domingo, 26 de dezembro de 2010

A anomalia Obama

A anomalia Obama
Ainda encharcado de férias, as duas primeiras reações aos resultados eleitorais nos Estados Unidos foram com o fígado. Ei-las:

1 - Esse povo não sabe votar (o povo dos Estados Unidos, que fique claro).

2 - Xi, ganharam os correspondentes norte-americanos dos hidrófobos brasileiros que tanto emporcalharam a campanha eleitoral, destilando ódios e asneiras.

Depois, já curado do porre de ócio, Ed Pilkington, do "Guardian", me faz vestir a carapuça que jogou na sua coluna na capa da edição desta quinta-feira: "O movimento 'Tea Party', que 21 meses atrás não existia, e que tem sido amplamente ridicularizado por aqueles que pensam que sabem mais, não pode mais ser ignorado".

Bingo. Não é que o movimento ultraconservador tenha sido o vencedor da eleição. A história é um pouco mais complicada. Mas foi o "Tea Party" quem impôs a agenda eleitoral, puxou o Partido Republicano ainda mais para a direita e, portanto, deu uma ajuda bárbara (no duplo sentido da palavra) para a derrota do presidente Barack Obama.

Os que achamos que "sabemos mais" e ridicularizamos o "Tea Party" não nos demos conta de que, na verdade, a agenda norte-americana ou, ao menos, de metade da América, é a agenda do "Tea Party", não o contrário.

Ou, como preferiu Eduardo Lago, escritor e diretor do Instituto Cervantes em Nova York, em artigo para "El País", "o Tea Party é a cristalização do medo entranhado que meia América tem de que as coisas deixem de ser como vinham sendo desde sempre".

O americano médio é tão conservador que a esquerda nos Estados Unidos não é chamada de esquerda, mas de "liberal", o que carrega consigo a rejeição, por definição, do intervencionismo estatal, justamente a marca mais saliente da esquerda no resto do mundo.

Que tenha havido um voto contra o intervencionismo adotado por Obama tem lógica, portanto, mas tem também uma baita crueldade: grande parte do intervencionismo do presidente foi crucialmente necessário para conter a crise provocada, em grande parte, pelo excesso de "desintervencionismo" de seu antecessor republicano, George Walker Bush.

A volta do pêndulo para o lado conservador já deu, nesta quinta-feira mesmo, o primeiro sinal: Spencer Bachus, o republicano que, em tese, presidirá o comitê de Serviços Financeiros da Câmara de Representantes, mandou carta ao "Financial Times", avisando que certo tipo de regulação do setor financeiro, incluído no pacote Obama, causará tremendos prejuízos aos bancos norte-americanos.

Já John Boehner, que será o novo presidente da Câmara, com a maioria republicana, classificou de "monstruosidade" a reforma da saúde que foi a maior vitória de Obama nesses dois anos de governo, ainda que ela tenha sido aguada pela oposição não só dos republicanos mas de muitos democratas.

Posto de outra forma: as duas "intervenções" do presidente que mais faziam sentido começam a ser dinamitadas. Ou, olhando as coisas pelo avesso: a anomalia eleitoral não foi a vitória dos republicanos em 2010, mas a de Obama em 2008.


Clóvis Rossi

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