domingo, 27 de novembro de 2005

Entrevista de Marilena Chauí

JORNA BRASIL DE FATO
São Paulo - BrasilDomingo, 27 de Novembro de 2005 Edição Nº 143 - De 24 a 30 de novembro de 2005

ENTREVISTA
Marilena Chauí ataca a imprensa e diz que governo Lula não é de esquerda Baby Siqueira Abrão, Marcelo Netto Rodrigues e Nilton Vianade São Paulo (SP) e da Redação

Desde que Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o poder, a filósofa Marilena Chauí vive sob forte ataque da imprensa tradicional. Que diz, entre outras coisas, que ela preferiu o silêncio a ter de rebater as acusações que pairam sobre o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores (que ela ajudou a fundar). Aquela mídia não se conforma que ela não abra a boca aos seus repórteres. E, por isso, acusam-na de omissão intelectual.Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato - uma das únicas publicações com as quais Marilena concorda em falar - a filósofa prova que, ao contrário do que diz a imprensa convencional, sua capacidade crítica subsiste a conveniências partidárias. Em suas palavras, o que temos “não é um governo de esquerda”; o grupo de José Dirceu “não tinha a menor noção de revolução”, e Lula peca porque acha que é “possível governar concedendo um pouco para cada uma das classes sociais”, em vez de dizer: “Eu vim em nome da classe trabalhadora, e é com eles, e para eles, que eu vou governar”. Quanto à crise, Marilena resume: é “miudinha como a ‘politiquinha’ brasileira”.
Brasil de Fato - Como vê o governo Lula, e qual a sua avaliação sobre a conjuntura atual?
Marilena Chauí - Infelizmente, não é um governo de esquerda. Porque o elemento fundamental que faria com que ele se abrisse como um governo de esquerda não é como o PSOL diz: a ruptura com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o abandono de várias políticas econômicas. O gesto que definiria este governo como de esquerda teria sido a reforma tributária para a redistribuição da renda. Lula marcaria a sua posição se dissesse: “Eu vim em nome da classe trabalhadora, eu vim em nome dos movimentos sociais e populares, e é com eles, e para eles, que eu vou governar”. Então, a ausência deste elemento faz com que a política econômica, a lentidão das políticas sociais, a falta de coordenação entre vários dos ministérios assumam importância maior do que efetivamente têm.
BF - Mas por que os aspectos negativos aparecem tanto?
Marilena - Justamente porque seu elemento nuclear, que seria a redistribuição da renda, não se realizou. Assim, critica-se pelas bordas e não vai ao núcleo. Mas, se você faz uma análise comparativa, estes três anos de governo fizeram nas áreas social e de infra-estrutura mais do que os oito anos do PSDB. Isto é indiscutível, os números estão aí. Mas, isso não define o perfil do governo, porque dizer que você fez mais do que o PSDB não quer dizer muita coisa.
BF - Mas como é possível fazer uma reforma tributária progressiva sem se ter uma maioria de esquerda no Congresso? Há um caminho dentro da democracia formal no Brasil?
Marilena - Não. De jeito nenhum. Qual é a minha expectativa, e por que eu sou petista, e por que com todos os desastres deste partido, eu continuo nele? Porque acho que temos um processo histórico lento a realizar, que começou muito antes de mim, e que os meus bisnetos vão finalizar. É um processo pelo qual você vai desalojando a classe dominante dos seus principais pólos de poder. Você não fará mudanças com a sociedade brasileira do jeito que ela é - vertical, autoritária, hierarquizada e violenta. Muito menos com a classe dominante que nós temos: a mais primitiva e a mais bárbara que se possa imaginar. Nestas condições, em termos de mudança estrutural, você fará muito pouco. Mas o que se pode fazer, e isso é a tarefa de um partido de esquerda, é ir ganhando espaços de poder e de força para ir desalojando essa classe dominante de postos estratégicos na sociedade, na política e na economia. Isso envolve não só as questões econômicas e sociais, mas um trabalho no plano da desmontagem da ideologia. E é um processo que só os movimentos sociais e partidos de militância à esquerda podem fazer.
