Segurança Alimentar na China e Brasil
Milton Pomar
Milton Pomar
Cenas de pobres em filas de sopa nos EUA são bastante comuns em filmes. Quem quiser atualizar-se a respeito pode assistir “Pursuit”, no qual o ator William Smith vivencia esse drama durante algum tempo, antes de “vencer na vida”. A existência até hoje desse tipo de “Fome Zero” dos EUA, país maior produtor e exportador de cereais do mundo e com mais de 25% de obesos entre a população de 19 estados, é tão absurdo quanto o do Brasil, maior exportador mundial de carnes e soja e primeiro lugar em mais cinco outros produtos agrícolas.
A comparação nesse aspecto entre os EUA e o Brasil faz sentido, porque o modelo dominante de agricultura é o mesmo em ambos. O Brasil implantou na década de 70 o modelo norte-americano das “plantation” - às custas da destruição de quase metade do Cerrado - , subsidiou muito a entrada de empresas de outros setores na agricultura e a mecanização em grande escala, estruturou e bancou o funcionamento de uma grande rede de pesquisa, assistência técnica e armazenagem, e durante dez anos subsidiou também a expansão da produção de trigo e de cana de açúcar para produzir álcool.
Essa agricultura “industrial” made in USA depende de ajuda do Estado, e os EUA não abrem mão de subsidiar seus produtores e exportadores agrícolas, coisa de US$100 bilhões todos os anos. Parte desse dinheiro é obtido com as sobretaxas que impõem ao suco de laranja, couro de boi, açúcar e carnes do Brasil e de outros países que exportam para os EUA.
Quando houve a crise agrícola de 85, o governo Reagan impôs uma redução de 15% da área plantada e pagou o lucro não-realizado dos fazendeiros. (E aumentou a sopa, porque aumentaram os pobres no seu governo, de 14% para 18%.)
Essas reflexões cabem cada vez mais no Brasil, em tempos de safras de 130 milhões de toneladas, superávits de US$40 bilhões no comércio exterior agrícola, propaganda dos transgênicos como “solução para a agricultura”, uso do espaço rural para cana versus alimentos, Reforma Agrária(?) tímida e discussões sobre os modelos de produção agrícola e as políticas públicas (crédito, subsídios, investimento em pesquisas, comercialização) para esse setor. Qual é a lógica de um país recordista de produção e exportação agrícolas como o Brasil ainda ter tanta gente subnutrida?
A China abriu mão dos impostos agrícolas e da ajuda alimentar da ONU a partir de 1º de janeiro de 2006. Ela recebia doações de cereais desde 1980, através da FAO. Já os impostos sobre a agricultura existiam há 2.600 anos, e a sua anulação implica em uma redução de custos de até 20%.
Como que esse país, com 71% do seu território tomado por desertos, regiões áridas, semi-áridas e “drylands”, e tendo que dividir o espaço restante com áreas urbanas, pode produzir alimentos em quantidade suficiente para alimentar o seu 1,35 bilhão de habitantes? Como proporcionar segurança alimentar a essa população, plantando cereais em pouco mais de 100 milhões de hectares?
Quando começou seu processo de Reformas, o governo o fez pela Agricultura, ainda em 1978. Esse setor respondeu com um salto espetacular na produção, de 320 milhões de toneladas, para 505 milhões 20 anos depois. Em 2005, foram 484 milhões de toneladas de cereais e 30,8 milhões de oleaginosas, e a área plantada total atingiu 124 milhões de ha. Nesse ano, a produção de carnes teria atingido 77 milhões de toneladas, e a de peixes mais 51 milhões.
Das várias medidas implementadas a partir de 1978 na agricultura chinesa, certamente as que produziram maior efeito sobre os produtores foram as relativas à rentabilidade da atividade. E essas só puderam ser viabilizadas à medida em que a população aumentava o seu poder aquisitivo, via distribuição de renda. Os preços pagos aos agricultores estimularam o aumento da produtividade, daí a busca por novas tecnologias e a utilização cada vez maior de fertilizantes e irrigação. No caso brasileiro, houve aumento da produção graças também às novas tecnologias e maior consumo de fertilizantes, mais a incorporação de grande quantidade de novas áreas.
