segunda-feira, 3 de julho de 2006

Artigo

O Governo Lula e as eleições de 2006
Alberto Aggio - Julho 2006

A perspectiva de esperanças do início do governo Lula não é a mesma que o finaliza. Por todos os fatos e desdobramentos, e apesar do bom desempenho da economia e de sua posição de liderança nas pesquisas, uma possível vitória nas próximas eleições talvez se configure como mais problemática ou mesmo temerária do que a primeira.
É um consenso básico entre os analistas a avaliação de que o governo Lula é parte constituinte do novo ciclo político que se abriu com o governo Collor e teve continuidade nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso. Lula não alterou a reorientação mais geral que se estabeleceu desde então: da centralidade do papel do Estado no processo do desenvolvimento para a liberalização quase integral da dimensão econômica. Com Lula, a economia não sofreria quaisquer constrangimentos vindos de outras dimensões da vida social. Essa identidade na política se explica em função das origens similares entre PT e PSDB. Como afirma
Luiz Werneck Vianna, “a linguagem comum dos dois grandes partidos que surgem em São Paulo a partir da redemocratização do país é a da sociedade civil. Para o primeiro, dominada pela gramática do social, e pela do mercado, a do segundo”. Por essa razão, segundo o mesmo estudioso, PT e PSDB sempre foram partidos que procuraram afirmar suas identidades na critica à história da modernização brasileira, cujo eixo de referência e valores se assentavam na idéia de “Nação, da precedência do público sobre o privado e de uma concepção do Estado como lugar da representação da comunidade nacional”(Esquerda brasileira e tradição republicana. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 9).
Essa identidade não era tão evidente a olhos desatentos. Mesmo porque o PT não apenas guardava (e ainda guarda) dentro de si os setores mais radicalizados do velho e do novo revolucionarismo latino-americanista, como havia sido um dos maiores críticos do programa de privatizações empreendido nos governos FHC. Expressão vital do “liberalismo dos de baixo” no Brasil da transição democrática, o PT fez o seu caminho não pelas torrentes do discurso ideológico, mas sim pela extraordinária sagacidade em se projetar como ganhador de eleições. A retórica e a política do custo/benefício orientaram o caminho da conquista dos poderes da República até se alcançar a vitória maior.
Na reta final da campanha de 2002, pragmatismo, senso de poder e controle partidário orientaram a decisão do PT pela continuidade da política macroeconômica do governo anterior. Estaria selada aí a aliança com os setores do grande capital nacional e internacional, o que garantiria condições de governabilidade não apenas para o início do governo como para a sua continuidade. Tais condições não seriam abaladas em momento algum, nem mesmo na crise que viria se abater sobre o governo em função das denúncias de corrupção.
O comportamento dúbio e vacilante da oposição explica-se, uma vez que PSDB e PFL, principalmente, não poderiam contestar integralmente o governo Lula em razão de uma identidade programática explícita. Por outro lado, a opção do PT em governar a partir dessa “aliança surda” – que lhe garantia o apoio das elites econômicas – e da compra de parlamentares no Congresso – que lhe mantinha a diferenciação operativa em relação ao PSDB, principalmente – não lhe pareceu um risco fatal em nenhum momento, já que o essencial não poderia ser quebrado a não ser em circunstâncias dramáticas.
Nesse contexto, o governo Lula não é senão o governo de um partido de esquerda envolto num paradoxo sem fim. É o governo de uma esquerda que vendeu sua alma e não pode olhar nem para trás nem para si mesma. Sua opção política ao buscar governabilidade e consolidar-se no poder foi letal para a relação entre esquerda e democracia. Mas pode-se suspeitar que o estrago tenha sido maior. Essa opção atingiu os frágeis alicerces da fidelidade do povo brasileiro às instituições democráticas construídas com tanto sacrifício depois da ditadura: roubar para se manter no poder é estilhaçar por inteiro as instituições da República e trabalhar contra a possibilidade de a cultura política brasileira se conjugar em definitivo com a democracia.
Em meio à aguda crise que viveu o governo Lula, um dos seus mais importantes intelectuais/dirigentes, o atual ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, havia afirmado que, naquele momento, “não via muita razão em alguém votar no PT”, tais eram as evidências de corrupção no até então maior partido de esquerda do Ocidente. Na oportunidade, Tarso Genro chegou a defender uma “refundação do PT” e teria sido afastado da presidência interina do partido, entre outras coisas, por essa postura.
Agora, com Lula à frente das pesquisas de intenção de voto e sem realizar o tal processo de refundação (o que foi feito não passou de um “ajuste burocrático”), o PT parece avançar em direção à estabilização da
cultura política de escolha racional, que tão bem lhe serviu em sua ascensão, para estabelecer novas alianças e apoios à reeleição do presidente Lula, entre eles o do luminar ex-ministro e deputado Delfim Netto (PMDB), com sua estratégia de “déficit nominal zero” como condição para a retomada do crescimento econômico. Quem poderia imaginar uma “ampliação” das alianças petistas a esse nível!
Parece claro assim que Lula e o PT conseguiram emergir da crise de forma mais racional e pragmática do que antes. A aliança político-social montada não sofreu abalos significativos e o assistencialismo oficial responde por todo o resto. Quem sonhava ou ainda sonha com o “petismo” (seja lá o que isso signifique), é bom que desperte. Em todo caso, se a afirmação de que o governo Lula foi o primeiro governo de esquerda na história do país já era algo questionável, o segundo certamente não será.
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Alberto Aggio é professor livre-docente da Unesp/Franca, autor e organizador de Gramsci: a vitalidade de um pensamento. São Paulo: Unesp, 1998, e Pensar o século XX: problemas políticos e história nacional na América Latina. São Paulo: Unesp, 2003 (com Milton Lahuerta). Este texto também foi publicado em La Insignia.

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