sexta-feira, 9 de maio de 2008

O Frankenstein da política brasileira

Em um ano de eleições municipais, cujos resultados tendem a influenciar a sucessão dos governos estaduais e federal, é sempre bom que os partidos renovem seus compromissos e reafirmem seus programas, a fim de que as escolhas do eleitor, mais do que em torno de pessoas, se dêem em função de projetos de sociedade, de visões de mundo ainda que referidas a instâncias locais ou regionais.

Qualificar melhor as propostas, detalhar os planos, aclarar as diferenças entre os diversos programas em debate, cotejar vícios e virtudes, avançar do diagnóstico para as propostas factíveis - eis uma incumbência que cabe às candidaturas e lideranças partidárias, sobretudo as do PT, mais vinculadas a movimentos sociais e comprometidas com a democracia participativa.

O confronto de idéias na disputa partidária é tanto mais necessário quanto mais se sabe que as eleições municipais, sobretudo nas cidades menores, tendem ao localismo, personificam o voto e favorecem alianças esdrúxulas - até porque a maioria dos partidos brasileiros carece de clareza programática e ideológica, ocultando freqüentemente seus interesses de classe.

Sobre esse pano de fundo, as ambigüidades prosperam. Interessados na confusão, os arautos contumazes do fim das polarizações e da indiferenciação entre esquerda e direita buscam seduzir os eleitores com as ilusões de classe. Nada melhor, diante do senso comum, do que igualar todos os partidos; nada mais oportuno do que alimentar a descrença nos políticos e na própria política.

É num clima de despolitização que retorna, agora em versão remodelada, a velha tese da aproximação entre o PT e o PSDB. Seriam tantas as similitudes entre ambos - sustentam os fãs da mancebia - que bastaria uma aliança nacional tucano-petista para banir em definitivo a fisiologia e assim augurar um futuro alvissareiro à política brasileira... Ou, como preferem outros, poderia surgir um governo ideal, tucano-petista, petista-tucano, tanto faz, que somaria a propalada capacidade gerencial do PSDB à reconhecida preocupação social do PT.

Diferenças, se existem, seriam de pouca nitidez, secundárias, realçadas artificialmente por uma encarniçada disputa de poder entre lideranças paulistas ou paulistanas - argumentam as parteiras desse Frankenstein partidário. E, para arrematar, apegam-se à suposta entente cordiale mineira e ao sofisma, repisado ad nauseam pela grande mídia, de que a política econômica do governo Lula seria mera continuidade da de FHC.

Fossem apenas acordos pontuais, como os que se dão em pleitos municipais país afora, ou mesmo em alianças mais gerais, como a que ocorreu na Bahia para destronar o carlismo, nada haveria a repelir, desde que mantidos a identidade partidária e os objetivos estratégicos.

Mas o que se intenta com o conluio promíscuo é mascarar divergências de fundo, projetos estratégicos opostos, práticas político-administrativas incompatíveis, visões de democracia divergentes, enfim concepções ideológicas antagônicas entre partidos cujas origens, base social e programas discrepam radicalmente entre si.

Mais ainda, os adeptos da convergência demonstram ter memória curta, pois esqueceram-se dos oito anos da parceria PSDB & PFL (cujo propósito expresso é “acabar com a nossa raça”), e das recentes juras de fidelidade de FHC aos “demos”, ocasião em que relembra ser o PT o principal inimigo a derrotar nas eleições. Não bastasse isso, vale recordar o fustigamento contínuo das CPIs politiqueiras e sem fundamento; as tentativas permanentes de desqualificar o presidente Lula por meio de ataques preconceituosos; o bloqueio do Orçamento até o início de 2008; a obstrução ao aumento do salário mínimo obrigando ao recurso a medida provisória para editá-lo; o boicote à saúde provocado pela extinção da CPMF, que resultou numa sangria de R$ 40 bilhões no Orçamento da União.

Finalmente, mas não menos relevante, o ensaio de putsch contra o presidente Lula que antecedeu as eleições de 2006. A conspiração foi abortada não pelas convicções democráticas de seus líderes, mas por avaliações de conveniência e oportunidade. Calculavam eles que eventual pedido de impeachment seria desnecessário, visto que Lula e o PT sangrariam até morrer devido ao massacre denuncista orquestrado entre a oposição raivosa e a mídia conservadora.

Voltemos às origens. O PT nasceu no final dos anos 70, fruto do encontro histórico entre a nova geração de sindicalistas, forjados nas greves contra a política de arrocho do regime militar, com as organizações comunitárias, populares, vinculadas à Igreja Católica, e militantes de esquerda de várias origens, egressos da luta clandestina contra a ditadura. Sob a liderança maior de Lula, o PT inscreveu no programa de fundação o compromisso inarredável com o aprofundamento da democracia, com a emancipação dos trabalhadores e a construção de uma nova sociedade - justa, fraterna, solidária, radicalmente democrática, uma sociedade socialista.

