terça-feira, 20 de maio de 2008

Entrevista com Marina Silva

'Atuação foi pífia neste mandato'

USINAS: “O licenciamento levou 2 anos, mas foi dado. E aprendemos demais. Não era uma discussão de filigranas”

AMAZÔNIA: “O sociólogo FHC encontrou dificuldades para tratar do tema, assim como o operário Lula tem dificuldades”

LEI: “O Brasil tem excelente legislação ambiental. Vários países ainda estão na pré-história do licenciamento”

De João Domingos:

A ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva diz que deixa o governo motivada para fazer o que não pôde fazer. Ela repete que decidiu sair para dar uma sacudida na política ambiental. E faz uma autocrítica com relação ao segundo mandato do presidente Lula. Acha que, se fosse considerada a média do que se produziu nestes um ano e cinco meses, o resultado ao fim de 2010 “seria pífio”.

“Nosso desempenho nos primeiros quatro anos de governo foi fantástico. É algo que tem de ser recuperado e eu não podia mais fazer. É preciso continuar no ritmo em que começamos.” Ela, que reassumirá o mandato de senadora depois do feriado, avisa que, se a política ambiental piorar, não hesitará em usar a tribuna, “o diálogo e a capacidade de interagir que um senador tem com os ministros e o presidente”.

Marina admite que a entrada das hidrelétricas na Amazônia é um processo irreversível, já que é a maior bacia hidrográfica do País. Para ela, a demora nas licenças das usinas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, serviu de aprendizado. Nesse sentido, prevê que não haverá problemas com a de Belo Monte, no Rio Xingu.

Ela planeja dizer a seu substituto, Carlos Minc, que não é necessário mudar as regras para a concessão de licença ambiental. Considera que elas são suficientes e que hoje é possível fazer uma concessão em até seis meses, como no caso da Usina de São Salvador, no Tocantins.

Se a entrada das hidrelétricas na Amazônia é irreversível, por que não fazer logo as exigências necessárias, em vez de protelar a concessão de licenças, como aconteceu com Jirau e Santo Antônio?

O licenciamento levou dois anos, mas foi dado. Aprendemos demais com o processo. No governo a discussão envolvia Casa Civil, Integração Nacional, Minas e Energia, Meio Ambiente e Transportes. Não era discussão sobre filigranas. Por exemplo, a turbina prevista era uma tradicional, que faria com que o lago tivesse extensão oito vezes maior. Nas discussões foi sugerido, e decidido, o uso de turbinas de bulbo. Com a tradicional, haveria um septo na frente, de mais de 16 metros de altura, para protegê-la dos sedimentos, porque o Rio Madeira é o terceiro que mais carrega sedimentos no mundo. Com isso, as larvas dos peixes, os tais grandes bagres que me deram a alcunha de ministra dos bagres, ficariam retidas com os sedimentos. Teríamos também o problema de deposição de mercúrio. Segundo estudos, em 10 anos o lago estaria assoreado.
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Era ou não relevante diminuir o lago, resolver o problema dos peixes, do mercúrio, da malária?
Estas questões levaram aos debates. E o bom foi que percebemos que havia resposta técnica para tudo. E o determinante do ponto de vista político e ético foi que faríamos o empreendimento, mas resolvendo o problema do mercúrio, dos sedimentos, dos bagres e da malária. E o licenciamento não foi contestado na Justiça ao ser concedido porque foi feito com capacidade técnica, com cláusulas condicionantes.

Que empreendimento terá dificuldade para ter a licença ambiental?

Angra 3 terá muita dificuldade.

Quem fez a crítica à proteção aos bagres foi Lula. E a sra. só ficou sabendo que o ministro Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos) comandaria o Plano Amazônia Sustentável no lançamento. Quando discursou, a sra. falou na história dos bagres. Foi uma vingança?

Não tenho a informação de que foi o presidente Lula quem falou nos bagres. Os jornais noticiaram que um deputado disse que foi ele. Quando falei dos bagres, não estava me vingando. Procurei fazer uma brincadeira, uma metáfora. O político tem de ter certa leveza. Quem levou a fama dos bagres fui eu. Onde chegava, alguém perguntava: “E os bagres?” Eu é que era folclorizada nessa história.

