Célio Borja - O Estado de S.Paulo
O momento vivido pelo País tem despertado questões e aflições. Vamos enunciar algumas delas e tentar esclarecer os horizontes.
"Muita gente acha que a democracia corre riscos quando a lei é menosprezada. Não se sabe se a legalidade que temos é firme o suficiente pra impedir retrocessos."
A legalidade é firme? Em 1946 pensávamos que a Constituição democrática que encerrou o ciclo da ditadura Vargas tinha o apoio irrestrito do povo brasileiro e que, por isso, duraria muito; mas a volta do antigo ditador ao poder quatro anos depois, e o aparelhamento do Estado por seus seguidores abalaram nossa confiança na permanência da ordem constitucional democrática.
A desestabilização das instituições não se deveu, então, à Constituição, mas aos que no governo e na oposição fraudaram a sua letra e o seu espírito, como sucederia também de 1961 a 1964. Não me animo a fazer prognósticos, ainda que acredite na possibilidade de se praticarem políticas constitucionalmente heterodoxas, como, aliás, pode ocorrer com quaisquer partidos ou pessoas que estejam no poder. Melhor será pensar o nosso presente e o nosso futuro em períodos longos como propuseram os grandes historiadores franceses da escola conhecida como Annales.
Sem nenhuma vulgaridade, o ciclo que vivemos no Brasil obedece ao imperativo de por comida no prato de todos os brasileiros e de levar aos menos afortunados educação, saúde, inserção social e participação política. Ainda uma vez, embora não queira ser pitonisa, parece-me que enquanto não se exaurir esse ciclo, a maioria dos cidadãos não atribuirá importância decisiva à boa governança, à probidade inatacável dos gestores do Estado, ao respeito que eles devem às limitações constitucionais e à ética política.
O ideal é que o progresso material e a evolução moral sigam pari passu. Isto me parece possível e percebo claramente que as pessoas e as comunidades urbanas beneficiadas por programas sociais efetivos e bem administrados despertam para outros tipos de exigência, como exação e probidade não só dos servidores do Estado como de seu próprio grupo.
"O presidencialismo imperial quebra o equilíbrio entre os poderes. A ponto de Lula ter dito à sua candidata, há algumas semanas: "Espero que o seu Congresso seja melhor que o meu."
O desejo de solução imediata e cabal dos problemas que afligem os mais necessitados se sobrepôs à legitimidade ética e à legalidade, representadas pela independência e equilíbrio dos poderes e a autocontenção dos que os exercem. Não são somente os pobres que assim procedem, mas também os que não o são. Quando o crime, organizado ou não, ameaça, pede-se ação drástica e muitas vezes injurídica, acreditando ser ela mais eficaz do que os procedimentos juridicamente legítimos.
Isto não é de hoje, é de sempre, pois os antigos já diziam salus populi suprema lex est (o bem-estar do povo é a lei suprema), para se eximirem do cumprimento da lei. Da mesma forma, quando os juízes exigem da polícia e do Ministério Público o respeito à Constituição e à lei que limitam o discricionarismo na persecução penal, e mandam o Judiciário garantir os direitos individuais de inocentes e infratores, a reação da opinião pública e da opinião publicada quantas vezes denigre o Judiciário tachando-o de frouxo e covarde. Se o presidente do Supremo Tribunal concede habeas corpus a um homem rico, logo é suspeitado de subalternidade. Por ser rico, ninguém tem cassado os seus direitos fundamentais; tão pouco por ser pobre.
"Os tribunais temem os riscos de enquadrar o presidente da República, que pouco se importa com os limites da lei."
Não creio que os tribunais tenham medo de enquadrar o presidente. Compete-lhes julgá-lo somente por crime comum, uma vez que os de responsabilidade são da alçada do Congresso. Em matéria eleitoral, temos visto soluções salomônicas que multam o presidente e sua candidata, assim como os opositores de um e de outra.
