sexta-feira, 13 de julho de 2012

Fases e faces do Getulismo e do Lulismo


As maiores figuras políticas nacionais foram objeto de grande controvérsia em nosso país, o que parece mais uma confirmação da cultura política ambivalente do Brasil. Somos fadados à ausência de unanimidade política, o que em termos rodriguianos seria sinal de inteligência.

O fato é que Getúlio Vargas nunca se livrou deste vaticínio.

Lembro-me de um debate promovido pela Folha de S.Paulo em que se discutia a herança de Vargas. Os expositores afirmavam que os empresários odiavam esta herança, mas sabiam que sem ela não teriam sido nada do que haviam se tornado.

O mesmo debate marcado pela paixão envolve discussões acadêmicas sobre o getulismo. É notório o debate acalorado travado entre historiadores uspianos que tiveram ligações com o PCB, como Boris Fausto, e aqueles que gravitaram ao redor das correntes trotskistas, como Edgar De Decca, da UNICAMP. Para Boris Fausto, Getúlio teria inaugurado a industrialização e urbanização acelerada do Brasil, a partir de um movimento político que, para este autor, continha os elementos de uma revolução. Esta tese foi duramente questionada nos anos 80 pelos historiadores que tinham na UNICAMP um bunker intelectual importante. Várias teses defendidas nesta universidade revelaram a permanência do poder oligárquico durante as gestões getulistas, consolidando uma articulação de interesses econômicos que teria nascido da transferência do acúmulo comercial da venda do café para a industrialização nascente da região sudeste do país. Em 1985, o INCRA, sob a direção de José Gomes da Silva (pai do ex-ministro do Fome Zero), revelou o cadastro de imóveis rurais e confirmou os interesses diretos de grandes empresas, incluindo vários bancos, na aquisição de terras. A terra, em tempos de inflação galopante, havia se transformado em ativo financeiro. A aliança entre empresários da indústria e da agricultura (que mais tarde daria lugar à agroindústria) revelava-se como traço persistente de nossa economia política, para além da Era Vargas.

As divergências teóricas fomentam o “enigma getulismo” porque desconhecem que Getúlio Vargas traduzia os desafios e iniciativas econômicas a partir da sua peculiar leitura política. De uma habilidosa trama getulista, que oscilou entre o apoio aos países do “Eixo” e a aliança com os EUA durante a II Guerra, nasceu grande parte da base da indústria siderúrgica nacional.

Por aí podemos compreender as diversas fases do getulismo, incluindo as tentativas de seus herdeiros diretos. O getulismo se refez, ao sabor dos ventos políticos. Mas havia um núcleo conceitual em todas suas fases: a relação direta com as massas, o papel quase onipresente do Estado Nacional (quase como um ator político específico, próximo da organização e unidade partidária), o desenvolvimentismo, o amparo social sob sua tutela explícita. Neste núcleo conceitual, a política destaca-se e sobrepuja a dimensão econômica. Daí associarmos esta herança à habilidade, força, astúcia e dissimulação política. E um forte traço autoritário, porque apoiado na auto-promoção, como demiurgo do desenvolvimento nacional.

De Getúlio aos dias de hoje, os governos federais que se sucederam caminharam na direção contrária ao do getulismo: privilegiaram a leitura econômica como filtro para as ações políticas. Há, neste caso, uma tênue teia que relaciona os governos militares aos governos Collor e FHC: a primazia do economicismo na ação estatal. Obviamente que ocorreram os espetáculos políticos, em especial, no governo Collor. É evidente que se diferenciaram pela convicção ideológica e pelo respeito às regras democráticas. Mas sua identidade sempre foi a lógica de mercado, a nomenclatura econômica e certa desestruturação do mundo político. Nessas gestões, disseminou-se uma descaracterização da prática política como legítima e profissional. Pelo contrário, as iniciativas políticas apareciam como um mal necessário ou tolerado. Os políticos profissionais pareciam menos importantes que a tecnocracia e as penadas oriundas do Estado. A justificativa básica da forte presença estatal teria sido a facilitação ou orientação do desenvolvimento econômico. Ao mundo do mercado não haveria nada a recriminar. A dimensão econômica, pelo contrário, só estaria arriscada a se distanciar de sua pureza original se contaminada pela ação política. Este não teria sido o texto subliminar (na sua versão oficial) do fim do milagre brasileiro, da corrosão das reformas de Collor e da crise final do governo FHC?

Nestes termos, o lulismo parece se conformar como uma transição entre os dois mundos e ideologias de Estado: do politicismo getulista ao economicismo de mercado. Alegoricamente, esta transição parece ser a síntese entre as ações e ideologias de Palocci e José Dirceu. Ambos parecem onipresentes no governo e nas manchetes de jornais. Ambos parecem disputar eternamente entre si. Entretanto, o lulismo é justamente a síntese das duas correntes do petismo governista. E parece que o “enigma lulismo” reside no ajuste irregular entre suas duas faces.

Comecemos pela face economicista, materializada no Ministério da Fazenda. Este Ministério  possui um perfil bem definido. Os dois âncoras do Ministério, Marcos Lisboa (Secretário de Política Econômica) e Joaquim Levy (Secretário do Tesouro Nacional), apóiam-se num documento divulgado na parte final da campanha eleitoral de 2002, intitulado “Agenda Perdida”. O documento, onde figurava como colaboradores parte significativa de economistas da PUC-RJ que havia contribuído com o governo FHC, parecia atualizar a agenda econômica do então governo federal. Nos dois anos seguintes, esta agenda foi detalhada. Foi o que ocorreu recentemente, quando do anúncio da “Agenda de Crescimento”, elaborada pelo Ministério da Fazenda. No seu capítulo “objetivos da política econômica de 2003”, são destacados os seis itens que caracterizaram a ação governamental no período:

reverter a aceleração inflacionária;

reduzir as taxas reais de juros de mercado;

assegurar a solvência externa;

alongar a dívida pública;

garantir a sustentabilidade das contas públicas;

assentar as bases do crescimento em 2004-2007.

