O Silêncio do Papa Pacelli
A adesão do clero católico ao nazi-fascismo não limitou-se ao Cardeal Pacelli (Berlim, 1934)
"Devemos nos indagar se a perseguição do nazismo contra os judeus não teria sido facilitada pelos preconceitos antijudaicos existentes em alguns corações e mentes cristãos". - Cardeal Edward Cassidy - Nós lembramos - uma reflexão sobre o Shoah, 1998
Chamavam-no de il Tedesco, "o alemão". E não sem razão. Ninguém nas altas esferas do Vaticano superava a germanofilia do Cardeal Eugênio Pacelli. A Alemanha era a sua segunda pátria, o alemão seu outro idioma, e os Hohenzoller, a dinastia lá reinante, os soberanos do seu coração. Ele estava em Munique em 1917 quando nomearam-no arcebispo e núncio, autorizando-o a negociar uma concordata com os bávaros. A seguir, de 1925 a 1929, fixou-se em Berlim, quando então o Papa Pio XI chamou-o à Roma nomeando-o secretário de estado. Anos perigosos e difíceis aqueles, quando a Igreja Católica, indisposta com o liberalismo e inimiga de morte do comunismo, decidiu-se associar-se ao fascismo.
Aproximando-se do fascismo
Pelo Tratado de Latrão, de 1929, a roupeta preta confraternizou-se com a camisa negra. Em troca de 750 milhões de liras - o "empréstimo da conciliação"-, o Papado reconheceu o regime de Mussolini. A mão que abençoava os cristãos apertou a mão de quem sufocava as liberdades. A própria Igreja Católica apressou-se em suprimir da política italiana o Partito Popolare, e todas as demais organizações laicas católicas que pudessem atrapalhar ou impedir a implantação do regime de partido único na Itália. Quando Hitler chegou ao poder em 1933, foi o próprio Pacelli quem supervisionou os termos da concordata, assinada em 20 de julho de 1933, redigidos pelo Monsenhor Gröber, o "bispo nazista"(der braune Bischof), de Fribourg, que, a pretexto de proteger os católicos, tirou o Führer dos nazistas do isolamento diplomático em que se encontrava nos primeiros momentos da sua ascensão.
Pontos em comum
Para Ludwig Kaas, um dos representantes do centrista Partido Católico (Zentrum), que tornou-se íntimo colaborador de Pacelli nos anos vinte, nada de ominoso havia nesta aproximação. Tempos antes ele considerara o Tratado de Latrão, assinado por Benito Mussolini e o cardeal Pietro Gasparri, como o acordo ideal entre o moderno estado totalitário com a igreja autoritária. Entre outras alegações, disse que ninguém melhor que a Igreja Católica para entender a lógica da concentração de poder. Afinal o chamado fúhrer prinzip, a primazia da liderança adotada pelos juristas nazistas, nada mais era do que a versão secular, germanizada, do primado papal, afirmado no Código da Lei Canônica. Os ditadores fascistas consideravam-se todos eles infalíveis, exatamente como no Syllabus do Papa Pio IX, de dezembro 1864, documento contendo 80 proposições que, além de rejeitar a modernidade, conferia ao papa a infabilidade.
O discreto arrependimento
Se Pio XI arrependeu-se do seu acordo com Hitler, publicando em 1937 a encíclica Mit Brennender Sorge ("É com viva inquietação"), onde, em termos moderados e cautelosos, denunciou o paganismo e a absurda idéia de um "Deus Nacional" alemão, cultivada pelos nacionais-socialistas, nenhum sinal de contrição partiu de seu sucessor Eugênio Pacelli, o Papa Pio XII. Nem a crescente espiral de violência generalizada que a política de extermínio hitlerista desencadeou, a partir de 1939, fez com que se ouvisse a voz denunciante do Santo Padre. Com exceção às anódinas preleções pela paz em seus comunicados natalinos, onde jamais nomeou os agressores, o silêncio de Pacelli foi um daqueles mutismos barulhentos, clamorosos. Nunca tantos inocentes haviam sido exterminados em tal escala, pelo menos quase em frente ao Sumo Pontífice. Justo neste momento, a Igreja Católica sempre tão mobilizada contra a infringência de mínimos pecado, deixou-se paralisar por uma embaraçosa catatonia.
