domingo, 9 de abril de 2006

O dia do "não fico"

06/04/2006
Na coluna anterior critiquei "en passant" a decisão de José Serra de renunciar à Prefeitura de São Paulo para disputar o governo do Estado na eleição de outubro. Surpreendeu-me o número de pessoas que escreveu para comentar o episódio. Meus leitores dividiram-se em dois grupos mais ou menos de mesmo tamanho: o dos que elogiaram apaixonadamente a atitude do ex-prefeito e o dos que o xingaram à farta.
Volto ao assunto por duas razões. Trata-se, pela amostra que tive, de tema polêmico e que desperta o interesse de parcela significativa de meu público. E, mais importante, acho que o comportamento de Serra é emblemático das dificuldades que o país atravessa no universo da política.Antes de prosseguir, devo dizer que nada tenho contra o ex-titular do Executivo paulistano. Muito pelo contrário, considero Serra bastante preparado.
É um dos poucos políticos capazes de apresentar teses coerentes e relativamente bem desenvolvidas acerca da inserção do Brasil no mundo de hoje e indicar soluções teoricamente factíveis para tentar melhorar nossa triste posição. Se não chega a ser um projeto de nação, é bem mais do que a meia dúzia de palavras de ordem ralas que a maioria dos postulantes a cargos públicos costuma repetir.
Acho que Serra não se sairia mal no Planalto. Possivelmente seria melhor presidente do que prefeito ou governador. Suas idéias são, por assim dizer, mais federais do que municipais ou estaduais. Aliás, surpreendeu-me negativamente a falta de um proposta articulada para São Paulo, mesmo depois de ter se sagrado prefeito. Desconheço suas idéias acerca do governo do Estado, se é que ele as tem.
Tais considerações essencialmente simpáticas ao ex-prefeito não me impedem de considerar grave o fato de ele ter quebrado um compromisso assumido para com a cidade. No dia 14 de setembro de 2004, o então candidato do PSDB ao Executivo paulistano, em sabatina pública organizada pela Folha, subscreveu a seguinte declaração que lhe fora apresentada pelo meu colega e amigo Gilberto Dimenstein: "Eu, José Serra, comprometo-me, se eleito prefeito do município de São Paulo no pleito de outubro de 2004, a cumprir os quatro anos de mandato na íntegra, sem renunciar à prefeitura para me candidatar a nenhum outro cargo eletivo".
Quebrou o voto no 15º de seus 48 meses de gestão, deixando em seu lugar o controvertido Gilberto Kassab.Muitos dos leitores que defenderam a atitude de Serra vieram com argumento da "Realpolitik". As circunstâncias se alteram, e políticos, mais do que qualquer um, devem saber reagir a essas mudanças. Outros preferiram o tucanismo explícito. Para eles, Serra tinha o dever de candidatar-se, para evitar que nomes como os de Paulo Maluf, Marta Suplicy e Orestes Quércia conseguissem chegar ao palácio do Bandeirantes. Para esses, o compromisso firmado pelo ex-prefeito não era nem mesmo válido, pois jamais passou de uma armadilha montada pelo Dimenstein.Discordo de todas essas teses.
É claro que não se faz política de verdade apenas com princípios. Por vezes, precisamos mesmo nos curvar a imperativos de realidade. Mas daí não se segue que todo e qualquer compromisso possa ser quebrado ao sabor das conveniências. Tanto o pragmatismo radical como o principismo irrefletido são perigosos e merecem repúdio. E é justamente a capacidade de dosar corretamente esses dois elementos que caracteriza a sabedoria política.Quanto mais avalio a situação de Serra mais me convenço de que ele agiu muito mais para satisfazer aos seus interesses e, vá lá, os do partido, do que tendo em vista o bem comum.
Não me parece correta a versão que os tucanos tentam fazer circular de que Serra partiu para o sacrifício pessoal ao abandonar a prefeitura para tentar o governo. É verdade que ele trocou o líquido e certo por uma incógnita, mas fê-lo amparado por pesquisas de opinião que lhe dão uma vantagem para lá de sólida na sucessão paulista. Não é preciso buscar muito longe a prova de que a posição nas sondagens foi determinante para a decisão do ex-prefeito. Serra só perdeu para Geraldo Alckmin a indicação do PSDB para disputar a Presidência da República --prêmio bem mais cobiçado do que o governo do Estado-- porque hesitou diante da superioridade de Lula nas pesquisas. Quando o realmente incerto apareceu, ele pestanejou.