BF - Faz tempo que o PT deixou de ser um partido de classe, de militância e foi ganhando característica idêntica à dos partidos tradicionais. A senhora ainda acredita que o PT seja capaz de aglutinar os movimentos sociais em torno de um processo de transformação, mesmo lento?
Marilena - Acredito. E penso que o passo mínimo neste sentido é a primeira grande mudança da direção. Vai ser a primeira vez, nos últimos 15 anos, que não se terá uma direção de uma tendência majoritária. A isso, soma-se o fato de a militância ter ido votar, de ter formado grupos de discussão, de ter proposto a refundação do partido. Tudo isso indica que o PT que havia se tornado vai desaparecendo.
BF - Mas a descaracterização do PT não tem mais a ver com uma nova concepção ideológica?
Marilena - Acho que não. É preciso lembrar a formação do PT, ou seja, que é um partido extremamente heterogêneo. Que tem a esquerda que estava na clandestinidade, ex-guerrilheiros, ex-comunistas, ex-trotskistas, as comunidades eclesiais de base e a teologia da libertação, o novo movimento sindical, movimentos sociais como o das mulheres, dos negros, dos índios, dos homossexuais, que se aglutinavam em torno de um eixo norteador fundado na noção de que os direitos sociais - a justiça e a igualdade econômica e social - eram o fundamental.
BF - E o que produziram tantas diferenças?
Marilena - Isso significou que dentro do PT existiam inúmeras concepções muito diferentes de partido, da política, da relação com a sociedade, da relação partido-movimento, da relação partido-institucionalidade. E a concepção, que de alguma maneira foi vitoriosa através da Articulação, que, num determinado instante, passou a ter o controle do partido, era representada por gente que veio de partido comunista, de célula trotskista, de célula guerrilheira, e que tem, portanto, a concepção clássica do partido de vanguarda. Eu não atribuo isto ao Campo Majoritário, que ao meu ver, é uma coisa abstrata, fictícia, é um nome fantasia que foi dado num instante em que havia filiados de tudo quanto era jeito, era uma coisa inteiramente eleitoral (...) então, eu vou deixar de lado esta história do Campo Majoritário.
BF - A descaracterização do PT foi, então, obra da Articulação?
Marilena - A partir da concepção da Articulação, não se tem mais um partido de quadros, de militância, de filiados. E esta vanguarda se considera não só a portadora da verdade do partido, mas a detentora do poder dentro dele. E a única maneira que ela é capaz de pensar isso é através da burocratização. Então, se se desmonta a Articulação, o que aconteceu com o PT vai ser desmontado também.
BF - Nessa concepção de partido de vanguarda, faz sentido a hipótese de que José Dirceu foi pego pavimentando o caminho para um processo revolucionário?
Marilena - Ah, não, de jeito nenhum (ri com indignação)! Esta visão é uma mescla do que uma parte da esquerda pensava nos anos 1950 e final dos 1960. Não, não, não havia a menor noção de revolução neste caminho. E eu nem personalizo na figura do Zé Dirceu. É um grupo que identifica a política e a tomada de poder dentro do aparelho do Estado. Portanto, não se coloca a questão da revolução, nem de uma transformação social que seria a condição da própria transformação política. É a idéia de que através do aparelho de Estado são produzidas as mudanças na sociedade e na economia. Isso não é inovador e é profundamente autoritário.
BF - A saída de Plinio Arruda Sampaio do PT foi acertada?
Marilena - Ele poderia sair depois do processo eleitoral. Achei inconcebível que ele se retirasse antes. É preciso avaliar o quanto esta retirada prejudicou o Raul Pont, já que a diferença para o Berzoini foi mínima. E se o Plinio não tivesse saído, as chances de vitória seriam maiores.
BF - O PSOL é avanço ou retrocesso?
Marilena - Nem uma coisa, nem outra. O PSOL representa uma das tendências clássicas da esquerda brasileira, que é a política dos intelectuais. Na história política do Brasil, isso é uma constante como aquela idéia do Antonio Candido de que os intelectuais formam o partido do contra. Faz parte da tradição brasileira, e é importante que haja isso. Eu acho que os intelectuais devem se manifestar no contra e à esquerda. Mas o PSOL tem um problema adicional, que é a proposta de que ele, efetivamente, faça oposição. Só que, enquanto o PT fez um percurso no qual chegou, finalmente, à figura do político profissional, aos parlamentares, aos prefeitos, aos governadores, o PSOL já nasce com estes políticos profissionais, senador, deputado, com gente que faz parte do jogo.