Talvez a Justiça Eleitoral se tenha dado conta dos seus excessos regulatórios que, restringindo os movimentos dos candidatos em dose cavalar, praticamente selam o resultado do pleito. Se o presidente, com seus altíssimos índices de popularidade, faz campanha desinibida por sua candidata, bafejada ainda pela cornucópia dos ricos, a igualdade visada pelo espartilho eleitoral é apenas uma balela.
Fica assim demonstrado que o que assegura a lisura do pleito e a paridade dos candidatos na largada e no desenrolar da campanha eleitoral é menos a multa e muito mais a compostura das autoridades públicas - que, infelizmente, foi jogada no lixo.
"A desvalorização do debate abre caminho para uma variante de ''democracia popular'' que poderia destruir as liberdades civis e dificultar a alternância de poder."
A alternância dos partidos e dos governantes no poder é um dos requisitos da forma republicana do Estado, como sempre ensinaram as grandes vozes da democracia brasileira, mais que todas a de Rui Barbosa. Porém, essa alternância depende do voto que, sendo livre, não pode ser direcionado pela lei ou pelo ditado de juízes a desalojar quem está para entronizar outros que lá não estão. Independentemente dos critérios formais, o que ocorre hoje na disputa pela Presidência é a persistência do desejo de pão e circo. Mas, na medida em que se realize cabalmente, esse desejo cederá a vez a outro ciclo histórico, impulsionado pela aspiração coletiva e pessoal de valores como dignidade, liberdade e justiça. Então será a vez da oposição, se ela tiver paciência, determinação e fidelidade a esse ideário.
"É preciso dotar a democracia brasileira de garantias mais sólidas."
Cada povo tem o autoritarismo que merece e o Brasil tem vivido na ilusão de que a ordem justa e o bom governo nascem da autoridade, não da liberdade. Mas estamos aprendendo com a nossa própria experiência. Os presidentes Hugo Chávez e Lula têm nas qualidades cênicas - histriônicas frequentemente - um traço comum, a exemplo dos líderes carismáticos e autoritários do passado. Não temos democracia popular, o que temos são líderes popularescos que caíram no gosto da maioria, que os tem tornado imbatíveis, pelo menos até que a fome seja saciada.
O momento vivido pelo País tem despertado questões e aflições. Vamos enunciar algumas delas e tentar esclarecer os horizontes.
"Muita gente acha que a democracia corre riscos quando a lei é menosprezada. Não se sabe se a legalidade que temos é firme o suficiente pra impedir retrocessos."
A legalidade é firme? Em 1946 pensávamos que a Constituição democrática que encerrou o ciclo da ditadura Vargas tinha o apoio irrestrito do povo brasileiro e que, por isso, duraria muito; mas a volta do antigo ditador ao poder quatro anos depois, e o aparelhamento do Estado por seus seguidores abalaram nossa confiança na permanência da ordem constitucional democrática.
A desestabilização das instituições não se deveu, então, à Constituição, mas aos que no governo e na oposição fraudaram a sua letra e o seu espírito, como sucederia também de 1961 a 1964. Não me animo a fazer prognósticos, ainda que acredite na possibilidade de se praticarem políticas constitucionalmente heterodoxas, como, aliás, pode ocorrer com quaisquer partidos ou pessoas que estejam no poder. Melhor será pensar o nosso presente e o nosso futuro em períodos longos como propuseram os grandes historiadores franceses da escola conhecida como Annales.
Sem nenhuma vulgaridade, o ciclo que vivemos no Brasil obedece ao imperativo de por comida no prato de todos os brasileiros e de levar aos menos afortunados educação, saúde, inserção social e participação política. Ainda uma vez, embora não queira ser pitonisa, parece-me que enquanto não se exaurir esse ciclo, a maioria dos cidadãos não atribuirá importância decisiva à boa governança, à probidade inatacável dos gestores do Estado, ao respeito que eles devem às limitações constitucionais e à ética política.
O ideal é que o progresso material e a evolução moral sigam pari passu. Isto me parece possível e percebo claramente que as pessoas e as comunidades urbanas beneficiadas por programas sociais efetivos e bem administrados despertam para outros tipos de exigência, como exação e probidade não só dos servidores do Estado como de seu próprio grupo.