Daí decorre que sua disposição para o sacrifício era pelo menos relativa.Outro ponto a destacar é a instrumentalização do mandato. Serra, ao contrariar seu compromisso, converteu o mandato de prefeito num trampolim para outro cargo. É claro que tudo o que um político faz ou deixa de fazer tem como objetivo mais ou menos longínquo credenciar-se para disputar postos mais elevados. Nesse contexto, toda função pública torna-se um degrau para a próxima. Só que o ex-prefeito, pulou patamares demais. Converteu o que deveria ser a carreira de uma vida numa aviltamento da palavra empenhada. Num intervalo de pouco mais de um ano rasgou sua assinatura e lançou-se exatamente na aventura que prometera não tentar.Como contraponto, gostaria de lembrar que, se um comerciante anuncia determinada promoção e não a cumpre, o cidadão pode, amparado no Código do Consumidor, recorrer à Justiça para fazer com que o prometido na peça publicitária seja de fato executado. Por que com políticos deve ser diferente?
Código do consumidor neles!Acrescente-se, ainda, que, como a realidade agora o demonstra, era bastante oportuna a iniciativa do Dimenstein de tentar obter o compromisso, em nome dos interesses da cidade. Os vários paulistanos que votaram em Serra acreditando que ele manteria sua palavra e não os abandonaria em poucos meses podem sentir-se traídos.Não procede, portanto, a acusação de que Dimenstein armou uma arapuca para o então candidato a prefeito. Tendo a ser existencialista aqui. Sempre esteve em poder de Serra escolher o que faria. Ele assinou o documento porque quis. Poderia ter desconversado ou simplesmente sido honesto e afirmado que não tem o dom de prever o futuro, qualificando até como leviano qualquer político que se aventurasse nesse gênero de promessa. Possivelmente ele teria perdido alguns votos, mas não creio que isso teria lhe custado a eleição.Ainda mais problemática me parece a tese de que a quebra do compromisso se legitima para impedir a eleição de determinados nomes tidos como inaceitáveis.
Não vou entrar nos méritos e deméritos das pessoas listadas. O que me interessa aqui é o caráter antidemocrático do argumento. Nas entrelinhas ele está basicamente afirmando que não é a vontade da maioria dos eleitores que deve definir o resultado de uma eleição. Já de antemão define-se que só pode triunfar no pleito o candidato que alguns de nós consideram "o melhor". O registro aqui deixa de ser o da democracia e passa a ser o da aristocracia ou, por que não, da tirania.Vale ainda notar que o mesmíssimo raciocínio pode ser invocado contra Serra, e com o agravante de afastar-se ainda mais da vontade popular. A dupla renúncia tucana, afinal, deixou o Estado e a cidade de São Paulo nas mãos da dupla Claudio Lembo-Gilberto Kassab, ambos do PFL, partido macérrimo de votos em São Paulo e contra o qual a tese do voto útil poderia ser perfeitamente aplicada. Evitar a simples possibilidade de um Quércia voltar ao Bandeirantes vale entregar efetivamente 3/4 do mandato de prefeito a Kassab? Como não existem respostas inequívocas a questões como essa, os gregos inventaram lá pelo século Vº a.C. um sistema pelo qual os governados escolhiam diretamente seus governantes. Ele está longe de ser perfeito, mas nos poupa de um monte de dores de cabeça.O que mais me incomoda na atitude de Serra, porém, são suas implicações sobre o aprendizado democrático.
O rompimento do compromisso reforça a idéia já tão disseminada na sociedade de que políticos não tem palavra. Não hesitam em prometer qualquer coisa para obter alguma vantagem e são rápidos em deixar de lado seus compromissos quando isso lhes convém. Esse é e sempre foi um comportamento comum no meio, mas o problema se torna especialmente grave quando é adotado também por homens públicos diferenciados como José Serra. Depois do ocaso ético em que chafurdaram as principais lideranças do PT, bons quadros quebrando escancaradamente suas promessas é tudo o que o país não precisa. É mais um largo passo rumo à perigosa indiferenciação entre os políticos. Se todos são iguais --e ruins-- já não valeria a pena apostar na democracia. Até admito que políticos andam cada vez mais parecidos --e de forma pouco abonadora. O problema é que as alternativas fora da democracia são todas muito piores.

Um comentário:

Anônimo disse...

Todos os políticos prometem e prometem, e não cumprem nada o Serra não é a excessão...