Não precisa dar muito tempo para se perceber que nem toda loucura é genial, como nem toda lucidez é velha.
(Chico Buarque de Hollanda)
Patrícia Alves
A historiografia tem-se deparado, ao longo de sua existência, com diversos embates, sobretudo no que diz respeito às fontes. Não é fato recente que a escolha destas ou daquelas fontes destaca umas em detrimentos de outras, demonstrando assim o juízo de valor empregado pelo historiador, atrelado sempre a uma concepção da história, seja ela, positivista, marxista, ou a da chamada ‘história-nova’.
Numa das vertentes do processo de renovação historiográfica deste século, pode-se destacar o trabalho do historiador Marc Ferro, que tem desenvolvido, desde 1967, análises teóricas representativas, utilizando o cinema como fonte documental e enfatizando a relação cinema-história em suas pesquisas. Além deste, outros pesquisadores, especialmente na França e na Espanha, vêm dando significativas contribuições à História, com base na utilização do cinema como uma fonte possível disponível ao historiador do século XX.
Neste ensaio, busca-se avaliar, valendo-se da película cinematográfica Lamarca, dirigida por Sérgio Rezende, a forma com que o complexo processo da constituição da luta armada e da guerrilha urbana e rural no Brasil, ante o conturbado período pós-1964, é traduzido nas imagens que compõem o filme. Trata-se, de fato, de um exercício de interpretação do historiador, chamando a atenção para a importância do cinema como um dos elementos constitutivos da visão histórica de um período (tempo e espaço), ainda não muito trabalhada historiograficamente e pouco discutida pelo grande público. Se o historiador não pode alcançar a potência da mídia e do cinema como meios de difusão de suas interpretações, nem por isso ele deve renunciar a uma das obrigações de seu ofício: ser crítico.
Uma vez que se utiliza o cinema como fonte documental, devem ser estabelecidos três níveis de interpretação: o primeiro, a realidade histórica em si; o segundo, a visão que o diretor tem dessa realidade; e, em terceiro lugar, a forma como o diretor funde a realidade com a sua visão pessoal no filme. Dessa forma, a escolha do filme Lamarca como laboratório deste breve ensaio tenta demonstrar a viabilidade da utilização do cinema na pesquisa histórica, ainda que seja como simples provocação para que todos os interessados, historiadores ou não, possam realizar uma reflexão mais profunda.
O filme Lamarca foi baseado na biografia Lamarca: o capitão da guerrilha, escrita por Emiliano José e Oldack Miranda, em 1980. Os biógrafos do capitão Lamarca realizaram sua pesquisa por meio de depoimentos, reportagens dos periódicos Pasquim, Em Tempo e Coorjornal, além da utilização dos relatórios do Exército.
O filme conta a história do capitão Carlos Lamarca, que deserta em finais da década de 1960 e ingressa no movimento de luta armada contra a ditadura no Brasil. A película se concentra no personagem Lamarca, enfocando sua brilhante trajetória como oficial do Exército brasileiro que, já em seu processo de formação, havia-se deparado com idéias socialistas, por meio de panfletos do Partido Comunista na Escola de Oficiais. Outro momento marcante da sua tomada de consciência, representado no filme, é a sua ida ao Canal de Suez, integrando uma força de paz. Lá, ele se depara com a miséria dos beduínos no deserto e chega a questionar se realmente estava lutando do lado certo: "sempre quis ser soldado e nunca deixaria de ser, mas mudaria de exército, se o nosso passasse para o lado dos exploradores". O pano de fundo do filme revela o clima de terror instituído pela ditadura e a situação das organizações armadas, diante da estrutura bem montada do Estado.
Mas, para buscar estabelecer a relação do filme com a realidade, é indispensável que se observe o contexto da luta armada brasileira naquele momento. É sabido que esta luta era bastante desigual: de um lado, um Estado armado até os dentes e fazendo uma campanha permanente de legitimação, como é o caso, por exemplo, dos slogans "Brasil, ame-o ou deixe-o" ou "Procurados vivos ou mortos"; do outro, organizações que empregavam mais tempo em fugir das forças armadas institucionais do que propriamente em resistir ou fazer propaganda antigovernista. Mas estas organizações ajudaram, sem sombra de dúvida, a escrever uma página conturbada da história brasileira. O filme retrata isso, mas sem que, em momento algum, faça menção a outras formas de resistência, como a estudantil, por exemplo, que foi talvez mais expressiva. Entretanto, a luta armada no Brasil é um momento ímpar da nossa história e, independentemente das limitações a ela atribuídas, não resta dúvidas de que precisamos de uma melhor compreensão sobre um assunto ainda pouco conhecido. Como então perceber a esquerda brasileira naquele momento?
