quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Democracia, "nossas" ditaduras e as "deles"

Nenhuma bandeira dos Estados Unidos ou de Israel foi queimada nas revoltas primeiro da Tunísia e agora do Egito.

É a primeira vez que acontece no mundo árabe, o que torna o fato o segundo mais importante da revolução em curso, depois do levante propriamente dito.

Com a ressalva de que ainda vai passar algum tempo até que se possa fazer uma análise mais aprofundada de uma situação que surpreendeu o mundo inteiro, dá a sensação de que a rua árabe decretou que a situação que a frustra e irrita é feita em casa.

Não é, portanto, uma conspiração do Ocidente contra o mundo árabe, um vitimismo muito presente em todo o Oriente Médio, desde a queda do Império Otomano, faz praticamente 90 anos.

É evidente que o vitimismo não deixa de ter alguma razão de ser, mas é mais razoável aceitar que os Mubaraks que infelicitam ou infelicitaram o mundo árabe/muçulmano são mais responsáveis que os estrangeiros.

É sintomático que, nas manifestações do Egito ou da Tunísia, as palavras de ordem mais usadas, fora o óbvio "fora Mubarak" ou "fora Ben Ali", tenham sido, digamos, ocidentais: democracia, liberdade e por aí vai.

Nem se ouviu "Alá é grande", o que desmonta a dicotomia que o Ocidente construiu para sua própria comodidade: a escolha seria entre as "nossas" ditaduras ou as ditaduras "deles" (dos movimentos islamistas).

Insinua-se uma terceira via seria precisamente a democracia, por mais que fuja à tradição do mundo árabe/muçulmano.

É razoável imaginar que, mais do que as redes sociais, a revolta da rua tenha tido como fermento a rede Al Jazeera. Explico: as redes sociais servem de ligação para o sentimento íntimo das pessoas; já a rede de TV expõe às massas, com seu jornalismo do tipo ocidental, que há um outro mundo, mais rico em horizontes, do que o cotidiano cinzento da rua árabe, em especial de sua juventude.

Há um certo paralelo com o que aconteceu na antiga Alemanha Oriental, no fim dos anos 80: ninguém passava fome na então Alemanha Oriental, mas ver pela TV que, do outro lado, havia não só vitrinas mais esfuziantes mas também liberdade, levou a uma revolta que derrubou não só uma, duas ou uma dúzia de ditaduras, mas também a única alternativa que se havia levantado contra o capitalismo.

E não havia, à época, Twitter ou Facebook para explicar a mobilização.

Não quer dizer que, no futuro, os partidos islamistas não se imponham. Escreve, por exemplo, Akram Belkaid para "Le Quotidien d'Oran" (Argélia): "Os movimentos religiosos, mesmo enfraquecidos por longos anos de repressão, podem se organizar muito rapidamente e retomar a iniciativa. Já o campo democrático, ao contrário, é fragmentado, quando não é pura e simplesmente cliente do poder".

Basta comparar as poucas centenas de pessoas que receberam os líderes laicos tunisianos, no retorno, e as cinco mil que foram domingo ao aeroporto para saudar Rachid Ghanuchi, do partido islâmico En Nahda.

Cabe esperar que o Ocidente não force o banimento dos partidos islamistas, como aconteceu há 20 anos na Argélia. Resultou numa guerra civil e numa ditadura disfarçada que, agora, está sob cerco como todas as da região. Fechou-se o círculo que esgotou esse caminho cego.


Clóvis Rossi

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