Desde os começos da ditadura bolchevique sabia-se da utilização dos campos de prisioneiros. Nada se estranhar visto que a Rússia, entre 1918-1920, mergulhara numa violentíssima guerra civil entre vermelhos (os bolcheviques) e os brancos (as forças czaristas), ampliada ainda mais pela intervenção de diversas potências estrangeiras (além dos alemães, ingleses, franceses, americanos, japoneses). Todavia verificou-se que, no após-guerra, o regime soviético vitorioso resolveu intensificar sua política prisional.
Muitos dos primeiros campos visavam servir de laboratório ideológico, voltado a demonstrar a notável capacidade de regeneração desenvolvida pelo novo sistema, capaz de reinserir os criminosos, por meio do trabalho produtivo, na sociedade revolucionada. Stalin, inspirando-se no exemplo de Pedro, o Grande, que lançara mão do trabalho forçado para construir São Petersburgo, a partir de 1703, não demorou em fazer o mesmo.
Milhares de convictos foram então arrebanhados para cavarem o grande Canal do Mar Branco (1928-1932) que ligaria Leningrado ao Oceano Ártico, velho sonho dos mercadores russos, mas que logo mostrou-se ultrapassado devido a possibilidade da utilização de caminhões. Todavia, Stalin fez questão de usar a colossal obra para fins publicitários, para mostrar ao país como o regime soviético mobilizava o povo para empreender grandes feitos de engenharia.
Assim, toda a antiga política czarista dos trabalhos forçados coletivos foi ressuscitada pelo novo regime só que reciclada e posta a serviço da Grande Causa. Resultou disso que, a partir de 1928, a Comissão Yanson, que transferira do Comissariado da Justiça para a OGPU (Polícia Secreta) a supervisão sobre o "degredo administrativo", decidiu batizar os campos como ITL (Ispravitelno trudovye lagerya), simplesmente campos de trabalho corretivo. As instalações existentes na ilha de Solovetsky, no Mar Branco, situado na região semipolar da URSS, elogiadas por Máximo Gorki e por outros escritores soviéticos da época, foram então apontadas como um campo-modelo, arquétipo do que, desde então, foi construído no restante do país. Todo o Arquipélago Gulag surgiu dali, daquela célula prisional boiando num mar glacial.
Para justificar a lotação cada vez maior deles, Stalin apelou para a justificação ideológica de que conforme o socialismo avançava por todo o país, maior era a resistência das forças contrárias a ele. Situação que o obrigava a ser ainda mais duro do que comumente era. Uma curiosa operação matemática então se deu na década dos anos trinta: mais socialismo significava ainda maior população encarcerada.
Uma enorme rede de "campos de reeducação" espalhou-se pela Rússia Soviética, alcançando inclusive as remotas áreas da Ásia Central, como os desertos do Cazaquistão. E, claro, pelas margens da imensa estrada-de-ferro que cortava a conhecida Sibéria, a velha pátria dos degredados russos, dos antigos condenados a katorga dos tempos do czar (os condenados ao trabalho forçado).
Com as prisões em massa desencadeadas na época da Yezovchnina (as perseguições ao encargo de Nikolai Yezhov, comissário-chefe da então NKVD), quando Stalin determinou a prisão e encarceramento de milhares de suspeitos de "sabotagem" e atividades "anti-socialistas", em geral ex-membros da elite soviética e quadros médios do Partido Comunista, estima-se que o GULAG tenha abrigado, entre 1936-1940, dois milhões de prisioneiros.
O martírio de Soljenitsin
Oficial de artilharia durante a Segunda Guerra Mundial, Alexander Soljenitsin, foi condenado no final do conflito por um dos artigos do Código Penal soviético que lhe fixou inicialmente uma pena de dez anos. Cumpriu-a por primeiro numa das prisões de elite situada ao redor de Moscou antes de ser enviado para os sem-fins da Ásia Central.
A vida nesta primeira instalação é que o inspirou a escrever "O Primeiro Circulo", romance cujo titulo foi extraído do "Inferno" de Dante, espaço reservado aos sábios caídos em desgraça. Stalin, por sugestão do seu novo chefe da polícia política Laurenti Béria (1938-1953), havia concordado em erguer cárceres especiais para pesquisadores e homens de ciência denunciados como suspeitos para que eles pudessem trabalhar juntos nos projetos mais urgentes do regime. Para piorarem mais as coisas para ele, foi atacado por um violento câncer no estomago, o que o levou a internar-se num hospital de presos (tema do "O Pavilhão dos Cancerosos").
Liberto após a morte de Stalin, miraculosamente vivo, aproveitando-se da moderada desestalinização que se seguiu, dedicou-se, a partir de 1957, a lecionar matemática em Riazan e a publicar suas novelas e contos que escondera com muito cuidado, muitas delas redigidas nas condições abomináveis da vida de um zek, um prisioneiro dos campos.