Divergência é uma palavra que não se pode deixar de citar quando se visualiza a situação da esquerda brasileira naquele momento. Havia três divergências básicas entre as esquerdas:
...uma referente ao caráter da revolução brasileira; outra, às formas de luta para chegar ao poder; uma terceira, ao tipo de organização necessária à revolução
Para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o caráter da revolução brasileira consistia numa revolução em duas etapas:
...a primeira das quais deveria ser "burguesa", ou de "libertação nacional". Congregando uma somatória de classes sociais progressistas, unidas para desenvolver as forças produtivas, a revolução burguesa implicaria superar os entraves impostos ao desenvolvimento nacional pelas relações feudais no campo e pela presença do imperialismo na economia.
A Ação Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e a Resistência Armada Nacionalista (RAN) mantiveram esse esquema analítico da libertação nacional, procurando utilizar a tática da luta armada. O caráter socialista da revolução era proposto por organizações como Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Partido Operário Comunista (POC), Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), e Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), que se opunham totalmente à visão do PCB. Para eles, a revolução só poderia ser socialista. Dentro deste quadro de divergências políticas, a esquerda não se entendia, ao passo que o Estado, notadamente depois de 1968 com o AI-5, consolidava uma máquina de repressão ativa e forte. Os chamados ‘rachas’ dentro do Partido Comunista e das várias organizações de esquerda iriam consolidar então o enfraquecimento da resistência à ditadura.
Inicialmente, Carlos Lamarca participou da VPR que depois, após a fusão desta com o Comando de Libertação Nacional (CLN), transformou-se na VAR-Palmares. Ele entrou várias vezes em conflito com sua organização por divergências políticas e ideológicas. O primeiro conflito que Lamarca teve com a organização ocorreu logo que ingressou na clandestinidade, vez que se viu preso nos aparelhos burocráticos sem ter, como era seu ideal, um campo para que pudesse dar início ao treinamento dos guerrilheiros e assim estabelecer a tão sonhada guerrilha rural. Só algum tempo depois, após o assalto ao cofre do ex-governador Adhemar de Barros é que a organização adquire o terreno que serviria de campo de treinamento. Este possuía duas bases denominadas de Carlos Roberto Zanirato e de Eremias Delizoikov, em referência aos companheiros mortos pela repressão. O núcleo, formado pelas duas bases, fora ‘batizado’ com o nome de Carlos Marighella que havia sido morto em 4 de novembro de 1969. Mas o sonho de Lamarca acabou cedo. Em 19 de abril, o campo foi delatado por um dos membros que ‘caiu’ nas mãos da repressão e somente no dia 31 é que Lamarca e alguns de seus homens — que teriam escapado da morte e da prisão, após dias e dias de perseguição — conseguiram enfim sair do Vale da Ribeira. Essa experiência foi para Lamarca um grande aprendizado, confirmando seus planos de implantação da guerrilha rural, que, segundo ele, era tão viável quanto a urbana. E esse era um dos divisores de água da esquerda, ou seja, a forma de se fazer a revolução.
Alguns grupos achavam que a união de forças das guerrilhas urbanas e rurais era necessária para desencadear o processo de insurreições. Entre estas, pode-se citar aquelas que defendiam os focos de guerrilhas. Carlos Marighella mostrou-se contra esta estratégia, preferindo as colunas móveis em vez dos focos. A VAR-Palmares, da qual Lamarca fazia parte, ressaltava a necessidade de se realizar a guerrilha rural, partindo do princípio de que o ‘elo mais fraco do capitalismo situa-se no campo, pois é lá que se encontram as maiores, contradições. Um ponto comum entre essas organizações foi o fato de, a princípio, não descartarem o papel das massas no processo revolucionário, mesmo que a participação destas ocorresse com maior ou menor intensidade, dependendo da organização.
É interessante lembrar que tanto a organização de Lamarca quanto as outras de esquerda eram urbanas, mas tinham interesse em realizar a guerrilha rural. A guerrilha urbana era indispensável no que se refere à captação de recursos e para dar sustentação à organização, bem como para tornar viável a guerrilha rural, além, obviamente, de exercer uma função de veículo divulgador da causa revolucionária. Mas a história é testemunha de que essas organizações foram desbaratadas ainda nas cidades e não tiveram tempo de empreender o seu projeto de guerrilha no campo. Sabe-se que são vários os fatores pelos quais esses grupos de luta armada foram sufocados, mas a própria divisão entre eles dá a idéia da falta de unidade e, portanto, da sua fragilidade contra um aparelho repressor sólido como o da ditadura brasileira de então.
Um episódio até certo ponto pouco conhecido, que se refere a duas organizações, a ALN de Carlos Marighella e a VPR de Lamarca, exemplifica o que foi mencionado acima: o capitão Carlos Lamarca antes de desertar levou, do regimento no qual servia, armamentos, mas, diante da impossibilidade momentânea de guardá-los, passou-os à ALN. Dias depois, Lamarca irritou-se profundamente ao saber que Marighella pretendia ficar com as armas. Conseguiu recuperar apenas metade do arsenal, e o saldo deste episódio foi a profunda antipatia de Lamarca por Marighella. Isto vem demonstrar o quanto as organizações armadas brasileiras estavam longe de possuir a sintonia necessária ao empreendimento revolucionário.
