terça-feira, 27 de novembro de 2007

Jornalismo na linha de tiro

Lúcio Flávio Pinto - Janeiro 2006

O jornalismo na linha de tiro (de grileiros, madeireiros, políticos, empresários, intelectuais & poderosos em geral). Belém: Edição Jornal Pessoal, 2006. 513p.
Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos & molhados — disse Millôr Fernandes certa vez. Não é bem assim, mas como a frase é inspirada, convém usá-la. Ainda mais porque, nestes nossos tempos de sincronismo e cinismo, os mais jovens são tentados a achar que jornalismo é marketing & relações públicas. Quando não, um ofício que se exercita à frente de um computador, navegando pelo mundo virtual sem o risco de furacões e tempestades. Tudo é asséptico e inodoro. Mesmo o jornalismo investigativo consiste em debulhar dossiês e repassar material de fonte secundária. O bom jardineiro é aquele que encontra orquídeas no turbilhão de mato que germina como praga na horta do google.
O jornalismo é muito mais do que tudo isso. Sou tentado a buscar em João Cabral de Mello Neto, o diplomata que entendeu muito mais de fome & seca nordestina do que o retirante-operário paulista Luiz Inácio Lula da Silva, a inspiração para a metodologia desse aprendizado. Aprendemos com as pedras, trilhando um caminho sofrido e trepidante, que talvez nos conduza a Canossa se os personagens das histórias que relatamos, ao invés de reagir com palavras duras, agressões físicas ou balas, mais duras ainda, reconhecerem que é assim que se constrói a história e é assim que damos nossa contribuição ao que interessa nessa estrada de Damasco: a memória dos homens (e mulheres, no aposto populista do ritual politicamente correto).
Estruturei este livro sem desnaturar o que lhe constitui o conteúdo: o jornalismo. Não considero que jornalismo seja um gênero maior ou menor. É bom ou ruim, conforme é realizado. Se o jornalista cumpre a tarefa que lhe cabe, centrando-a nos fatos, mas bem atento às suas circunstâncias, estará fornecendo matéria-prima para um sem-número de outros aproveitamentos. Nessa árvore frondosa colherão seus frutos o cientista político, o sociólogo, o economista, o antropólogo, o psicólogo & etc., neste geral incluindo-se o personagem que mais interessa: o cidadão.
Nosso oxigênio é a verdade. Sem letra maiúscula, sem grandiloqüência, sem heroísmo. Para que ser “escravo da verdade” vá além da figura de retórica usual, temos que encará-la como algo bem natural para quem decide ser jornalista. Quando saímos para a cobertura de um acontecimento previamente agendado, quando recebemos uma “visita na redação” ou quando somos despertados na madrugada por uma convocação ao desconhecido, a primeira arma que devemos pegar é o sismógrafo dos fatos. Esse objeto, evidentemente, não existe. Mas está dentro da nossa cabeça, plenamente visível, integralmente materializado. Se divisarmos os fatos na rotina da pauta ou nas circunstâncias descontroladas de uma missão de enviados especiais, iremos com segurança atrás da verdade.
Nesse caso, a veremos. Talvez não a entendamos, porém. Por isso, é necessário estar sempre em ronda pelos vários compartimentos do saber e do fazer humanos. Batendo um papo com um cientista, indo a um local de acesso público, consultando o documento chato que todos citam e raros lêem, enfrentando aquele livro indigesto, cheio de números frescos à espera de quem lhes dê vida. Seguindo o conselho do sábio Gentil Cardoso, o maior dos filósofos a serviço da paixão nacional, o futebol: é indispensável pedir e se deslocar. Quem pede tem preferência, quem se desloca recebe (a bola, no caso).
O jornalista é aquele profissional que mais desenvoltamente pode se deslocar. Um dia ele está na entrevista coletiva com o presidente da República. No outro, “cobre” tiroteio na favela mais barra-pesada da cidade. Passa dias e meses na sua base operacional. Subitamente, amanhece na China. Se for um bom profissional, jamais se limitará a cumprir um roteiro turístico. Enquanto o turista rico pode ir a todos os points caros, ele pode chegar a lugares interditados a todos os dinheiros. Bunkers de traficantes, por exemplo. Ou mansarda onde o famoso misógino se esconde. Pode até obrigar a que lhe abram as portas de dependências proibidas ou ao gabinete de poderosos furibundos. Eles mandariam o importuno para aquele lugar se não tivessem que pensar nas conseqüências desse ato. Esmurram paredes, tomam tranqüilizantes ou simplesmente vestem a máscara se temem o intruso audacioso. Mas o recebem.
O que há a temer? Por que ceder? A causa é uma só: a opinião pública. Se cumprimos decentemente nosso ofício, somos seus auditores, seus porta-vozes, seus emissários. Por nosso intermédio, é o povo quem quer saber. O que soubermos, a ele comunicaremos. Não principalmente em palestras em circuito fechado ou em recepções, mas da forma mais pública e democrática possível: através do veículo de comunicação de massa, de maior ou menor potencial de difusão das informações apuradas. Queremos que essas informações estejam acessíveis o mais rapidamente possível para que, cada um sabendo sua hora e sua vez, faça o que precisa fazer. Fazer — no tempo certo, com a informação adequada — a história. O jornalismo é isso: a ante-sala dessa dependência mais vasta da criação humana. Só por isso nos temem. Só por isso nos abrem as portas mais maciças. Se não as abrem, as arrombamos. Sabemos que uma porta fechada costuma esconder a verdade.
É este o jornalismo que tenho feito. Nasci para fazê-lo, acho eu, porque meu pai fez jornalismo, quatro dos meus sete irmãos são jornalistas e me tornei jornalista desde quando pude agir com base na razão operativa. Fiz jornal de classe, jornal de bairro, jornal de clube e, finalmente, jornal profissional, a partir dos 16 anos e até agora, 40 anos depois. E fiz jornalismo num lugar que dele mais precisa para fazer sua própria história: a Amazônia. Não a história que já vem pronta, trazida de fora (São Paulo ou Nova York, Brasília ou Pequim) por quem decide o que deve ser a Amazônia dos nossos dias. Uma Amazônia cada vez mais sem floresta, sem água, sem seu primeiro habitante. Uma Amazônia muito parecida com a que esses bwanas criaram na África e na Ásia. Uma Amazônia cada vez menos amazônica.
Quando descobri a urdidura do enredo, me revoltei. Neste livro documento o rastro dessa revolta, as marcas da minha indignação, as pistas do agressor, seu ponto de fuga, seu rito da agressão. A verdade é sempre subversiva numa região onde a verdade, talvez, só venha a ser recuperada quando se tornar elemento de uma arqueologia inútil. A verdade não tem que estar na agenda do cidadão. É esse o desejo dos poderosos, locais e metropolitanos. Contra eles me insurgi. Meu jornalismo é o produto dessa insubmissão.
Espero que seja útil tanto a jornalistas quanto a todo leitor que se dispuder a participar dessa travessia (no sentido bíblico mesmo). A canoa de textos podia ser melhor, mais confortável e segura. Mas escrevendo este livro em meio a uma guerra judicial, tentando escapar ao destino de Prometeu tropical, isto é o que pude fazer, na urgência e na emergência de fazer a verdade. “Isto” é apenas isto. E carrega consigo minha alma, meu coração e, quem sabe, o hálito do meu amor. A matéria-prima que me mantém vivo e revoltado, que me faz acreditar no futuro e trabalhar pela utopia.
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Este texto é a apresentação do livro Guerra Amazônica. Também publicado em La Insignia.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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