sábado, 1 de março de 2008

OS COOPTADOS

Cooptar é verbo transitivo direto. Mestre Aurélio explica o significado: “admitir numa sociedade com dispensa das formalidades de praxe”. No Brasil de hoje, dispensa-se muito mais do que formalidades. Uma anestesia geral engaveta a consciência crítica e as convicções transitam diretamente para o esquecimento. Há aceleração do crescimento da mediocridade, dos ganhos financeiros – legais ou não – e da violência.

Assim, arquivados os sonhos e um projeto de nação, a lógica limitadora do “menos ruim” avassala corações e mentes. A naturalização dos escândalos e a degeneração política, com a alta do clientelismo rasteiro e do desinteresse, ameaçam a emergência da massa à condição de povo emancipado da demagogia e do paternalismo.

Assim, o crítico feroz de ontem, que considerava o presidente da República “avesso ao trabalho e ao estudo, fugidio de tudo o que lhe traga dificuldade e inapto para o cargo”, torna-se o palaciano de hoje, pensador do futuro com amnésia do passado. Adesão tão sinistra quanto a de partidos que, na última campanha eleitoral, demarcavam contra aquele que “traíra compromissos trabalhistas históricos”. Para calar a voz dissonante, não há mistério: ofereça-se um Ministério. E aos adesistas de sempre, para os quais ser da situação é condição fisiológica de reprodução de mandatos, abram-se cargos a mancheias, sem qualquer preocupação com o saber técnico dos ocupantes.

Assim, a oposição conservadora, perplexa ao ver o adversário novamente vitorioso empunhar bandeiras que foram suas, como a do modelo econômico permanente e a “governabilidade a qualquer preço”, confunde-se com o mapa de navegação, muda de nome mas não de projeto. Que é o de não ter projeto de governo exceto o de monitorar, suavemente, o funcionamento do mercado, deus-regulador de vida, corretor natural de todas as injustiças, desde Adam Smith.

Assim, no Parlamento sufocado pelas Medidas Provisórias, o provisório torna-se permanente. E o legislador, impotente e sôfrego, vai embutindo no guarda-chuva desses “decretos-leis” do Executivo tudo aquilo que as corporações que o elegeram exigem, misturando alhos com bugalhos, inoculando minimização de anúncio do aleitamento materno em programa de arrendamento residencial, juntando redução de imposto para a construção de iates com isenção para compra de remédios.

Assim, nesse mesmo Legislativo que legisla por exceção, e deixa a Reforma Política esquecida em algum desvão, reitera-se o mandamento da auto-proteção: o voto anistiou a todos, o silêncio é a melhor resposta a qualquer denúncia. Os tribunos não vão à tribuna, calar é se proteger e orientar o eleitorado a esquecer.

Assim, a reprimarização da economia vira janela de oportunidade singular para o desenvolvimento (in)sustentável: o modernizante império das plantations do imenso canavial, abençoado pelas virtudes renováveis do agro-combustível, coloca véus na exploração do trabalho e na desertificação dos campos. O ciclo promissor do etanol pode se tornar nossa contribuição nefasta ao aquecimento global.

Assim, as causas da pobreza e da profunda desigualdade numa economia relativamente rica - 78% da população mundial vivem em países com renda per capita menor do que a nossa - não são enfrentadas estruturalmente. Ao invés do investimento público, reforçado pela redução da drenagem para pagamento de juros e serviços da dívida, prossegue o déficit primário da educação, da qualificação profissional e do emprego formal. Na emergência da miséria gritante, a bolsa circunstancial, que, em meio a garantias da sobrevivência básica, nutre o caminho eleitoral.

Assim, judicializa-se a questão criminal e o crime vai capturando também esferas do Judiciário. Sem integração e reestruturação de polícias e presídios, o engodo de mais prisão e “retirada de circulação” encobre a galopante e letal circulação de armas e cumplicidades. A venda de sentenças reforça a exaltação, para a juventude, da trajetória esperta e magistral onde tudo se compra para subir no tribunal do poder, do prestígio e do efêmero que pereniza.

Assim, a convocação operária liderada pelo gigantesco aparato das grandes centrais sindicais oferece casas no lugar de causas e imóveis sorteados para domesticar a mobilização. Pão individual, algum circo e preito ao capital substituindo consciência e organização dos que vivem do trabalho.

Assim... Ah, não! Não há apenas neoconformismo neste país em que os governantes costumam sair da História para cair na vida. Nem todos se acomodaram na terra de Macunaíma, “o herói sem nenhum caráter”. Nem tudo se diluiu. O pulso ainda pulsa e, aos poucos, cresce a consciência do grande mal-estar. Santo Agostinho dizia que “só mudamos impulsionados por um grande amor ou por uma grande dor”. Uma molecular rede, em todos os aspectos da vida social, revela que há solidariedade e luta cidadã. A percepção aguda de nossas dores aumenta, e nos põe em movimento.

Chico Alencar - deputado federal e professor universitário

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