava, no tempo das cavernas, e via nele fantasmas e presságios. O fogo era, de certa forma, a televisão da pré-história — com uma programação muito melhor.
Luiz Fernando Verissimo é escritor
A combustão da madeira, sendo consumida pelo fogo do sol que absorveu a vida toda, é uma metáfora para a existência: você também é consumido pela que lhe dá energia — mais ou menos rapidamente, dependendo de ser graveto ou nó de pinho. E concluí o seguinte, olhando as chamas: se envelhecer é ir ficando cada vez mais grave, só atingiremos nossa verdadeira seriedade depois de mortos, quando nos juntaremos aos fósseis. Também levaremos energia aprisionada para baixo da terra e seremos como o carvão, o petróleo e os restos degradados de tudo que já viveu, integrados na capa explosiva do planeta — o que pode ser mais sério?
Toda matéria orgânica, da jabuticaba ao Papa, almeja isso, essa respeitabilidade subterrânea, essa dignidade de mineral depois da frivolidade efêmera da vida. Do barro viemos e ao barro voltaremos, mas agora em outra categoria, depois da nossa temporada ao sol: a de combustível. Entendo quem prefira a cremação (que é quando a nossa identificação com lenha fica mais completa), mas eu quero tudo a que tenho direito depois de morto. Decomposição, gases — enfim, minha iniciação na nobre irmandade dos inflamáveis.
Olhando o fogo também pensei em seu poder hipnótico e em como ele devia inflamar a imaginação de quem o contemplava, no tempo das cavernas, e via nele fantasmas e presságios. O fogo era, de certa forma, a televisão da pré-história — com uma programação muito melhor.
Luiz Fernando Verissimo é escritor
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