A Solução Final e o Papa
O papa Pio XII, que dispunha da única rádio independente em toda a Europa ocupada, jamais alçou-se em fazer sequer uma denúncia pública das atrocidades que os nazistas estavam cometendo. Na reunião do Lago de Wansee, ocorrida na periferia de Berlim em janeiro de 1942, como se sabe, os altos hierarcas do partido e do governo comprometeram-se a conjugar esforços para executar a Endlösung, a Solução Final, gazeando toda a população judaica européia (calculada em 11 milhões). O máximo que obteve-se de Sua Santidade foi uma alocução, no Natal de 1942, na qual, sem especificar quem eram as vítimas, apontou "as centenas e os milhares que, sem falta ou culpa alguma, talvez apenas em razão da sua nacionalidade ou raça, foram marcados pela morte e pela progressiva extinção."
O estranho argumento dos defensores do mutismo pacellista era de que se o Sumo Pontífice delatasse os crimes, os nazistas, em represália, poderiam aumentar o número dos imolados, tornado o sofrimento ainda maior! Alegam ainda, como fez o historiador Christopher Browning, que é uma ingenuidade pensar-se que o papa pudesse, em qualquer momento, deter o genocídio que, em sua maior parte, deu-se bem longe da Itália, vitimando ciganos, judeus poloneses e russos, e prisioneiros soviéticos.
Raciocínio que nos leva a concluir que o sentimento de solidariedade cristã e indignação humana contra os assassinatos em massa está limitado pela geografia! Ninguém, é bom lembrar, considera a Cúria Papal um exército, nem vê o papa como um general a quem se recorre para complicadas operações de salvamento e resgate, mas sim acredita ser a Igreja Católica uma força ética e uma reserva moral do Ocidente, de quem espera-se que aja em favor das vítimas justo nesses momentos terríveis.
Os motivos do silêncio
Qual então a razão do seu silêncio? Segundo a historiadora Annie Lacroix-Riz (Le Vatican l 'Europe et le Reich, Paris, 1996), sabe-se que em privado, com representantes alemães, Pacelli externava os mesmos sentimentos antijudaicos deles. Mas presumo ser outra a causa do seu silêncio. Essa, de ordem subjetiva-objetiva. O papa, sendo um implacável anticomunista, um aristocrata de família toscana, nascido em Roma em 1876, tendo por um irmão um conde, encarnava os valores últimos de uma nobreza européia agonizante. Viu no nazismo, como tantos outros da sua casta, a oportunidade de liquidar com os bolcheviques ateus (versão contemporânea dos jacobinos, que tantos padecimentos fizeram sofrer a nobreza e a igreja nos tempos modernos), mesmo que o preço a pagar fosse moralmente monstruoso. Somente eles, os super-homens de Hitler e de Mussolini, com sua política de total impiedade, colocando-se bem "acima do bem e do mal", poderiam abatê-los. A pavorosa morte dos judeus era o tributo moral que exigiam dele. A política do Vaticano de sustentação incondicional do Reich, "excluía emocionar-se por suas vítimas".