A sra. se irritava muito com essa questão dos bagres?

Não. Tem gente com preconceito contra índio. Se alguém me chamar de índio, vou ficar orgulhosa. Se disserem que sou defensora dos bagres, vou sentir orgulho, porque defendo a vida deles e também a geração de energia para o País. Sou defensora do menor sapinho que tiver na margem de um rio, mas sou também defensora dos biocombustíveis. A resposta boa é que é possível ter energia protegendo os bagres, foi o que a gente fez. É possível produzir os biocombustíveis mantendo as áreas de preservação permanente, as unidades de conservação, os corredores ecológicos.

Carlos Minc defende uma legislação que dê mais rapidez à concessão das licenças ambientais.

Recebi um recado de que Minc quer conversar comigo. Se tiver oportunidade, vou dizer que o Brasil tem uma excelente legislação ambiental. O que temos é déficit de implementação. Os ministros anteriores deram uma grande contribuição na questão do marco regulatório. Quando cheguei ao ministério, já com o marco regulatório, pudemos trabalhar o desenvolvimento sustentável e a lei de gestão de florestas públicas. O licenciamento é um processo difícil, complexo, que se firmou bem no Brasil. É um dos poucos países da América Latina que conseguiram consolidar uma política de licenciamento ambiental. Não é fácil. Vários países ainda estão na pré-história do licenciamento.

Então, por que a demora na concessão das licenças?

Quando cheguei ao ministério, havia cerca de 80 servidores e 90% contratados temporariamente. A média de licenças era de 145 por ano e 45 estavam na Justiça. Fortalecemos o Ibama, fizemos concursos. Hoje são mais de 180 servidores concursados, com mestrado, doutorado, técnicos respeitados. Apenas 20% são temporários. Com isso, os empreendedores passaram a ter maior responsabilidade, que é apresentar projetos com maior qualidade. Saímos de uma média de 145 para 230 licenças por ano. Com a diferença de que neste momento não há nenhuma judicializada.

A sra. disse que saiu do governo porque estava sem condição de tocar a política ambiental e seu gesto daria uma sacudida no setor, o que ocorreu. A sra. ficou decepcionada com os resultados obtidos?

Se falar em termos de decepção vou deixar de falar sobre a coisa mais importante, a motivação. Quero manter a motivação para ajudar a fazer as coisas que não foram feitas. Saio motivada para fazer aquilo que não pude fazer. Espero que a agenda não sofra nenhum rebaixamento, que siga só para cima, e não para baixo.

Se a política ambiental mudar, afrouxar, o que a senhora fará?

Se estivesse no governo, usaria o espaço institucional. No Senado, terei a tribuna, comissões, o diálogo e a capacidade de interagir que um senador tem com os ministros e o presidente. Temos toda condição de implementar a resolução do Conselho Monetário Nacional, de vetar a concessão de crédito a partir de julho para quem tem investimentos em áreas ilegais.

Que análise faz do seu desempenho e do governo na área?

Nosso desempenho nos primeiros quatro anos foi fantástico; nos primeiros um ano e cinco meses deste mandato, se pegarmos a média, ao chegar em 2010 seria pífio. Isso é algo que tem de ser recuperado e eu não podia mais fazer. No dia do lançamento do PAS havia expectativa de criação de uma unidade de conservação no Xingu. Mas não foi criada. Há violência, a comunidade quer a criação porque os jagunços estão lá, atirando. Qundo criarmos as pessoas serão protegidas. É preciso continuar no ritmo em que começamos.

A origem urbana do presidente Lula e de boa parte de seus ministros fez com que a sra. ficasse isolada?

