José Murilo de Carvalho - O Estado de S.Paulo
Falar em democracia política é falar do governo do povo. Segue-se que a condição da existência da democracia é a presença de um povo político. Povo político, por sua vez, é aquele que dispõe de todas as condições, materiais e intelectuais, para participar conscientemente e eficazmente da vida pública de maneira direta ou indireta. É aquele que pode votar, aderir a partidos, manifestar-se nas ruas e na mídia, apoiar, protestar, rebelar-se. Povo político é a cidadania ativa.
A ideia de um povo totalmente cidadão é uma utopia. Nas repúblicas ateniense e romana, os cidadãos ativos eram apenas uma parcela do povo. Nas repúblicas de hoje, mesmo nas mais realizadas, há desigualdade nas condições de participação política. Esse fato não nos precisa perturbar. Basta-nos a convicção de que quanto maior o grau de autogoverno de um povo, mais democrático será seu governo, mais sólidas suas instituições e mais justa a distribuição da riqueza social.
A formação de um povo político exige processo longo que varia de país a país. Em alguns casos, com na Grã-Bretanha, ela se deu a partir de uma revolução econômica que implantou o mercado capitalista. Em outros, como na França, sua origem foi uma revolução política que se apoderou do Estado. Em outros ainda, como na União Soviética, o ponto de partida foi uma revolução social. Essas revoluções mobilizaram a sociedade inteira e criaram as condições para a emergência, mais cedo ou mais tarde, de um povo político. Em nosso caso, a dificuldade tem sido maior porque não passamos por revolução alguma. Nosso percurso histórico contornou a violência das revoluções, mas, por isso mesmo, e graças à persistência das desigualdades, foi muito lento na criação de um povo político.
Podemos distinguir quatro povos: o povo dos censos, que equivale ao conjunto da população de um país; o povo político, que é aquele que atua dentro do sistema representativo, sobretudo votando; o povo da rua, aquele que age e reage, mas fora do sistema formal de representação, e o povo silencioso, alheio à política. Um país será tanto mais democrático quanto maior for a coincidência entre o povo dos censos e o povo político e quanto mais reduzidos forem os povos da rua e do silêncio. Concentro a análise no povo político-eleitoral.
No que se refere a eleições, o Brasil foi de 1822 a 1881, na lei e de fato, mais democrático do que os países europeus. Cerca de 1860, por exemplo, votavam no Brasil no primeiro turno 13% da população livre. Na Grã-Bretanha votavam 3%, na Suécia, 5%, na Espanha, 2,6%. No entanto, a lei de 1881, que introduziu a eleição direta, causou grande retrocesso ao proibir o voto do analfabeto e ao dificultar a prova de rendimentos. Na época, 85% da população eram analfabetos. Na eleição parlamentar de 1886, votou apenas 0,8% da população. Foi nessa época que o biólogo francês Louis Couty escreveu que o Brasil não tinha povo, querendo dizer com a afirmação que o país não tinha povo político. A Constituição de 1891 eliminou a exigência de renda, mas manteve a de alfabetização. A consequência foi que durante toda a Primeira República (1889-1930), a participação eleitoral não passou de 5% da população. Nas eleições do centenário da independência, em 1822, apenas 2,9% votaram.
A participação de 1860 só foi recuperada em 1945, quando votaram 13,4% da população. Foram 64 anos de incrível estagnação, quando em outros países a participação eleitoral aumentava constantemente. Em compensação, após 1945, houve no Brasil uma expansão muito rápida do povo eleitoral. Em 1960, o eleitorado correspondia a 22% da população, em 1986, a 51%, em 2009, a 71%. A Constituição de 1988 foi em parte responsável por esse crescimento ao eliminar a exclusão dos analfabetos e baixar a idade para 16 anos. Foi um salto espetacular. Em 50 anos, mais de 120 milhões de brasileiros foram acrescentados ao colégio eleitoral. O aumento não se deteve mesmo durante a ditadura. Entre 1962 e 1986, o eleitorado cresceu em 53 milhões.
O Brasil passou rapidamente a ter povo político-eleitoral. A rapidez da inclusão deu margem aos populismos varguista, ademarista e lacerdista. Os políticos descobriram a nova mina de votos e trataram de explorá-la com as táticas conhecidas. Em 1964, essa súbita avalanche de votos implodiu o sistema representativo, não acostumado à presença de povo. Os milhões que começaram a votar durante a ditadura fizeram um aprendizado torto do sentido do voto. Votar era um ritual ocioso diante da emasculação do Congresso.