O neutralismo de Pacelli
Coerente, refugiando-se num suspeitíssimo neutralismo, o Papa Pio XII negou-se a condenar as atrocidades praticadas pelos nazistas contra judeus proposta pelos Aliados, alegando que ela não incluía um repúdio às perseguições religiosas movidas por Stalin contra os cristãos na União Soviética. Uns tempos antes, à época do Massacre das Fossas Ardeatinas em Roma, onde 335 reféns civis italianos, 75 deles judeus, foram executados pelos SS do major Erich Priebke em Roma, como represália a um atentado dos partisans, ele sobre nada se pronunciou. O mesmo se repetiu quando o Gueto de Roma foi esvaziado por uma operação policial das Waffen SS em outubro de 1943, ordenada por Eichmann. Sacaram os judeus, por assim dizer, da frente da Igreja de São Pedro. A reação da Santa Sé não passou de inócuos telegramas e telefonemas para o embaixador alemão Weiszäcker. Disso resultou que 1060 judeus foram embarcados na estação Tiburtina diretamente para Auschwitz, justo num domingo, 18 de outubro de 1943.
Negligências que serviram bem mais tarde como tema da peça-denúncia "O Vigário"(Der Stellvertreter), escrita em 1963 pelo alemão Rolf Hochhuth, o primeiro clamor partindo do próprio rebanho católico, contra a sistemática omissão do papa. Não hesitou, porém, Pacelli, ao término da guerra, em mobilizar os quadros da Igreja Católica espalhados pela Europa. para facilitar a fuga de milhares de criminosos de guerra e colaboracionistas dos nazi-fascistas, dando-lhes passes, salvos-condutos, passaportes, e até pequenas somas de dinheiro, para que eles alcançassem as terras seguras da Espanha, do Paraguai, ou da Argentina de Perón.
A história e o Papa
Num esforço, ainda que indireto, em desvendar a política de omissão de Pio XII, o monge Georges Passelecq, e o dr.Bernard Suchecky, publicaram recentemente "A Encíclica escondida de Pio XI" (L 'encyclique cachée de Pie XI - une occasion manquée de l'Église face à l'antisémitisme, Ed. La Découverte. Paris, 1995), que expõe a existência da Humani Generis Unitas, uma encíclica mandada redigir por Pio XI a dois jesuítas (o alemão Gustav Gundlach e o americano John LaFarge), em 1938. O documento, que somente foi descoberta em 1972, era uma aberta denúncia do culto ao estado totalitário e do racismo anti-semita delirante dos nazistas, muito mais vigorosa que a encíclica do ano anterior, a de 1937. Eugênio Pacelli, porém, a engavetou.
Mais recentemente, o mundo católico foi abalado por um outro livro, o do inglês John Cornwell (Hitler's Pope: the secret history of Pius XII, N.Iorque, 1999), que, preocupado em aliviar as crescentes suspeitas que eram lançadas de todos os lados sobre Pacelli, resolveu ir consultar diretamente nas fontes documentais dos arquivos do Vaticano. O resultado estarreceu-o. A ele e aos simpatizantes da causa Pacelli. Cornwell, um homem do Colégio de Jesus de Cambridge, revelou que o conúbio do papa com os nazi-fascistas foi muito mais além do que se imaginava. Para ele o que mais ligou o papa aos nazistas era o antijudaísmo de ambos.
Um arrependimento formal
A Comissão do Vaticano para Relações Religiosas com os Judeus, por sua vez, instituída pelo papa João Paulo II, finalmente chegou a uma conclusão e a um documento. Tocando no peito e com o olhar constrangido, o Cardeal australiano Edward Cassidy pediu perdão à comunidade judaica pela inexplicável omissão dos católicos. Observe-se porém que não há menção especifica de responsabilidade. O Vaticano resolveu assumir um arrependimento coletivo, da comunidade católica no seu todo, da Igreja e dos fiéis, sem mencionar o peso de Pacelli na adoção daquela política. Para sentir-se como esse tema é embaraçoso até hoje para a Igreja Católica, notou-se que o gesto oficial, público, deu-se por meio de um hierarca menor da Igreja, e não de uma declaração direta do Papa, como por exemplo, quando ele pessoalmente desculpou-se com pela condenação de Galileu, ocorrida no século 17. É que, de certa forma, todos em Roma ainda sentem e sofrem os embaraços do inexplicável silêncio do Papa Pacelli.
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