Assim, mesmo que a película não aborde esse episódio, convém esclarecer que há, no filme, uma preocupação constante em demonstrar Lamarca como líder revolucionário, mesmo que esta interpretação seja passível de contestação. Sérgio Rezende procura resgatar a figura humana de Carlos Lamarca em algumas cenas do convívio com a família, na discussão com os companheiros da organização e no relacionamento com a guerrilheira Clara. O que fica muito evidente é sempre o valor do idealismo presente no personagem, representado por seus atos voluntariosos, e na caracterização dos indivíduos que buscavam romper com uma força institucional muito poderosa, tanto em poder de fogo quanto em controle ideológico de massa, o que sem dúvida, é um poder muito significativo contra um movimento revolucionário que almejava derrubar o governo ditatorial. Lamarca apresenta bem as características das pessoas que abdicaram do convívio familiar em troca de um ideal revolucionário. Isso se manifesta na expansão de todo um drama muito explícito de conflito interior diante de uma realidade desgastante, física e psicologicamente.
O heroísmo é bem representado quando o próprio Lamarca diz no filme: "Só esses interessam. Só esses vão fazer a revolução", referindo-se aos companheiros que resistiam as maiores torturas e não delatavam os membros da organização. Isto reflete a ética aplicada pelo conjunto da esquerda brasileira que exagerava em subestimar a complexidade histórica do Brasil de então. Tal ética transformava o voluntarismo e a capacidade de resistir à tortura nas qualidades máximas do revolucionário ideal.
O filme é bastante fiel à biografia de Emiliano José e Oldack Miranda, utilizando fatos históricos comprovados como, por exemplo, o seqüestro do embaixador suíço, o assalto ao cofre do ex-governador Adhemar de Barros e o suicídio de Iara.
Enfim, o filme apresenta uma trama que tem como personagem central a figura de Carlos Lamarca. No entanto, o contexto histórico da luta armada, da resistência, fica muito reduzido, ou seja, toda a gama de possibilidades de trabalhar o período é relegada a um segundo plano, dando ao filme nuanças de romance biográfico.
O ambiente de tensão é reconstituído no filme em cenas de tortura, de possibilidade sempre presente de prisão, de mortes, de delação, de conspiração, no clima de terror que, institucionalizado, adquire contornos bem visíveis de legalidade e que legitima variados procedimentos em defesa da ‘manutenção da ordem’. Enfim, por uma perseguição implacável não só ao personagem mas a todo aquele que se rebelasse contra o poder instituído. Essas pessoas envolvidas com a luta armada possuíam uma certeza: a de estar fazendo a transformação do mundo. Mas o povo onde andava? Que imagem do povo nos é mostrada no filme? É um povo abstrato, mítico? Um povo totalmente alienado? Como fazer uma revolução em nome de um povo que não se ‘interessa’ por ela? Não seria isto um desprezo pelo povo? O filme não esclarece estas questões. Mas não seriam elas da maior importância? No filme, o povo está presente apenas nas palavras de Lamarca que se lamenta: "se o povo tivesse consciência da condição desesperadora em que vive, acabaria pegando em armas, lutando do nosso lado".
Quanto aos métodos revolucionários, o comportamento de Lamarca, segundo Emiliano e Oldack, revelou uma mudança significativa, por ocasião do seqüestro do embaixador suíço, quando ele teria tomado para si a responsabilidade de manter o prisioneiro vivo, contrariando a sua própria organização. Neste momento, ‘Lamarca estimula a luta interna; acha importante mudar os métodos da VPR para escapar do círculo vicioso’. A própria decisão de Lamarca em ficar no Brasil no momento em que toda a organização havia decidido por sua saída do país demonstra que este estava de fato assumindo a liderança que até então não havia efetivado. Mas um novo momento decisivo irá surgir na vida de Lamarca: seu rompimento definitivo com a VPR, em 22 de Março de 1971, e seu ingresso no MR-8. Ele já havia anteriormente pensado nisto, mas tinha adiado a decisão na esperança de que a situação tomasse outro rumo e que ele pudesse permanecer na organização. Naquele momento, Iara, que já era sua companheira, também muda de organização. Mas, em junho, o MR-8 começa a ser desarticulado em virtude de várias prisões. Lamarca e Iara fogem para Bahia. Todos esses acontecimentos são abordados pelo filme.
A relação de Iara e Lamarca nunca foi fácil, em razão de atividades incompatíveis na organização, que os impossibilitava de estarem juntos, além da difícil vida que levavam na clandestinidade. Foi muito difícil para Lamarca assumir a sua relação com Iara, pois esta agredia os valores da organização, vez que ela não se enquadrava na ‘moral proletária’, exigida pelas esquerdas.