"O presidencialismo imperial quebra o equilíbrio entre os poderes. A ponto de Lula ter dito à sua candidata, há algumas semanas: "Espero que o seu Congresso seja melhor que o meu."
O desejo de solução imediata e cabal dos problemas que afligem os mais necessitados se sobrepôs à legitimidade ética e à legalidade, representadas pela independência e equilíbrio dos poderes e a autocontenção dos que os exercem. Não são somente os pobres que assim procedem, mas também os que não o são. Quando o crime, organizado ou não, ameaça, pede-se ação drástica e muitas vezes injurídica, acreditando ser ela mais eficaz do que os procedimentos juridicamente legítimos.
Isto não é de hoje, é de sempre, pois os antigos já diziam salus populi suprema lex est (o bem-estar do povo é a lei suprema), para se eximirem do cumprimento da lei. Da mesma forma, quando os juízes exigem da polícia e do Ministério Público o respeito à Constituição e à lei que limitam o discricionarismo na persecução penal, e mandam o Judiciário garantir os direitos individuais de inocentes e infratores, a reação da opinião pública e da opinião publicada quantas vezes denigre o Judiciário tachando-o de frouxo e covarde. Se o presidente do Supremo Tribunal concede habeas corpus a um homem rico, logo é suspeitado de subalternidade. Por ser rico, ninguém tem cassado os seus direitos fundamentais; tão pouco por ser pobre.
"Os tribunais temem os riscos de enquadrar o presidente da República, que pouco se importa com os limites da lei."
Não creio que os tribunais tenham medo de enquadrar o presidente. Compete-lhes julgá-lo somente por crime comum, uma vez que os de responsabilidade são da alçada do Congresso. Em matéria eleitoral, temos visto soluções salomônicas que multam o presidente e sua candidata, assim como os opositores de um e de outra.
Talvez a Justiça Eleitoral se tenha dado conta dos seus excessos regulatórios que, restringindo os movimentos dos candidatos em dose cavalar, praticamente selam o resultado do pleito. Se o presidente, com seus altíssimos índices de popularidade, faz campanha desinibida por sua candidata, bafejada ainda pela cornucópia dos ricos, a igualdade visada pelo espartilho eleitoral é apenas uma balela.
Fica assim demonstrado que o que assegura a lisura do pleito e a paridade dos candidatos na largada e no desenrolar da campanha eleitoral é menos a multa e muito mais a compostura das autoridades públicas - que, infelizmente, foi jogada no lixo.
"A desvalorização do debate abre caminho para uma variante de ''democracia popular'' que poderia destruir as liberdades civis e dificultar a alternância de poder."
A alternância dos partidos e dos governantes no poder é um dos requisitos da forma republicana do Estado, como sempre ensinaram as grandes vozes da democracia brasileira, mais que todas a de Rui Barbosa. Porém, essa alternância depende do voto que, sendo livre, não pode ser direcionado pela lei ou pelo ditado de juízes a desalojar quem está para entronizar outros que lá não estão. Independentemente dos critérios formais, o que ocorre hoje na disputa pela Presidência é a persistência do desejo de pão e circo. Mas, na medida em que se realize cabalmente, esse desejo cederá a vez a outro ciclo histórico, impulsionado pela aspiração coletiva e pessoal de valores como dignidade, liberdade e justiça. Então será a vez da oposição, se ela tiver paciência, determinação e fidelidade a esse ideário.
"É preciso dotar a democracia brasileira de garantias mais sólidas."
Cada povo tem o autoritarismo que merece e o Brasil tem vivido na ilusão de que a ordem justa e o bom governo nascem da autoridade, não da liberdade. Mas estamos aprendendo com a nossa própria experiência. Os presidentes Hugo Chávez e Lula têm nas qualidades cênicas - histriônicas frequentemente - um traço comum, a exemplo dos líderes carismáticos e autoritários do passado. Não temos democracia popular, o que temos são líderes popularescos que caíram no gosto da maioria, que os tem tornado imbatíveis, pelo menos até que a fome seja saciada.
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