Tanto na China como no Brasil a ciência e a tecnologia deram conta de propiciar os meios para esse aumento da produção de alimentos, a ponto de hoje ambos os países serem autosuficientes. A razão aparentemente contraditória de haver fome no Brasil e não haver na China, reside essencialmente na distribuição de renda e no crescimento econômico, completamente distintos nos dois países. Graças ao aumento do poder de compra da população, via distribuição de renda, que acompanha e dá sustentação ao veloz crescimento (média anual de 9% nos últimos 27 anos) da economia da China, a sua agricultura pode aumentar a produção em mais de 50% sem aumentar a área plantada. Em contrapartida, no Brasil, a economia entrou em parafuso em 1974 e só começou a melhorar com o crescimento (insuficiente) registrado no governo Lula a partir de 2004. Nas décadas de 70, 80 e 90, o Brasil produziu uma concentração de renda tão grande que coloca o país no grupo dos mais pobres do planeta. Infelizmente, até agora o governo Lula e a sociedade brasileira não conseguiram melhorar de forma significativa a distribuição de renda no país. Essa condição mantém quase metade da população brasileira vivendo com menos de 2/3 do mínimo para a sobrevivência de uma família. Daí porque falta comida no consumo e sobra na produção.
Havia 854 milhões de famintos no mundo em 2006, segundo a FAO. Um aumento de 54 milhões de famintos, em relação a 1996. Esse aumento só não foi maior graças ao desempenho da China, o país apontado por alguns especialistas, céticos quanto à sua capacidade de produzir a própria comida, como o grande perigo para a alimentação mundial. Pois foi a China, com a redução de 250 milhões para 26 milhões de “necessitados”, na década de 80, quem produziu o maior avanço mundial no combate à fome.
Dois outros aspectos interessantes, na comparação entre EUA, China e Brasil, é que os dois primeiros realizaram Reforma Agrária de verdade, não o arremedo que se vê em nosso país, e possuem uma infraestrutura de Logística muito superior à brasileira, praticamente toda ela com ferrovias e hidrovias.
Milton Pomar é profissional de marketing e geógrafo. Atualmente está morando na China, por razões profissionais.
A comparação nesse aspecto entre os EUA e o Brasil faz sentido, porque o modelo dominante de agricultura é o mesmo em ambos. O Brasil implantou na década de 70 o modelo norte-americano das “plantation” - às custas da destruição de quase metade do Cerrado - , subsidiou muito a entrada de empresas de outros setores na agricultura e a mecanização em grande escala, estruturou e bancou o funcionamento de uma grande rede de pesquisa, assistência técnica e armazenagem, e durante dez anos subsidiou também a expansão da produção de trigo e de cana de açúcar para produzir álcool.
Essa agricultura “industrial” made in USA depende de ajuda do Estado, e os EUA não abrem mão de subsidiar seus produtores e exportadores agrícolas, coisa de US$100 bilhões todos os anos. Parte desse dinheiro é obtido com as sobretaxas que impõem ao suco de laranja, couro de boi, açúcar e carnes do Brasil e de outros países que exportam para os EUA.
Quando houve a crise agrícola de 85, o governo Reagan impôs uma redução de 15% da área plantada e pagou o lucro não-realizado dos fazendeiros. (E aumentou a sopa, porque aumentaram os pobres no seu governo, de 14% para 18%.)
Essas reflexões cabem cada vez mais no Brasil, em tempos de safras de 130 milhões de toneladas, superávits de US$40 bilhões no comércio exterior agrícola, propaganda dos transgênicos como “solução para a agricultura”, uso do espaço rural para cana versus alimentos, Reforma Agrária(?) tímida e discussões sobre os modelos de produção agrícola e as políticas públicas (crédito, subsídios, investimento em pesquisas, comercialização) para esse setor. Qual é a lógica de um país recordista de produção e exportação agrícolas como o Brasil ainda ter tanta gente subnutrida?