A esquerda brasileira naquele instante caracterizava-se, entre outras coisas, por profundas contradições. Uma delas diz respeito à questão moral do comportamento sexual, que, todavia, não é abordada diretamente no filme. Mas por que o diretor insinua um possível relacionamento entre Iara e Zequinha? Por que ele não enfoca esse ponto abertamente, tratando de questões como: Que postura a esquerda adotava em se tratando dos militantes femininos e homossexuais? Que moral eles possuíam? A mesma moral puritana, hipócrita e preconceituosa das classes dominantes? A insinuação de Zequinha fica, a primeira vista, imperceptível. Pode-se dizer que aparece apenas como um detalhe. Mas é um detalhe significativo que, se não aborda, ao menos insinua uma postura moralista da esquerda brasileira.
Esta expressão de puritanismo da esquerda brasileira foi bem captada por Zuenir Ventura em seu livro - 1968-O ano que não terminou - na seguinte e ilustrativa passagem:
Para um Partido Comunista como o nosso, que ainda na década de 50 promovia nas suas bases casamentos reparadores entre militantes que ousassem dar um mau passo - exatamente como faziam alguns pais retrógrados - aderir aos novos costumes era um inaceitável desvio ideológico. As mudanças de comportamento não eram recebidas como sinais de avanço, mas de retrocesso. Eram sintomas de decadência da burguesia. A idéia de proletariado estava associada à idéia de pureza moral.
A esquerda, por mais contraditório que possa parecer, com interesses tão revolucionários na política, era permeada por vários preconceitos. Entre eles, podemos destacar seu conservadorismo em relação às mudanças de comportamento da época. O caso do relacionamento de Lamarca e Iara pode servir como exemplo de um detalhe sintomático e revelador, pouco explorado pelos estudos realizados até então: o quanto a esquerda achava-se capturada pela moral dominante, não obstante no cenário real de fundo se desenvolvesse a chamada ‘Revolução Sexual’, que foi uma das maiores motivações de 1968 no mundo.
De todos os modos, a relação amorosa entre Carlos Lamarca e Iara é pouco tratada no filme, sobretudo no que concerne ao erotismo, que desaparece, cedendo lugar a discussões puramente existenciais e políticas. Qual seria o motivo para esse aspecto da vida pessoal do personagem não ter sido abordado? Segundo uma reportagem da revista Veja, a esposa de Lamarca teria imposto duas condições para aprovar a elaboração do filme: "Não queria cenas de sexo nem que as forças armadas fossem ridicularizadas". Certamente, esta exigência explica as limitações do filme nesse aspecto, mas é reveladora também de uma moral que vigorava na época e subsiste até hoje. Pode-se concluir que a esquerda não andava em sintonia com as mudanças comportamentais que estavam ocorrendo em todo o mundo, apesar de sua proposta revolucionária.
Após a fuga para Bahia, Lamarca e Iara separam-se pela última vez. Ela fica em Salvador e ele parte para o interior do estado. Lamarca chega, em 29 de junho de 1971, a Buriti Cristalino, pequeno povoado do interior da Bahia, e ali já assume a tarefa de escrever uma peça teatral sobre a exploração tributária para ser encenada pela comunidade local e esta faz sucesso entre a população, algo interessante que o filme não mostrou.
No dia 28 de agosto, a repressão chegou a Buriti Cristalino, trazendo consigo a informação de que Lamarca estava próximo. Não seria difícil reconstituir aquele dia, visto que muitos dos moradores que presenciaram o ocorrido estão lá ainda hoje. Porém, a partir daí, o que se pode reconstituir sobre a trajetória de Lamarca e Zequinha é resultado da pesquisa dos relatórios do Exército e de uma suposição dos fatos ocorridos. Em 17 de setembro, ocorre o fim trágico de Carlos Lamarca e de Zequinha, ambos assassinados pela repressão no interior da Bahia. Para o Exército brasileiro, para além das necessidades de guerra psicológica e de propaganda, foi uma questão de honra o seu aniquilamento. Isto é demonstrado no filme quando um personagem diz: "criaram a cobra no quartel (...) deixaram a fera fugir da jaula".
Os biógrafos — o que é repassado para o filme — resolveram com criatividade a lacuna que possui a história escrita daqueles dias de fuga pelo interior da Bahia, evidentemente com base nos relatórios do Exército, que, infelizmente, os autores não citam.
Fato também interessante é a analogia da última cena, realizada pelo diretor Sérgio Rezende, entre Lamarca e a figura de Cristo, que foi um recurso estilístico muito criticado. Lamarca morto com a cabeça encostada num tronco de árvore, e cujos braços abertos lembravam Cristo na cruz, é um artifício apelativo do filme e talvez desnecessário, especialmente porque grande parte da esquerda, conquanto ‘religiosa’ na sua visão teológica e fatalista da história, era atéia por princípio.
Mas com todas as ressalvas que se possa fazer ao filme, especialmente no que concerne à falta de uma maior atenção ao contexto histórico conjuntural, Lamarca, por si só, é um personagem intrigante — sobretudo ao se considerar a carreira promissora que o esperava e o fato de haver preferido desertar e passar a ser um alvo peculiar da perseguição das forças armadas — o que já torna a película atraente.
