Antonio Ozaí da Silva
Não estou entre os que vêem o mundo e realidade social e política sob as lentes do maniqueísmo.[1] Resisto à concepção dualista que reduz a complexidade do real à oposição entre o bem e o mal. O humano é um ser não redutível ao raciocínio maniqueísta. A história da humanidade demonstra que os bons, que se vêem como os justos, cometeram atrocidades. O mal mora no coração e nas mentes dos bons e ninguém é absolutamente bom ou mal. A depender das circunstâncias somos capazes de atitudes que não imaginamos e não nos reconhecemos. A nossa bondade pode causar muitos estragos, ainda que involuntariamente.
A história também comprova que meios considerados maus podem gerar bons resultados. O movimento da história é dirigido pela violência. Como diria o filósofo da práxis, a violência é a parteira da história. No entanto, ela é cruel e sangrenta. Consome almas e corpos; causa sofrimentos, dores indescritíveis e deixa marcas nos que sobrevivem. Não obstante, para o bem ou para o mal, a violência transforma o mundo. Só os ingênuos, os candidatos à beatificação e os que vivem com a cabeça nas nuvens não reconhecem este fato. Os profetas desarmados sucumbem. Se refletirmos bem, mesmo as religiões que afirmam o bem contra o mal foram regadas com sangue e padecimentos. Estudemos, por exemplo, as origens e evolução do cristianismo!
É a dialética da contradição humana. Somos seres contraditórios e talvez o maniqueísmo seja uma espécie de porto seguro. Quando estabelecemos muros que separam os “bons” dos “maus”, os “puros” dos “impuros”, invariavelmente nos colocamos do lado dos “bons” e dos “puros”. Isto nos dá segurança, sentido à vida e apazigua as nossas consciências. E aos que acreditam nos céus, alimenta a esperança de que serão salvos. Não esqueçamos que também o maniqueísmo é uma construção humana e corresponde às necessidades do ser no mundo. É compreensível.
A politização do ideário maniqueísta é um problema. A dialética é derrotada e substituída por dualismos que beiram a irracionalidade. Os “bons” e os “maus” são definidos a partir de critérios morais, à maneira religiosa, e o maniqueísmo é instrumentalizado para definir lados como absolutos. Amigos versus inimigos, nós contra eles. Ora, a divisão dual é incapaz de explicar a heterogeneidade entre os “nossos” – e pode nos fazer crer, erroneamente, que não há diferenças entre eles.
Contudo, é preciso escolher um lado. A neutralidade é uma doce ilusão e o apolitismo é próprio, como diria Brecht, do analfabetismo político. Há muito que escolhi o meu lado e, apesar das crises, da queda dos muros ideológicos (ainda bem!) e das decepções políticas, ainda me identifico com a escolha que fiz. Politicamente, estou com aqueles que lutam contra as injustiças geradas pela sociedade capitalista. São os libertários e marxistas, mas também os cristãos da teologia da libertação e/ou que assumem posições políticas à esquerda. Sim, estou entre os que se identificam com os princípios e valores ideológicos da esquerda. Somos “nós” contra “eles”.
Não é a rendição ao maniqueísmo, muito pelo contrário. Há muito superei a fase em que acreditava que estava entre os “bons” contra os “maus”. Tenho clareza de que o nosso lado, como o deles, é composto por seres humanos imperfeitos. Sei que os meios e fins de muitos dos “nossos” são profundamente autoritários. Se tomassem o poder político, eu estaria na oposição de esquerda em defesa da liberdade de expressão e de crítica. Muitos dos “nossos” também são corruptíveis e não vacilariam em perseguir os “inimigos” da nova ordem. Sou parte do “nós”, mas sem ilusões em suas utopias autoritárias e meios que contradizem os fins almejados, tão retoricamente enfatizados!
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[1] A filosofia maniqueísta surgiu na Babilônia e Pérsia no século III. O seu fundador foi o profeta Mani (ou Manés).
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