Soljenitsin dizia rir-se daqueles homens de letras, seus contemporâneos, que inventavam mil e umas manias, que só conseguiam pegar na pena em condições muito próprias, ideais. Ele aprendera a manejar o lápis ou a caneta ainda quando em marcha com os demais encarcerados, na hora do rancho ou nos intervalos do corte de lenha no mato. A paixão dele pela literatura fazia dele um obcecado registrador de palavras. Viu-se quase como um furioso enchendo um sem-fim de cadernos e resmas de papel, escrito sem margens e com o mínimo de espaço entre uma linha e outra, nas piores circunstâncias possíveis.
O Impacto do Arquipélago Gulag
Não que a opinião pública do Ocidente não soubesse dos campos de trabalho do regime soviético. Longe disso. Ainda após a Segunda Guerra Mundial, um trânsfuga do governo comunista que pedira asilo político no Canadá chamado Victor Kravchenko os denunciara num livro intitulado na sua edição em inglês como I choose Freedom ("Eu preferi a liberdade", 1947).
Além de afirmar que "a ditadura comunista na URSS não era exclusivamente um problema do povo russo, ou somente das democracias, senão que da humanidade inteira", ele revelara que os comunistas haviam erigido um Estado-Policial como poder discricionário sobre os cidadãos.
Um ataque feroz que ele recebeu da imprensa comunista da França, que tentou desqualificá-lo, acusando-o de mentiroso, rendeu-lhe a vitória em dois processos nos tribunais de Paris, em abril de 1949. O affair Kravchenko, todavia foi esquecido e muitos intelectuais entenderam que a denúncia dele ligava-se às posições anticomunistas dos norte-americanos nos começos da Guerra Fria e, como conseqüência, deviam ser um tanto exageradas, senão descabidas. Além disso, ele aparecera no cenário como um traidor da causa. Na memória de outros, todavia, pesava ainda o fato de que fora o regime stalinista quem impusera uma derrota definitiva ao nazismo. A Europa Ocidental ainda tinha na lembrança o sacrifício dos russos em Stalingrado para querer levar a diante um tema tão espinhoso como aquele levantado por Kravchenko.
Do livro dele, editado em 1947, ao "Arquipélago Gulag" de Soljenitsin, traduzido no Ocidente 27 anos depois, muita desilusão se dera em relação às grandes bandeiras do socialismo.
Os soviéticos haviam intervido com seus tanques em Berlim, em 1953, em Budapeste, em 1956, e em Praga, em 1968. Em 1961, Kruschev, provocando um enorme estrago na imagem internacional do socialismo, determinara a construção do Muro de Berlim, com ordens em disparar em quem tentasse ultrapassá-lo para alcançar o Ocidente. De libertadores da Europa, os soviéticos passaram a ser vistos como seus mais recentes opressores. Deste modo criou-se um clima bem mais favorável ao acolhimento do relato sobre o Gulag.
Profeta da Rússia Ortodoxa
O livro em si, aprontado em 1973, é caótico. Durante alguns anos, Soljenitsin, como se fora um cuidadoso colecionador, recolheu o mais variado número de relatos e depoimentos de gente que fora condenada aos trabalhos forçados, misturando-os com seus próprios registros. Não se trata, pois, da experiência prisional de um só homem (como, por lembrança, deu-se com "Recordações da Casa dos Mortos" de Dostoiévski), mas sim de uma coletânea de dolorosos e pungentes testemunhos daqueles que penaram por diversos anos dentro do Gulag.
O livro, traduzido para diversos idiomas ocidentais, teve o efeito de um tufão. Não se tratava de um fugido que saltara o muro ou um renegado do comunismo, mais sim alguém de dentro que sabidamente trilhara pelo purgatório do stalinismo e que sobrevivera, um respeitado escritor que atingira fama internacional e que fora indicado ao Prêmio Nobel, em 1970 (ele temia viajar para Estocolmo com receio de que as autoridades soviéticas não o deixassem voltar). Um homem de letras preso às raízes mais profundas da terra russa, um descendente das estepes da região de Rostov, que se negara a deixar o solo natal e só o fizera por motivo do decreto que o expulsou definitivamente do país, em 1974 (exilado nos Estados Unidos, em Vermont, somente retornou à URSS em 1994, durante o governo de Gorbatchov). Soljenitsin não podia ser difamado como um "agente do imperialismo" ou de estar a serviço dos interesses estado-unidenses como costumeiramente ocorria nesses casos quando os jornais esquerdistas ou pró-comunista procuravam desqualificar uma testemunha que apontasse seu dedo acusador para a URSS ou o seu regime.
Com o tempo, Soljenitsin, como que desiludido das coisas do mundo, assumiu uma posição cada vez mais pessimista, quase de mensageiro apocalíptico, alguém que, nos moldes dos Velhos Crentes (seita russa do século 19 que tinha ojeriza à ocidentalização e aos costumes modernos), começou a lançar anátemas ao Ocidente, lamentando a perda da originalidade da cultura russa provocada pela Revolução de 1917 e pela obstinação dos stalinistas em industrializar o país.
Para afirmar ainda mais sua aparência de Santo Inquisidor dostoievsquiano ou de profeta tolstoiano, cada vez mais misantropo, deixou que as barbas lhe tomassem inteiramente o rosto, assemelhando-se aos patriarcas mujiques ou aos monges ortodoxos, a quem ele via como as mais originais e representativas figuras da "verdadeira Rússia".
Voltaire Schilling
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