(Chico Buarque de Hollanda)
Patrícia Alves
A historiografia tem-se deparado, ao longo de sua existência, com diversos embates, sobretudo no que diz respeito às fontes. Não é fato recente que a escolha destas ou daquelas fontes destaca umas em detrimentos de outras, demonstrando assim o juízo de valor empregado pelo historiador, atrelado sempre a uma concepção da história, seja ela, positivista, marxista, ou a da chamada ‘história-nova’.
Numa das vertentes do processo de renovação historiográfica deste século, pode-se destacar o trabalho do historiador Marc Ferro, que tem desenvolvido, desde 1967, análises teóricas representativas, utilizando o cinema como fonte documental e enfatizando a relação cinema-história em suas pesquisas. Além deste, outros pesquisadores, especialmente na França e na Espanha, vêm dando significativas contribuições à História, com base na utilização do cinema como uma fonte possível disponível ao historiador do século XX.
Neste ensaio, busca-se avaliar, valendo-se da película cinematográfica Lamarca, dirigida por Sérgio Rezende, a forma com que o complexo processo da constituição da luta armada e da guerrilha urbana e rural no Brasil, ante o conturbado período pós-1964, é traduzido nas imagens que compõem o filme. Trata-se, de fato, de um exercício de interpretação do historiador, chamando a atenção para a importância do cinema como um dos elementos constitutivos da visão histórica de um período (tempo e espaço), ainda não muito trabalhada historiograficamente e pouco discutida pelo grande público. Se o historiador não pode alcançar a potência da mídia e do cinema como meios de difusão de suas interpretações, nem por isso ele deve renunciar a uma das obrigações de seu ofício: ser crítico.
Uma vez que se utiliza o cinema como fonte documental, devem ser estabelecidos três níveis de interpretação: o primeiro, a realidade histórica em si; o segundo, a visão que o diretor tem dessa realidade; e, em terceiro lugar, a forma como o diretor funde a realidade com a sua visão pessoal no filme. Dessa forma, a escolha do filme Lamarca como laboratório deste breve ensaio tenta demonstrar a viabilidade da utilização do cinema na pesquisa histórica, ainda que seja como simples provocação para que todos os interessados, historiadores ou não, possam realizar uma reflexão mais profunda.
O filme Lamarca foi baseado na biografia Lamarca: o capitão da guerrilha, escrita por Emiliano José e Oldack Miranda, em 1980. Os biógrafos do capitão Lamarca realizaram sua pesquisa por meio de depoimentos, reportagens dos periódicos Pasquim, Em Tempo e Coorjornal, além da utilização dos relatórios do Exército.
O filme conta a história do capitão Carlos Lamarca, que deserta em finais da década de 1960 e ingressa no movimento de luta armada contra a ditadura no Brasil. A película se concentra no personagem Lamarca, enfocando sua brilhante trajetória como oficial do Exército brasileiro que, já em seu processo de formação, havia-se deparado com idéias socialistas, por meio de panfletos do Partido Comunista na Escola de Oficiais. Outro momento marcante da sua tomada de consciência, representado no filme, é a sua ida ao Canal de Suez, integrando uma força de paz. Lá, ele se depara com a miséria dos beduínos no deserto e chega a questionar se realmente estava lutando do lado certo: "sempre quis ser soldado e nunca deixaria de ser, mas mudaria de exército, se o nosso passasse para o lado dos exploradores". O pano de fundo do filme revela o clima de terror instituído pela ditadura e a situação das organizações armadas, diante da estrutura bem montada do Estado.
Mas, para buscar estabelecer a relação do filme com a realidade, é indispensável que se observe o contexto da luta armada brasileira naquele momento. É sabido que esta luta era bastante desigual: de um lado, um Estado armado até os dentes e fazendo uma campanha permanente de legitimação, como é o caso, por exemplo, dos slogans "Brasil, ame-o ou deixe-o" ou "Procurados vivos ou mortos"; do outro, organizações que empregavam mais tempo em fugir das forças armadas institucionais do que propriamente em resistir ou fazer propaganda antigovernista. Mas estas organizações ajudaram, sem sombra de dúvida, a escrever uma página conturbada da história brasileira. O filme retrata isso, mas sem que, em momento algum, faça menção a outras formas de resistência, como a estudantil, por exemplo, que foi talvez mais expressiva. Entretanto, a luta armada no Brasil é um momento ímpar da nossa história e, independentemente das limitações a ela atribuídas, não resta dúvidas de que precisamos de uma melhor compreensão sobre um assunto ainda pouco conhecido. Como então perceber a esquerda brasileira naquele momento?
