quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Artigo

Somos todos libaneses
Zélia Leal Adghirni
Foi preciso uma guerra no Líbano para descobrir quanto somos libaneses. Há oito milhões de libaneses de origem, ou descendentes, no Brasil. Mais do que no próprio Líbano. As primeiras imagens do resgate dos brasileiros, via televisão, surpreenderam a opinião pública. Seriam mesmo brasileiras aquelas pessoas tão “estranhas” desembarcando nos aeroportos internacionais do país?

Mulheres envoltas em véus islâmicos, homens com sotaques carregados, jovens e crianças chorando de emoção e agradecendo por estar “de volta ao meu país”. Foram 18 vôos trazendo cerca de três mil pessoas Na última segunda feira, dia 21, chegou o ultimo avião da FAB com 102 passageiros, encerrando a missão brasileira que não se resumiu ao resgate.

Toneladas de remédios e mantimentos também foram transportados pelas asas da FAB, como doações do Ministério da Saúde e da comunidade libanesa de São Paulo. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, foi pessoalmente levar apoio à população desamparada pela violência do conflito que pegou desprevenidos milhares de civis.

A verdade é que o ataque israelense ao sul do Líbano revelou a proximidade de nossos povos aparentemente tão distantes pela geografia e pela cultura, mas cuja história de diáspora foi fundamental para a formação do povo brasileiro.

A trajetória das migrações nos últimos séculos, reforçadas no início do século XX com as guerras na Europa, fez de nós o povo de todos os povos. Somos libaneses, sírios, judeus, poloneses, alemães, italianos, espanhóis e sobretudo, portugueses, africanos e índios. Nosso país é um mosaico de etnias e, apesar de algumas exceções, temos convivido bem com nossas diferenças.

Todas elas de certa forma contribuíram para a riqueza e a pluralidade de nossa cultura. Os libaneses, conhecidos popularmente como turcos no Brasil (confusão criada pelo Império Otomano) estão entre os autores mais expressivos da língua portuguesa. Só para citar alguns, falo de Raduan Nassar, Antonio Houaiss e Salim Miguel.

Com que prazer li há pouco tempo o romance “Nur na Escuridão”, obra premiada do escritor libanês/catarinense, Salim Miguel, que conta a saga de sua família aqui chegada em 1927. Nur, que em árabe significa luz, foi a primeira palavra que o pai de Salim aprendeu em português. Luz é o que precisamos agora num universo conturbado por conflitos, onde a relação de forças é cada vez mais desigual.

Há quem diga que se trata de um conflito de civilização. De um lado o ocidente, civilizado, e de outro, o oriente, bárbaro, ameaça à humanidade. Confunde-se árabes com muçulmanos. O mundo árabe compreende 22 estados, cerca de 250 milhões de habitantes, divididos entre o norte da África, o Oriente Médio e o Golfo Pérsico. Nem todos os países árabes são muçulmanos como nem todos os muçulmanos são árabes. Irã, Turquia, Paquistão e Indonésia, que estão entre as maiores nações muçulmanas, não são países árabes.

Milhares de palestinos, libaneses e sírios professam a fé cristã apesar de serem árabes. E a Turquia, um país muçulmano não árabe, optou pela laicidade do Estado, mesmo que nos países islâmicos não haja separação entre os poderes religioso e político.

Ainda que o Islã tenha nascido na Arábia Saudita pela revelação de Alá ao profeta Mohamed, os árabes representam hoje uma minoria num universo de 1,3 bilhões de fiéis.

Difícil de entender estas diferenças quando se confunde árabe com muçulmano e muçulmano com terrorista. Como se a morbidez e fascinação pela morte fossem uma prerrogativa única do Hamas ou do Hezbollah. Parece que todos esqueceram os suicídios coletivos de algumas seitas americanas ou certos atos de fanatismo religioso que, em nome de Deus, lançam gás tóxico em metrôs ou ateiam fogo às próprias roupas.

Apesar do desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação que colocam a realidade de outros povos dentro de nossas casas, o mundo árabe é ainda prisioneiro de um sistema de representações enquadrado por todo um conjunto de forças culturais e políticas que exploram as diferenças como uma ameaça aos padrões ocidentais.

Segundo Edward Said, um intelectual americano de origem palestina falecido há três anos, os árabes são vistos como “libertinos montados em camelos, terroristas narigudos e venais cuja riqueza não merecida é uma afronta à verdadeira civilização”.

Esta visão estereotipada é cada vez mais reforçada pela mídia, principalmente depois que os soldados do presidente Bush mergulharam no atoleiro do Iraque, de onde parece que não sairão tão cedo.
Enquanto isso, a trégua no sul do Líbano não garante a paz. A ONU busca desesperadamente uma saída, mas a maioria dos países que compõem a organização parecem resistir à idéia de enviar soldados para a região. O Brasil teria sido consultado para integrar a missão da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil), mas a idéia não seria politicamente correta diante da comunidade libanesa a quem o governo tanto apoiou durante os 34 dias de guerra e que, de certa forma, continua apoiando.

Celso Amorim recebeu em seu gabinete uma delegação do Comitê de Solidariedade aos Povos Árabes que pediu o rompimento das relações do Brasil com Israel. O simples fato de ser recebida pela maior autoridade brasileira de relações exteriores deixa satisfeita a comunidade que se sente reconhecida em seu protesto.

Dificilmente o governo assumiria uma posição radical neste momento. Em período eleitoral, Lula prefere agradar gregos e troianos, aliás, árabes e judeus, duas das maiores comunidades de origem estrangeira que aqui chegaram e criaram raízes. Dentro de nossas fronteiras, somos todos iguais.
Fonte Blog do Noblat

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