Alguns eventos, a exemplo da transferência do poder em Cuba, funcionam como um papel de tornassol ideológico: têm o dom de revelar as simpatias políticas da pessoa que os interpreta. Os que vêem Fidel e seus asseclas apenas como um bando de assassinos e administradores incompetentes são inequivocamente de direita. Já os que justificam o regime cubano ou pelo menos reconhecem-lhe méritos podem ser classificados como de esquerda.
Refiro-me aqui a nosso primeiro impulso classificatório. Após uma análise mais detida, é preciso muita ideologia seja para deixar de identificar o castrismo como uma ditadura escancarada, seja para não surpreender-se com o fato de que um país de renda quase africana tenha conseguido obter indicadores de Primeiro Mundo em saúde e educação. (Parto aqui do pressuposto de que os números oficiais são verdadeiros; e há indícios de que sejam).
A questão que fica, como há pouco propôs meu amigo Nelson Ascher em sua coluna lunebdomadária na Ilustrada, é: ainda faz sentido falar em direita e esquerda? A dicotomia serve par algo além de mostrar como nos posicionamos em relação a Cuba ou, ainda mais remotamente, em relação à revolução francesa do século 18, que foi quando esses conceitos surgiram?
Receio que a pergunta esteja mal colocada. Não se trata de fazer ou não sentido, de ser útil ou inútil. O ponto central, desconfio, é que existem determinados assuntos diante dos quais é praticamente impossível não ter posição. Refiro-me a temas como aborto, pena de morte, transgênicos, direitos dos animais, mudança climática e até mesmo a natureza do regime cubano. E a maneira como nos situamos em relação a um elenco mais ou menos fixo deles faz com que sejamos classificados (e até autoclassificados) como "de direita" ou "de esquerda".
Tomemos alguns casos concretos. São bandeiras caras à esquerda a liberação do aborto e do consumo de drogas e a condenação à pena de morte e ao porte de armas. Já a direita sustenta exatamente o contrário. São "clusters" difíceis de conciliar com os ditames da razão. Se é o princípio da sacralidade da vida que prepondera, deveríamos ser contra os quatro pontos. Já uma defesa intransigente das liberdades recomendaria a aprovação de todos.
De modo análogo, é difícil sustentar que animais são titulares de direitos (outra tese esquerdista), mas que seres humanos podem ser privados deles em determinadas condições, como uma revolução proletária.
Igualmente ilógico é impor a Cuba um embargo econômico por conta de violações aos direitos humanos e seguir negociando normalmente com regimes tão ou mais sanguinários, como a Arábia Saudita.
Minha tese é que a dicotomia esquerda-direita tem menos a ver com racionalizações sobre a realidade do que com um sistema de juízos morais sobre as coisas.
Na semana passada citei muito "en passant" o trabalho do psicólogo Jonathan Haidt, que propõe a existência de cinco núcleos de sentimentos morais: agressão, justiça (ou equanimidade), comunidade (ou lealdade ao grupo), autoridade e pureza. Eles constituiriam uma espécie de tabela periódica do instinto moral. Baseado num amplo banco de entrevistas pela internet, Haidt concluiu que os liberais norte-americanos (o que chamaríamos de esquerda por aqui) tendem a valorizar mais conceitos como não agredir o próximo e promover a justiça, praticamente desprezando os ideais de lealdade ao grupo, autoridade e pureza. Já o que se convencionou chamar de conservadores daria um peso mais ou menos igual a cada um dos cinco elementos.
Já resvalando no terreno da caricatura, poderíamos dizer que o liberal é um sujeito tarado por criar cotas raciais e que se preocupa mais com o futuro do bandido que acabou de assaltar e estuprar sua filha do que com ela própria. Já o conservador seria um militarista empedernido que acha que pode pegar Aids (uma justa punição divina) apenas cumprimentando um homossexual.
Cuidado, não estou aqui propondo nenhum tipo de classificação pronta e acabada. Vamos não apenas encontrar esquerdistas contrários ao aborto e direitistas favoráveis à liberação das drogas como também combinações incomuns dessas categorias. Os conceitos de esquerda e direita, embora pareçam seguir um padrão pelo menos epidemiológico, são bastante maleáveis e mudam de tempos em tempos, muitas vezes ao sabor de modismos. Para dar uma idéia das reviravoltas possíveis, basta lembrar que, do final dos anos 40 ao início dos 50, a esquerda apoiava quase incondicionalmente o Estado de Israel.
De minha parte, como já fiz numa coluna antiga, gosto de levar a distinção esquerda-direita para o plano filosófico. Acho que ela se torna mais produtiva --e menos confusa-- se a fixarmos num tópico específico e relevante, como a natureza humana.