Divergência é uma palavra que não se pode deixar de citar quando se visualiza a situação da esquerda brasileira naquele momento. Havia três divergências básicas entre as esquerdas:
...uma referente ao caráter da revolução brasileira; outra, às formas de luta para chegar ao poder; uma terceira, ao tipo de organização necessária à revolução
Para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o caráter da revolução brasileira consistia numa revolução em duas etapas:
...a primeira das quais deveria ser "burguesa", ou de "libertação nacional". Congregando uma somatória de classes sociais progressistas, unidas para desenvolver as forças produtivas, a revolução burguesa implicaria superar os entraves impostos ao desenvolvimento nacional pelas relações feudais no campo e pela presença do imperialismo na economia.
A Ação Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e a Resistência Armada Nacionalista (RAN) mantiveram esse esquema analítico da libertação nacional, procurando utilizar a tática da luta armada. O caráter socialista da revolução era proposto por organizações como Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Partido Operário Comunista (POC), Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), e Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), que se opunham totalmente à visão do PCB. Para eles, a revolução só poderia ser socialista. Dentro deste quadro de divergências políticas, a esquerda não se entendia, ao passo que o Estado, notadamente depois de 1968 com o AI-5, consolidava uma máquina de repressão ativa e forte. Os chamados ‘rachas’ dentro do Partido Comunista e das várias organizações de esquerda iriam consolidar então o enfraquecimento da resistência à ditadura.
Inicialmente, Carlos Lamarca participou da VPR que depois, após a fusão desta com o Comando de Libertação Nacional (CLN), transformou-se na VAR-Palmares. Ele entrou várias vezes em conflito com sua organização por divergências políticas e ideológicas. O primeiro conflito que Lamarca teve com a organização ocorreu logo que ingressou na clandestinidade, vez que se viu preso nos aparelhos burocráticos sem ter, como era seu ideal, um campo para que pudesse dar início ao treinamento dos guerrilheiros e assim estabelecer a tão sonhada guerrilha rural. Só algum tempo depois, após o assalto ao cofre do ex-governador Adhemar de Barros é que a organização adquire o terreno que serviria de campo de treinamento. Este possuía duas bases denominadas de Carlos Roberto Zanirato e de Eremias Delizoikov, em referência aos companheiros mortos pela repressão. O núcleo, formado pelas duas bases, fora ‘batizado’ com o nome de Carlos Marighella que havia sido morto em 4 de novembro de 1969. Mas o sonho de Lamarca acabou cedo. Em 19 de abril, o campo foi delatado por um dos membros que ‘caiu’ nas mãos da repressão e somente no dia 31 é que Lamarca e alguns de seus homens — que teriam escapado da morte e da prisão, após dias e dias de perseguição — conseguiram enfim sair do Vale da Ribeira. Essa experiência foi para Lamarca um grande aprendizado, confirmando seus planos de implantação da guerrilha rural, que, segundo ele, era tão viável quanto a urbana. E esse era um dos divisores de água da esquerda, ou seja, a forma de se fazer a revolução.
Alguns grupos achavam que a união de forças das guerrilhas urbanas e rurais era necessária para desencadear o processo de insurreições. Entre estas, pode-se citar aquelas que defendiam os focos de guerrilhas. Carlos Marighella mostrou-se contra esta estratégia, preferindo as colunas móveis em vez dos focos. A VAR-Palmares, da qual Lamarca fazia parte, ressaltava a necessidade de se realizar a guerrilha rural, partindo do princípio de que o ‘elo mais fraco do capitalismo situa-se no campo, pois é lá que se encontram as maiores, contradições. Um ponto comum entre essas organizações foi o fato de, a princípio, não descartarem o papel das massas no processo revolucionário, mesmo que a participação destas ocorresse com maior ou menor intensidade, dependendo da organização.
É interessante lembrar que tanto a organização de Lamarca quanto as outras de esquerda eram urbanas, mas tinham interesse em realizar a guerrilha rural. A guerrilha urbana era indispensável no que se refere à captação de recursos e para dar sustentação à organização, bem como para tornar viável a guerrilha rural, além, obviamente, de exercer uma função de veículo divulgador da causa revolucionária. Mas a história é testemunha de que essas organizações foram desbaratadas ainda nas cidades e não tiveram tempo de empreender o seu projeto de guerrilha no campo. Sabe-se que são vários os fatores pelos quais esses grupos de luta armada foram sufocados, mas a própria divisão entre eles dá a idéia da falta de unidade e, portanto, da sua fragilidade contra um aparelho repressor sólido como o da ditadura brasileira de então.
Um episódio até certo ponto pouco conhecido, que se refere a duas organizações, a ALN de Carlos Marighella e a VPR de Lamarca, exemplifica o que foi mencionado acima: o capitão Carlos Lamarca antes de desertar levou, do regimento no qual servia, armamentos, mas, diante da impossibilidade momentânea de guardá-los, passou-os à ALN. Dias depois, Lamarca irritou-se profundamente ao saber que Marighella pretendia ficar com as armas. Conseguiu recuperar apenas metade do arsenal, e o saldo deste episódio foi a profunda antipatia de Lamarca por Marighella. Isto vem demonstrar o quanto as organizações armadas brasileiras estavam longe de possuir a sintonia necessária ao empreendimento revolucionário.