Em menos de três décadas, o PT chegou a dirigir as maiores cidades do País, inovando nas políticas públicas com o modo petista de governar. Conquistou e reconquistou a Presidência da República com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, cujo governo e popularidade atingem níveis de aprovação nunca dantes registrados graças às transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que vem empreendendo. Partido de esquerda, que elege diretamente seus dirigentes e promove prévias entre os filiados sempre que há mais de um concorrente ao mesmo posto, o PT virou referência internacional - e não apenas entre as organizações de esquerda.

Já o PSDB, auto-definido como social-democrata a despeito da carência de base sindical identificada, surgiu de uma costela do PMDB. Mais apropriadamente, da ruptura da frente peemedebista, em 1988, quando a hegemonia quercista ensejou a saída da maioria das lideranças para fundarem outro partido.

PT e PSDB, cada um a seu modo, representam setores sociais diferentes. Pode dizer-se, sumariamente, que o PT luta ao lado dos assalariados da cidade e do campo, dos sem-terra e sem-teto, dos funcionários públicos, trabalhadores informais, setores da intelectualidade e da pequena burguesia, enquanto os tucanos expressam os interesses do grande empresariado, dos rentistas, das camadas médias afluentes, da tecnocracia, de setores do meio artístico-intelectual e da direita desiludida com os velhos caciques tipo Maluf, Jânio ou ACM. Centro-esquerda, segundo alguns, ou a “direita com punhos de renda”, ao ver dos mais esclarecidos, eis o atual PSDB.

Parentesco com o PSDB, se existe, não é com o PT, mas sim com a vetusta UDN do século passado, adversária ferrenha da reforma agrária e do movimento sindical e mentora do golpe militar de 1964. Numa adaptação livre do trabalho da professora Maria Victoria Benevides (“A UDN e o Udenismo”), é possível afirmar que o PSDB é a UDN sem o Brigadeiro Eduardo Gomes, este bem sucedido (eleitoralmente) pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

São muitas as similaridades entre ambos. Vejamos.

Tanto a UDN quanto o PSDB são um hit da classe média, estrato social dileto de alguns quadros do PT, que, ao buscarem junto a ela diálogo e atração - necessários e desejáveis -, empunham bandeiras adversas às de nossas bases sociais e eleitorais estratégicas.

Inúmeras são as analogias do PSDB com a UDN. O elitismo, por exemplo, está presente na proclamada superioridade moral dos tucanos. Traço forte dos udenistas, a superioridade moral é um princípio glorificado, na presunção elitista, preconceituosa e anti-democrática de que os “melhores” nunca podem perder. Daí não se conceber que um torneiro mecânico, que mal passou pelos bancos escolares, possa ter “mais valor” do que o multi-doutor honoris causa FHC ou que “o melhor ministro da Saúde do mundo” José Serra.

O golpismo, justificável para resguardar a Constituição e para a defesa da lei e da ordem contra a baderna e a agitação, é recorrente em ambas as agremiações. Basta ver a criminalização do MST e a violenta repressão à greve dos petroleiros, para “quebrar a espinha” do movimento sindical. Expressão dos novos tempos tucanos, de aversão às reivindicações econômico-sociais, ela foi sintetizada magistralmente pelo então ministro do Planejamento de FHC, o hoje governador José Serra:

“O pagamento do salário no dia combinado não é uma questão de direitos humanos, mas de disponibilidade do caixa”.

O moralismo, tão caro à retórica udenista, é revivido pelo tucanato, que, embora envolvido com a privataria, a compra de votos, a corrupção financeira e a denúncia de negociatas com recursos públicos, enaltece suas supostas qualidades morais, inspiradas numa ética de decência, vergonha e dignidade, integralmente desconectada de sua pratica política.

E há ainda os traços comuns do antipopulismo, que é, na verdade, uma aversão visceral à participação popular, à democracia de massas, ao reconhecimento dos direitos sociais. Haja vista a ação do prefeito Serra para proscrever o recém-criado Conselho de Representantes das Subprefeituras, o esvaziamento do Orçamento Participativo, a resistência de seu sucessor em reconhecer o Conselho de Saúde democraticamente eleito e a ausência de diálogo do agora governador do Estado com as centrais sindicais e organizações populares, a ofensiva malograda contra a autonomia universitária...

Tais incompatibilidades não repousam apenas em conceitos. Estendem-se, para mencionar apenas alguns exemplos, na diferença de orientação dos governos do PSDB (FHC) e do PT (Lula) quanto ao exercício do poder de Estado, à política externa e às políticas sociais, temas que deverão ser abordados na segunda parte deste artigo, na terça-feira (12) da próxima semana.


Rui Falcão, advogado e jornalista, 64 anos, é deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão Marta Suplicy.

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