Temos hoje um povo político amadurecido, uma democracia sólida? Para voltar às definições, o povo político-eleitoral está hoje mais próximo do povo do censo do que em qualquer outro país, graças ao voto aos 16 anos. O povo da rua, por sua vez, reduziu-se substancialmente. Até o MST faz hoje política dentro do sistema. Quando não o faz, é por conivência das autoridades. Os traficantes que controlam partes do território urbano não são atores políticos. O povo silencioso ainda existe, mas tem peso cada vez mais reduzido. Uma novidade positiva é que, apesar de ser a participação política ainda excessivamente limitada às eleições, ela encontra hoje na internet vasto campo de atuação que está longe de ter esgotado suas potencialidades.
Assim, em termos eleitorais, pode-se dizer que temos hoje um povo político. No entanto, além de ser reduzida a participação fora das eleições, ainda não temos um povo político maduro se levarmos em conta o que Cícero já exigia para a existência de uma autêntica república: a igualdade social ou, pelo menos, legal. Com as imensas desigualdades que ainda temos, sobretudo de renda e educação, os votantes não têm a mesma liberdade de escolha. Apesar dos avanços na redução da desigualdade, o Brasil ainda possui 54 milhões de pobres, muitos deles eleitores. Além disso, 53% do eleitorado não completaram o ensino fundamental. No governo de Lula, esse eleitorado compreendeu a relação de causalidade entre voto e políticas sociais. Contudo, ele vive no mundo da necessidade, onde sua liberdade de escolha se restringe ao cálculo dos benefícios que recebe. É o caso dos 58 milhões de brasileiros que se beneficiam dos aumentos do salário mínimo e da Bolsa Família. Essas pessoas representam a opinião popular, legítima, mas prisioneira da necessidade. Não estão livres para formarem uma opinião pública independente e crítica.
Eis o dilema de hoje: a inclusão social é necessária para reduzir a desigualdade que, por sua vez, é condição para a existência da democracia. Mas, ao reduzir a desigualdade, cria, no curto prazo, um grande eleitorado dependente, terreno fértil para populismos, clientelismos e cesarismos. É o preço do tempo perdido na formação do povo político.
A ideia de um povo totalmente cidadão é uma utopia. Nas repúblicas ateniense e romana, os cidadãos ativos eram apenas uma parcela do povo. Nas repúblicas de hoje, mesmo nas mais realizadas, há desigualdade nas condições de participação política. Esse fato não nos precisa perturbar. Basta-nos a convicção de que quanto maior o grau de autogoverno de um povo, mais democrático será seu governo, mais sólidas suas instituições e mais justa a distribuição da riqueza social.
A formação de um povo político exige processo longo que varia de país a país. Em alguns casos, com na Grã-Bretanha, ela se deu a partir de uma revolução econômica que implantou o mercado capitalista. Em outros, como na França, sua origem foi uma revolução política que se apoderou do Estado. Em outros ainda, como na União Soviética, o ponto de partida foi uma revolução social. Essas revoluções mobilizaram a sociedade inteira e criaram as condições para a emergência, mais cedo ou mais tarde, de um povo político. Em nosso caso, a dificuldade tem sido maior porque não passamos por revolução alguma. Nosso percurso histórico contornou a violência das revoluções, mas, por isso mesmo, e graças à persistência das desigualdades, foi muito lento na criação de um povo político.
Podemos distinguir quatro povos: o povo dos censos, que equivale ao conjunto da população de um país; o povo político, que é aquele que atua dentro do sistema representativo, sobretudo votando; o povo da rua, aquele que age e reage, mas fora do sistema formal de representação, e o povo silencioso, alheio à política. Um país será tanto mais democrático quanto maior for a coincidência entre o povo dos censos e o povo político e quanto mais reduzidos forem os povos da rua e do silêncio. Concentro a análise no povo político-eleitoral.