Assim, mesmo que a película não aborde esse episódio, convém esclarecer que há, no filme, uma preocupação constante em demonstrar Lamarca como líder revolucionário, mesmo que esta interpretação seja passível de contestação. Sérgio Rezende procura resgatar a figura humana de Carlos Lamarca em algumas cenas do convívio com a família, na discussão com os companheiros da organização e no relacionamento com a guerrilheira Clara. O que fica muito evidente é sempre o valor do idealismo presente no personagem, representado por seus atos voluntariosos, e na caracterização dos indivíduos que buscavam romper com uma força institucional muito poderosa, tanto em poder de fogo quanto em controle ideológico de massa, o que sem dúvida, é um poder muito significativo contra um movimento revolucionário que almejava derrubar o governo ditatorial. Lamarca apresenta bem as características das pessoas que abdicaram do convívio familiar em troca de um ideal revolucionário. Isso se manifesta na expansão de todo um drama muito explícito de conflito interior diante de uma realidade desgastante, física e psicologicamente.
O heroísmo é bem representado quando o próprio Lamarca diz no filme: "Só esses interessam. Só esses vão fazer a revolução", referindo-se aos companheiros que resistiam as maiores torturas e não delatavam os membros da organização. Isto reflete a ética aplicada pelo conjunto da esquerda brasileira que exagerava em subestimar a complexidade histórica do Brasil de então. Tal ética transformava o voluntarismo e a capacidade de resistir à tortura nas qualidades máximas do revolucionário ideal.
O filme é bastante fiel à biografia de Emiliano José e Oldack Miranda, utilizando fatos históricos comprovados como, por exemplo, o seqüestro do embaixador suíço, o assalto ao cofre do ex-governador Adhemar de Barros e o suicídio de Iara.
Enfim, o filme apresenta uma trama que tem como personagem central a figura de Carlos Lamarca. No entanto, o contexto histórico da luta armada, da resistência, fica muito reduzido, ou seja, toda a gama de possibilidades de trabalhar o período é relegada a um segundo plano, dando ao filme nuanças de romance biográfico.
O ambiente de tensão é reconstituído no filme em cenas de tortura, de possibilidade sempre presente de prisão, de mortes, de delação, de conspiração, no clima de terror que, institucionalizado, adquire contornos bem visíveis de legalidade e que legitima variados procedimentos em defesa da ‘manutenção da ordem’. Enfim, por uma perseguição implacável não só ao personagem mas a todo aquele que se rebelasse contra o poder instituído. Essas pessoas envolvidas com a luta armada possuíam uma certeza: a de estar fazendo a transformação do mundo. Mas o povo onde andava? Que imagem do povo nos é mostrada no filme? É um povo abstrato, mítico? Um povo totalmente alienado? Como fazer uma revolução em nome de um povo que não se ‘interessa’ por ela? Não seria isto um desprezo pelo povo? O filme não esclarece estas questões. Mas não seriam elas da maior importância? No filme, o povo está presente apenas nas palavras de Lamarca que se lamenta: "se o povo tivesse consciência da condição desesperadora em que vive, acabaria pegando em armas, lutando do nosso lado".
Quanto aos métodos revolucionários, o comportamento de Lamarca, segundo Emiliano e Oldack, revelou uma mudança significativa, por ocasião do seqüestro do embaixador suíço, quando ele teria tomado para si a responsabilidade de manter o prisioneiro vivo, contrariando a sua própria organização. Neste momento, ‘Lamarca estimula a luta interna; acha importante mudar os métodos da VPR para escapar do círculo vicioso’. A própria decisão de Lamarca em ficar no Brasil no momento em que toda a organização havia decidido por sua saída do país demonstra que este estava de fato assumindo a liderança que até então não havia efetivado. Mas um novo momento decisivo irá surgir na vida de Lamarca: seu rompimento definitivo com a VPR, em 22 de Março de 1971, e seu ingresso no MR-8. Ele já havia anteriormente pensado nisto, mas tinha adiado a decisão na esperança de que a situação tomasse outro rumo e que ele pudesse permanecer na organização. Naquele momento, Iara, que já era sua companheira, também muda de organização. Mas, em junho, o MR-8 começa a ser desarticulado em virtude de várias prisões. Lamarca e Iara fogem para Bahia. Todos esses acontecimentos são abordados pelo filme.
A relação de Iara e Lamarca nunca foi fácil, em razão de atividades incompatíveis na organização, que os impossibilitava de estarem juntos, além da difícil vida que levavam na clandestinidade. Foi muito difícil para Lamarca assumir a sua relação com Iara, pois esta agredia os valores da organização, vez que ela não se enquadrava na ‘moral proletária’, exigida pelas esquerdas.