Para o direitista clássico, a natureza humana é acima de tudo incorrigível. O homem seria essencial e imutavelmente mau. Tudo o que se pode fazer para permitir a vida em sociedade é refrear, se necessário pela força, seus impulsos egoístas. Daí a necessidade de leis rígidas e o apelo a uma moral severa, de preferência inspirada por uma força superior, como Deus. A economia nada mais é do que a tradução, em termos monetários, dos apetites humanos. Tudo o que tenda a alterar as inclinações naturais das pessoas está fadado ao fracasso.
Já para a esquerda, a natureza humana, se existe, seria pelo menos bastante maleável. O homem, muito mais do que o produto de genes, é reflexo de seu ambiente, que pode ser alterado segundo projetos racionais. Obras de engenharia social e intervenções do Estado na economia são possíveis e desejáveis, de modo a tornar o mundo um lugar melhor, e as pessoas, mais felizes.
Pessoalmente, não "compro" nenhum dos dois pacotes fechados. Não há nenhuma dúvida de que o ser humano pode ser mau. Freqüentemente o é, como o demonstram as barbaridades singulares ou coletivas cometidas ao longo dos tempos. Também parece claro que os experimentos históricos que buscaram forjar um "novo homem" fracassaram redondamente. Pior, acabaram produzindo horrores bem conhecidos.
Acredito, como os antigos, que a virtude está no meio. A menos que acreditemos que determinados povos já vêm com o gene da violência engatilhado, é forçoso reconhecer que o ambiente a que somos submetidos é decisivo para nosso comportamento social. Ora, se até os suecos, povo que descende dos temíveis vikings, cuja proverbial violência bastava para pôr cidades inteiras a correr durante a Idade Média, conseguiram encontrar uma forma de organização social que os levou a cultivar a paz e a tolerância e a conquistar as primeiras posições em todos os rankings de qualidade de vida, nem tudo está perdido. É perfeitamente possível que populações hoje imersas na barbárie encontrem um caminho semelhante. A esquerda, definida como a crença na possibilidade de melhorar a natureza humana (ainda que só um bocadinho), não morreu.
O segredo, desconfio, é ser relativamente modesto nas metas e objetivos. Não conseguiremos reformar radicalmente o homem, mas poderemos desenvolver formas de organização que não estimulem o que temos de pior. Só isso já seria uma bela de uma vitória. Não chega a ser o paraíso na Terra prometido por alguns profetas da esquerda, mas pelo menos nos afasta um pouco do inferno que tem sido a existência para grandes parcelas da humanidade.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
Refiro-me aqui a nosso primeiro impulso classificatório. Após uma análise mais detida, é preciso muita ideologia seja para deixar de identificar o castrismo como uma ditadura escancarada, seja para não surpreender-se com o fato de que um país de renda quase africana tenha conseguido obter indicadores de Primeiro Mundo em saúde e educação. (Parto aqui do pressuposto de que os números oficiais são verdadeiros; e há indícios de que sejam).
A questão que fica, como há pouco propôs meu amigo Nelson Ascher em sua coluna lunebdomadária na Ilustrada, é: ainda faz sentido falar em direita e esquerda? A dicotomia serve par algo além de mostrar como nos posicionamos em relação a Cuba ou, ainda mais remotamente, em relação à revolução francesa do século 18, que foi quando esses conceitos surgiram?
Receio que a pergunta esteja mal colocada. Não se trata de fazer ou não sentido, de ser útil ou inútil. O ponto central, desconfio, é que existem determinados assuntos diante dos quais é praticamente impossível não ter posição. Refiro-me a temas como aborto, pena de morte, transgênicos, direitos dos animais, mudança climática e até mesmo a natureza do regime cubano. E a maneira como nos situamos em relação a um elenco mais ou menos fixo deles faz com que sejamos classificados (e até autoclassificados) como "de direita" ou "de esquerda".
Tomemos alguns casos concretos. São bandeiras caras à esquerda a liberação do aborto e do consumo de drogas e a condenação à pena de morte e ao porte de armas. Já a direita sustenta exatamente o contrário. São "clusters" difíceis de conciliar com os ditames da razão. Se é o princípio da sacralidade da vida que prepondera, deveríamos ser contra os quatro pontos. Já uma defesa intransigente das liberdades recomendaria a aprovação de todos.
De modo análogo, é difícil sustentar que animais são titulares de direitos (outra tese esquerdista), mas que seres humanos podem ser privados deles em determinadas condições, como uma revolução proletária.
Igualmente ilógico é impor a Cuba um embargo econômico por conta de violações aos direitos humanos e seguir negociando normalmente com regimes tão ou mais sanguinários, como a Arábia Saudita.