No caso do presidente Lula, não dá para dizer isso. Durante a vida toda ele foi para as bibocas mais profundas, visitou a Amazônia. Não é questão do presidente ou da ministra. É mais profundo. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso encontrou dificuldades para tratar do tema, assim como o operário Lula tem dificuldades. Há coisas emblemáticas: FHC, corajosamente, criou a reserva indígena Raposa Serra do Sol, Lula, corajosamente, a homologou. Esse impasse não está apenas no governo, está na sociedade. Se ainda temos a dinâmica de desenvolvimento sustentável do século 19, é preciso pular para o século 21. Desenvolver com preservação os ativos ambientais e proteger os ativos que prestam serviços à economia. Se não fizermos isso, vamos sempre correr atrás do prejuízo. A sociedade exige isso. E não pode surgir do esforço de um ministro isolado. É a ação de Agricultura, Ciência e Tecnologia, Educação, Transportes, Minas e Energia, que vai dar conta desse desafio.

A sra. trabalhou com os ministros da Casa Civil José Dirceu e Dilma Rousseff. Com quem foi mais fácil?

Não diria mais fácil. Cada um enfrentou desafios diferentes. Na minha agenda não tinha como ser fácil. Fazer o arranjo do Madeira (na gestão Dilma) foi tão difícil quanto o da BR-163 (na de Dirceu). O do Rio São Francisco também foi difícil. O que é preciso é ter no governo prioridade para o meio ambiente igual à dos outros setores. Às vezes brincava com eles: por que ninguém cria uma sala de situação para mim, pelo menos um quartinho de situação? Falava disso para acelerar a criação de unidades de conservação. O Brasil criou nos últimos anos 24 milhões de hectares de unidade de conservação. Criamos 8 milhões de hectares na frente da expansão predatória da BR-163 e o desmatamento caiu 91%. Queriam plantar soja na área do Madeira. Não foi permitido. Foi uma ação de governo, meio ambiente pensado como projeto de governo. Não pode ser ação isolada do ministro. Só foi possível porque o presidente Lula bancava.

Minc disse que não tem planos para o ministro Mangabeira. O que a sra. acha de Mangabeira?

Tive um contato muito curto. O que tenho é um olhar para a Amazônia. Mudou muito nos últimos 20 anos. A idéia era o desenvolvimento na Amazônia e não para a Amazônia. Havia muito o olhar do Sul, Sudeste. Hoje há outra realidade. Governadores como Eduardo Braga (AM), Binho Marques (AC), Ana Júlia (PA), Valdez Góes (AP) e Marcelo Miranda (TO) têm grande abertura para discutir as coisas. A Amazônia é diversificada. O olhar não é só dos produtores de grão, dos pecuaristas, dos índios, das populações tradicionais, das urbanas. Cabe ao governante fazer a mediação entre eles e estabelecer o pacto para uma nova dinâmica de desenvolvimento, para manter a Amazônia e a sua diversidade cultural. Para isso é preciso que ela seja diversificada economicamente.

Teme a destruição da Amazônia?

A destruição da Amazônia prejudicaria o País. Boa parte das precipitações no Sul, no Sudeste ocorre em função da Amazônia. Imagine o que é isso virar um deserto. Não vai acontecer para os que pensam na sua vida agora. Mas vai acontecer para nossa vida no futuro.

O que a sra. fez pela Amazônia?

Todos fizemos, governos anteriores também. Não se está dizendo que não pode ter agricultura na Amazônia, pecuária, manejo florestal. O que se diz é que isso passa por um novo paradigma, que é fazer com que todo o conhecimento técnico seja colocado à disposição, com os instrumentos econômicos necessários para que a produção seja diversificada, em bases sustentáveis. Um exemplo: quando chegamos, havia 300 mil hectares de floresta certificada; hoje são 3 milhões. Chegamos a isso combatendo as práticas ilegais, aqueles que fazem exploração de rapina, roubando madeira em terra indígena, em terra pública, em unidade de conservação. Quando fomos expurgando estes, graças à aplicação de R$ 4 bilhões em multas, à prisão de 665 pessoas, ao desmantelamento de 1.500 empresas ilegais criminosas, os empresários legais foram se estabelecendo.

(*Entrevista transcrita do jornal O Estado de S.Paulo, dia 18 de maio)

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