A esquerda brasileira naquele instante caracterizava-se, entre outras coisas, por profundas contradições. Uma delas diz respeito à questão moral do comportamento sexual, que, todavia, não é abordada diretamente no filme. Mas por que o diretor insinua um possível relacionamento entre Iara e Zequinha? Por que ele não enfoca esse ponto abertamente, tratando de questões como: Que postura a esquerda adotava em se tratando dos militantes femininos e homossexuais? Que moral eles possuíam? A mesma moral puritana, hipócrita e preconceituosa das classes dominantes? A insinuação de Zequinha fica, a primeira vista, imperceptível. Pode-se dizer que aparece apenas como um detalhe. Mas é um detalhe significativo que, se não aborda, ao menos insinua uma postura moralista da esquerda brasileira.
Esta expressão de puritanismo da esquerda brasileira foi bem captada por Zuenir Ventura em seu livro - 1968-O ano que não terminou - na seguinte e ilustrativa passagem:
Para um Partido Comunista como o nosso, que ainda na década de 50 promovia nas suas bases casamentos reparadores entre militantes que ousassem dar um mau passo - exatamente como faziam alguns pais retrógrados - aderir aos novos costumes era um inaceitável desvio ideológico. As mudanças de comportamento não eram recebidas como sinais de avanço, mas de retrocesso. Eram sintomas de decadência da burguesia. A idéia de proletariado estava associada à idéia de pureza moral.
A esquerda, por mais contraditório que possa parecer, com interesses tão revolucionários na política, era permeada por vários preconceitos. Entre eles, podemos destacar seu conservadorismo em relação às mudanças de comportamento da época. O caso do relacionamento de Lamarca e Iara pode servir como exemplo de um detalhe sintomático e revelador, pouco explorado pelos estudos realizados até então: o quanto a esquerda achava-se capturada pela moral dominante, não obstante no cenário real de fundo se desenvolvesse a chamada ‘Revolução Sexual’, que foi uma das maiores motivações de 1968 no mundo.
De todos os modos, a relação amorosa entre Carlos Lamarca e Iara é pouco tratada no filme, sobretudo no que concerne ao erotismo, que desaparece, cedendo lugar a discussões puramente existenciais e políticas. Qual seria o motivo para esse aspecto da vida pessoal do personagem não ter sido abordado? Segundo uma reportagem da revista Veja, a esposa de Lamarca teria imposto duas condições para aprovar a elaboração do filme: "Não queria cenas de sexo nem que as forças armadas fossem ridicularizadas". Certamente, esta exigência explica as limitações do filme nesse aspecto, mas é reveladora também de uma moral que vigorava na época e subsiste até hoje. Pode-se concluir que a esquerda não andava em sintonia com as mudanças comportamentais que estavam ocorrendo em todo o mundo, apesar de sua proposta revolucionária.
Após a fuga para Bahia, Lamarca e Iara separam-se pela última vez. Ela fica em Salvador e ele parte para o interior do estado. Lamarca chega, em 29 de junho de 1971, a Buriti Cristalino, pequeno povoado do interior da Bahia, e ali já assume a tarefa de escrever uma peça teatral sobre a exploração tributária para ser encenada pela comunidade local e esta faz sucesso entre a população, algo interessante que o filme não mostrou.
No dia 28 de agosto, a repressão chegou a Buriti Cristalino, trazendo consigo a informação de que Lamarca estava próximo. Não seria difícil reconstituir aquele dia, visto que muitos dos moradores que presenciaram o ocorrido estão lá ainda hoje. Porém, a partir daí, o que se pode reconstituir sobre a trajetória de Lamarca e Zequinha é resultado da pesquisa dos relatórios do Exército e de uma suposição dos fatos ocorridos. Em 17 de setembro, ocorre o fim trágico de Carlos Lamarca e de Zequinha, ambos assassinados pela repressão no interior da Bahia. Para o Exército brasileiro, para além das necessidades de guerra psicológica e de propaganda, foi uma questão de honra o seu aniquilamento. Isto é demonstrado no filme quando um personagem diz: "criaram a cobra no quartel (...) deixaram a fera fugir da jaula".
Os biógrafos — o que é repassado para o filme — resolveram com criatividade a lacuna que possui a história escrita daqueles dias de fuga pelo interior da Bahia, evidentemente com base nos relatórios do Exército, que, infelizmente, os autores não citam.
Fato também interessante é a analogia da última cena, realizada pelo diretor Sérgio Rezende, entre Lamarca e a figura de Cristo, que foi um recurso estilístico muito criticado. Lamarca morto com a cabeça encostada num tronco de árvore, e cujos braços abertos lembravam Cristo na cruz, é um artifício apelativo do filme e talvez desnecessário, especialmente porque grande parte da esquerda, conquanto ‘religiosa’ na sua visão teológica e fatalista da história, era atéia por princípio.
Mas com todas as ressalvas que se possa fazer ao filme, especialmente no que concerne à falta de uma maior atenção ao contexto histórico conjuntural, Lamarca, por si só, é um personagem intrigante — sobretudo ao se considerar a carreira promissora que o esperava e o fato de haver preferido desertar e passar a ser um alvo peculiar da perseguição das forças armadas — o que já torna a película atraente.
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