A China abriu mão dos impostos agrícolas e da ajuda alimentar da ONU a partir de 1º de janeiro de 2006. Ela recebia doações de cereais desde 1980, através da FAO. Já os impostos sobre a agricultura existiam há 2.600 anos, e a sua anulação implica em uma redução de custos de até 20%.
Como que esse país, com 71% do seu território tomado por desertos, regiões áridas, semi-áridas e “drylands”, e tendo que dividir o espaço restante com áreas urbanas, pode produzir alimentos em quantidade suficiente para alimentar o seu 1,35 bilhão de habitantes? Como proporcionar segurança alimentar a essa população, plantando cereais em pouco mais de 100 milhões de hectares?
Quando começou seu processo de Reformas, o governo o fez pela Agricultura, ainda em 1978. Esse setor respondeu com um salto espetacular na produção, de 320 milhões de toneladas, para 505 milhões 20 anos depois. Em 2005, foram 484 milhões de toneladas de cereais e 30,8 milhões de oleaginosas, e a área plantada total atingiu 124 milhões de ha. Nesse ano, a produção de carnes teria atingido 77 milhões de toneladas, e a de peixes mais 51 milhões.
Das várias medidas implementadas a partir de 1978 na agricultura chinesa, certamente as que produziram maior efeito sobre os produtores foram as relativas à rentabilidade da atividade. E essas só puderam ser viabilizadas à medida em que a população aumentava o seu poder aquisitivo, via distribuição de renda. Os preços pagos aos agricultores estimularam o aumento da produtividade, daí a busca por novas tecnologias e a utilização cada vez maior de fertilizantes e irrigação. No caso brasileiro, houve aumento da produção graças também às novas tecnologias e maior consumo de fertilizantes, mais a incorporação de grande quantidade de novas áreas.
Tanto na China como no Brasil a ciência e a tecnologia deram conta de propiciar os meios para esse aumento da produção de alimentos, a ponto de hoje ambos os países serem autosuficientes. A razão aparentemente contraditória de haver fome no Brasil e não haver na China, reside essencialmente na distribuição de renda e no crescimento econômico, completamente distintos nos dois países. Graças ao aumento do poder de compra da população, via distribuição de renda, que acompanha e dá sustentação ao veloz crescimento (média anual de 9% nos últimos 27 anos) da economia da China, a sua agricultura pode aumentar a produção em mais de 50% sem aumentar a área plantada. Em contrapartida, no Brasil, a economia entrou em parafuso em 1974 e só começou a melhorar com o crescimento (insuficiente) registrado no governo Lula a partir de 2004. Nas décadas de 70, 80 e 90, o Brasil produziu uma concentração de renda tão grande que coloca o país no grupo dos mais pobres do planeta. Infelizmente, até agora o governo Lula e a sociedade brasileira não conseguiram melhorar de forma significativa a distribuição de renda no país. Essa condição mantém quase metade da população brasileira vivendo com menos de 2/3 do mínimo para a sobrevivência de uma família. Daí porque falta comida no consumo e sobra na produção.
Havia 854 milhões de famintos no mundo em 2006, segundo a FAO. Um aumento de 54 milhões de famintos, em relação a 1996. Esse aumento só não foi maior graças ao desempenho da China, o país apontado por alguns especialistas, céticos quanto à sua capacidade de produzir a própria comida, como o grande perigo para a alimentação mundial. Pois foi a China, com a redução de 250 milhões para 26 milhões de “necessitados”, na década de 80, quem produziu o maior avanço mundial no combate à fome.
Dois outros aspectos interessantes, na comparação entre EUA, China e Brasil, é que os dois primeiros realizaram Reforma Agrária de verdade, não o arremedo que se vê em nosso país, e possuem uma infraestrutura de Logística muito superior à brasileira, praticamente toda ela com ferrovias e hidrovias.
Milton Pomar é profissional de marketing e geógrafo. Atualmente está morando na China, por razões profissionais.
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