Minha tese é que a dicotomia esquerda-direita tem menos a ver com racionalizações sobre a realidade do que com um sistema de juízos morais sobre as coisas.
Na semana passada citei muito "en passant" o trabalho do psicólogo Jonathan Haidt, que propõe a existência de cinco núcleos de sentimentos morais: agressão, justiça (ou equanimidade), comunidade (ou lealdade ao grupo), autoridade e pureza. Eles constituiriam uma espécie de tabela periódica do instinto moral. Baseado num amplo banco de entrevistas pela internet, Haidt concluiu que os liberais norte-americanos (o que chamaríamos de esquerda por aqui) tendem a valorizar mais conceitos como não agredir o próximo e promover a justiça, praticamente desprezando os ideais de lealdade ao grupo, autoridade e pureza. Já o que se convencionou chamar de conservadores daria um peso mais ou menos igual a cada um dos cinco elementos.
Já resvalando no terreno da caricatura, poderíamos dizer que o liberal é um sujeito tarado por criar cotas raciais e que se preocupa mais com o futuro do bandido que acabou de assaltar e estuprar sua filha do que com ela própria. Já o conservador seria um militarista empedernido que acha que pode pegar Aids (uma justa punição divina) apenas cumprimentando um homossexual.
Cuidado, não estou aqui propondo nenhum tipo de classificação pronta e acabada. Vamos não apenas encontrar esquerdistas contrários ao aborto e direitistas favoráveis à liberação das drogas como também combinações incomuns dessas categorias. Os conceitos de esquerda e direita, embora pareçam seguir um padrão pelo menos epidemiológico, são bastante maleáveis e mudam de tempos em tempos, muitas vezes ao sabor de modismos. Para dar uma idéia das reviravoltas possíveis, basta lembrar que, do final dos anos 40 ao início dos 50, a esquerda apoiava quase incondicionalmente o Estado de Israel.
De minha parte, como já fiz numa coluna antiga, gosto de levar a distinção esquerda-direita para o plano filosófico. Acho que ela se torna mais produtiva --e menos confusa-- se a fixarmos num tópico específico e relevante, como a natureza humana.
Para o direitista clássico, a natureza humana é acima de tudo incorrigível. O homem seria essencial e imutavelmente mau. Tudo o que se pode fazer para permitir a vida em sociedade é refrear, se necessário pela força, seus impulsos egoístas. Daí a necessidade de leis rígidas e o apelo a uma moral severa, de preferência inspirada por uma força superior, como Deus. A economia nada mais é do que a tradução, em termos monetários, dos apetites humanos. Tudo o que tenda a alterar as inclinações naturais das pessoas está fadado ao fracasso.
Já para a esquerda, a natureza humana, se existe, seria pelo menos bastante maleável. O homem, muito mais do que o produto de genes, é reflexo de seu ambiente, que pode ser alterado segundo projetos racionais. Obras de engenharia social e intervenções do Estado na economia são possíveis e desejáveis, de modo a tornar o mundo um lugar melhor, e as pessoas, mais felizes.
Pessoalmente, não "compro" nenhum dos dois pacotes fechados. Não há nenhuma dúvida de que o ser humano pode ser mau. Freqüentemente o é, como o demonstram as barbaridades singulares ou coletivas cometidas ao longo dos tempos. Também parece claro que os experimentos históricos que buscaram forjar um "novo homem" fracassaram redondamente. Pior, acabaram produzindo horrores bem conhecidos.
Acredito, como os antigos, que a virtude está no meio. A menos que acreditemos que determinados povos já vêm com o gene da violência engatilhado, é forçoso reconhecer que o ambiente a que somos submetidos é decisivo para nosso comportamento social. Ora, se até os suecos, povo que descende dos temíveis vikings, cuja proverbial violência bastava para pôr cidades inteiras a correr durante a Idade Média, conseguiram encontrar uma forma de organização social que os levou a cultivar a paz e a tolerância e a conquistar as primeiras posições em todos os rankings de qualidade de vida, nem tudo está perdido. É perfeitamente possível que populações hoje imersas na barbárie encontrem um caminho semelhante. A esquerda, definida como a crença na possibilidade de melhorar a natureza humana (ainda que só um bocadinho), não morreu.
O segredo, desconfio, é ser relativamente modesto nas metas e objetivos. Não conseguiremos reformar radicalmente o homem, mas poderemos desenvolver formas de organização que não estimulem o que temos de pior. Só isso já seria uma bela de uma vitória. Não chega a ser o paraíso na Terra prometido por alguns profetas da esquerda, mas pelo menos nos afasta um pouco do inferno que tem sido a existência para grandes parcelas da humanidade.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
E-mail: helio@folhasp.com.br
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