A política social do governo, que parece ausente nessas diretrizes, chegou a ser citada em outros documentos do Ministério. Mas é perceptível a ausência de identidade com o discurso desenvolvimentista, restringindo-se à tímida tentativa de cimentar as bases para o crescimento nos próximos quatro anos. Nas políticas desenvolvimentistas, iniciadas no período Vargas e desdobradas até os anos 70, o Estado possuía uma agenda detalhada. Neste documento do Ministério da Fazenda, a ausência da agenda é substituída pela construção das bases para o crescimento.

Voltemos ao tema das políticas sociais. É aqui que o viés economicista revela-se mais nitidamente, como sugere Laura Soares[1]. A proposta apresentada pelo Ministério da Fazenda sustenta a necessidade da “focalização” das políticas sociais. Dois economistas petistas refutaram publicamente esta tese: Maria Conceição Tavares e Márcio Pochmann. Este último, Secretário Municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da cidade de São Paulo, denominou a focalização de “inversão dos termos do debate”, porque atribui aos gastos sociais a responsabilidade única pela redução da desigualdade social brasileira. Para Pochmann, ao contrário, as causas da desigualdade residem na financeirização da economia e à estrutura tributária regressiva[2]. Outros economistas se seguiram criticando a focalização por excluir famílias que estariam acima da linha de pobreza, mas que vivem situação de precariedade e instabilidade, em especial, em países com frágil estrutura de mercado de trabalho.

No outro pólo do lulismo estaria a ação política da Casa Civil. Ocorre que este pólo não se apresenta publicamente com tanta nitidez como ocorre com os formuladores da política econômica. Trata-se de um estilo quase pessoal. O trabalho de articulação política ocorre preferencialmente nos bastidores da arena institucional. Raramente envolve como interlocutores agentes políticos de movimentos sociais ou organizações de representação civil. Os caciques partidários (de governadores à deputados e senadores) são os interlocutores privilegiados do diálogo governamental. Assim, as tramas políticas limitam-se à Corte, o que não deixa de ser surpreendente para este governo. Esperava-se a ampliação, e até inovação, de espaços e interlocutores políticos do governo federal. Lula nasceu para a política a partir desta imagem: representava os não institucionalizados na política nacional, valorizando os espaços até então privados (do chão da fábrica às ruas dos bairros de periferia) como locais da prática política civil. Parte da explicação para este aparente paradoxo encontra-se no estilo do Chefe da Casa Civil. José Dirceu manteve, ao longo de sua trajetória petista, um estilo que sempre privilegiou as jogadas intestinas da burocracia partidária. Não se fez como liderança de órgãos de representação de massa ou de movimentos sociais. Foi artífice da construção de uma poderosa máquina partidária, consolidando um corpo administrativo ágil e fiel. Não por acaso, na medida em que este corpo administrativo cresceu e se fortaleceu como instância de deliberação, foram minguando os originais instrumentos de tomada de decisão interna, que tinham na militância organizada em núcleos e diretórios de base a novidade mais expressiva do Partido dos Trabalhadores.  As amplas alianças que foram conquistadas e construídas por José Dirceu nos últimos anos – e que levaram Lula ao poder – concluem seu estilo e projeto político.

Para os que conhecem a tradição da esquerda brasileira, esta performance não chega a ser uma novidade. Pelo contrário, faz parte da tradição marxista: burocracia partidária forte e unificada, ao lado de amplas alianças entre classes que garantissem avanços políticos gradativos.

A somatória desses dois lados da mesma moeda, embora inaugure uma possível transição entre o getulismo e o economicismo dos últimos anos, confunde quase todos analistas. Em certa medida, as duas posições parecem desencontrar-se freqüentemente. Um pólo fortalece as iniciativas e agentes de mercado, instrumentalizando a política, de onde emerge o desenho do Estado-facilitador. Outro pólo instrumentaliza os agentes de mercado, fortalece a capacidade aglutinadora e dirigente do Estado e procura definir avanços gradativos das forças de esquerda institucionalizadas. Os dois pólos parecem reduzir ao máximo o discurso utópico. São extremamente realistas, portanto.

Daí sentirmos a sensação do lulismo ser mais fluido que o getulismo. O lulismo é, ainda, um esboço, pouco definido. Não gera paixões arrebatadoras porque é difuso, insinua, mas se contradiz no cotidiano de sua gestão. Por ser ainda um mosaico de intenções e estilos, agrada e desagrada na mesma intensidade e se desgasta na falta de nitidez.

O getulismo, ao contrário, gerou paixões porque a sua face mais nítida era a política, a capacidade dirigente do governo federal. Era ele que escolhia o momento de dialogar, assim como decidia o interlocutor do momento. Era inovador e se arriscava continuamente. Essas características, somadas às práticas autoritárias, alimentavam as paixões desenfreadas. Seus seguidores sofreram a mesma sorte.

Meio século depois, a política brasileira necessita ser reinventada. Perdeu seu brilho nas últimas décadas. E, no momento, ainda parece sentir-se presa à uma cultura tradicionalmente ambivalente.


Por RUDÁ RICCI *
Sociólogo, Professor da PUC-Minas e UNINCOR. Coordenador do Instituto Cultiva

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