No que se refere a eleições, o Brasil foi de 1822 a 1881, na lei e de fato, mais democrático do que os países europeus. Cerca de 1860, por exemplo, votavam no Brasil no primeiro turno 13% da população livre. Na Grã-Bretanha votavam 3%, na Suécia, 5%, na Espanha, 2,6%. No entanto, a lei de 1881, que introduziu a eleição direta, causou grande retrocesso ao proibir o voto do analfabeto e ao dificultar a prova de rendimentos. Na época, 85% da população eram analfabetos. Na eleição parlamentar de 1886, votou apenas 0,8% da população. Foi nessa época que o biólogo francês Louis Couty escreveu que o Brasil não tinha povo, querendo dizer com a afirmação que o país não tinha povo político. A Constituição de 1891 eliminou a exigência de renda, mas manteve a de alfabetização. A consequência foi que durante toda a Primeira República (1889-1930), a participação eleitoral não passou de 5% da população. Nas eleições do centenário da independência, em 1822, apenas 2,9% votaram.
A participação de 1860 só foi recuperada em 1945, quando votaram 13,4% da população. Foram 64 anos de incrível estagnação, quando em outros países a participação eleitoral aumentava constantemente. Em compensação, após 1945, houve no Brasil uma expansão muito rápida do povo eleitoral. Em 1960, o eleitorado correspondia a 22% da população, em 1986, a 51%, em 2009, a 71%. A Constituição de 1988 foi em parte responsável por esse crescimento ao eliminar a exclusão dos analfabetos e baixar a idade para 16 anos. Foi um salto espetacular. Em 50 anos, mais de 120 milhões de brasileiros foram acrescentados ao colégio eleitoral. O aumento não se deteve mesmo durante a ditadura. Entre 1962 e 1986, o eleitorado cresceu em 53 milhões.
O Brasil passou rapidamente a ter povo político-eleitoral. A rapidez da inclusão deu margem aos populismos varguista, ademarista e lacerdista. Os políticos descobriram a nova mina de votos e trataram de explorá-la com as táticas conhecidas. Em 1964, essa súbita avalanche de votos implodiu o sistema representativo, não acostumado à presença de povo. Os milhões que começaram a votar durante a ditadura fizeram um aprendizado torto do sentido do voto. Votar era um ritual ocioso diante da emasculação do Congresso.
Temos hoje um povo político amadurecido, uma democracia sólida? Para voltar às definições, o povo político-eleitoral está hoje mais próximo do povo do censo do que em qualquer outro país, graças ao voto aos 16 anos. O povo da rua, por sua vez, reduziu-se substancialmente. Até o MST faz hoje política dentro do sistema. Quando não o faz, é por conivência das autoridades. Os traficantes que controlam partes do território urbano não são atores políticos. O povo silencioso ainda existe, mas tem peso cada vez mais reduzido. Uma novidade positiva é que, apesar de ser a participação política ainda excessivamente limitada às eleições, ela encontra hoje na internet vasto campo de atuação que está longe de ter esgotado suas potencialidades.
Assim, em termos eleitorais, pode-se dizer que temos hoje um povo político. No entanto, além de ser reduzida a participação fora das eleições, ainda não temos um povo político maduro se levarmos em conta o que Cícero já exigia para a existência de uma autêntica república: a igualdade social ou, pelo menos, legal. Com as imensas desigualdades que ainda temos, sobretudo de renda e educação, os votantes não têm a mesma liberdade de escolha. Apesar dos avanços na redução da desigualdade, o Brasil ainda possui 54 milhões de pobres, muitos deles eleitores. Além disso, 53% do eleitorado não completaram o ensino fundamental. No governo de Lula, esse eleitorado compreendeu a relação de causalidade entre voto e políticas sociais. Contudo, ele vive no mundo da necessidade, onde sua liberdade de escolha se restringe ao cálculo dos benefícios que recebe. É o caso dos 58 milhões de brasileiros que se beneficiam dos aumentos do salário mínimo e da Bolsa Família. Essas pessoas representam a opinião popular, legítima, mas prisioneira da necessidade. Não estão livres para formarem uma opinião pública independente e crítica.
Eis o dilema de hoje: a inclusão social é necessária para reduzir a desigualdade que, por sua vez, é condição para a existência da democracia. Mas, ao reduzir a desigualdade, cria, no curto prazo, um grande eleitorado dependente, terreno fértil para populismos, clientelismos e cesarismos. É o preço do tempo perdido na formação do povo político.
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