BF - O governo Lula tem se mostrado fraco em decisão política. A senhora imagina que um eventual segundo mandato Lula seja mais firme? E como a senhora vê a iniciativa da Assembléia Popular?
Marilena - Do mesmo modo que eu não compartilho a concepção política da Articulação - que também é de uma grande parte da esquerda brasileira - eu nunca considerei que o PT tendo prefeituras, governos de Estado, chegando à Presidência, significasse mudança estrutural, porque isso seria abdicar do meu marxismo. Eu considero que ter um conjunto aguerrido de parlamentares, prefeituras como a da Luiza Erundina ou a primeira prefeitura do Olívio Dutra, são elementos que operam em duas direções. A primeira é um reforço e um estímulo à auto-organização, ao desenvolvimento, à ampliação e à participação dos movimentos sociais. A segunda, é assinalar para as classes populares, para a classe trabalhadora, para a grande massa da população brasileira que se pode, através da política institucional, realizar uma série de ações que garantam um mínimo de transformação das condições econômicas e sociais. E não mais do que isso. Ou seja, coloco tudo isso no campo do acúmulo de forças. É na luta social, é na luta política de participação como na Assembléia Popular, ou do MST, que a mudança virá.
BF - Como avalia as críticas ao governo Lula?
Marilena - O que me preocupou sempre, desde a posse, é que tanto a militância como a esquerda só tiveram dois comportamentos. Um foi dizer que “está tudo errado, é uma traição, não serve, vou romper, e já vou criticar no segundo dia”. Em um mês, Lula não conhecia nem quais eram os corredores pelos quais tinha que andar dentro daqueles prédios. Outra é a de que, uma vez que o PT está no governo, é ele que vai solucionar todos os problemas, e cada vez que não fizer isso, eu grito. Ao invés disso, o fundamental é que você incessantemente seja capaz de exigir, criticar, aceitar e trabalhar no convencimento de coisas que precisariam ser feitas e que foram feitas e, ao mesmo tempo, empurrar o governo para a realização deste mínimo e deste acúmulo de forças que ele tem de fazer. Mas não. O que eu vi foi a crítica radical e a apatia. E neste momento, com o enfraquecimento institucional do país, é que, de novo, os movimentos sociais e populares se deram conta do que significam, e de que têm de fazer esta retomada.
BF - Neste raciocínio, como viu a greve de fome de dom Cappio?
Marilena - Vi de longe, mas como fato político foi tão fundamental que houve até a tentativa da direita de dizer que estávamos de volta a Canudos.
BF - O que achou da declaração de Lula, no programa Roda Viva, de que “a imprensa brasileira é livre e democrática”? E que gostaria que Cuba fosse uma democracia igual à brasileira?
Marilena - Mesmo que essa declaração tenha sido estratégica, ela é inaceitável. Porque ele, como um líder político, que tem a história que tem, tem a obrigação, perante à sociedade brasileira, de explicar por que que a imprensa brasileira não é livre e nem democrática. É não cumprir o seu próprio papel histórico e político. Não dá, para um indivíduo com a história que o Lula tem, com o lugar que ele ocupa, fazer esta afirmação. Ele não tem o direito. E olha que eu defendo o Lula em tudo que posso.
BF - Foi antiético a Folha de S.Paulo publicar uma carta que a senhora tinha endereçado só aos seus alunos?
Marilena - Claro, mas eu não me surpreendo com nada. A Folha tem uma relação poético-literária comigo. Eu chamo a publicação da carta de momento shakespeariano. Como em Hamlet, o personagem não consegue dizer uma verdade para alguém, ninguém acredita. Então, ele monta um teatro dentro do teatro, e a verdade é dita. O Hamlet quer dizer à corte que o pai foi assassinado, que aquilo é uma usurpação, mas ninguém acredita porque já disseram que ele era maluco. Então, ele contrata uma trupe para representar a morte do pai perante a corte. Acho que alguém lá na Folha teve um instante hamletiano porque, ao publicar a carta, o que foi dito foi: “Tudo o que ela está dizendo é verdade, nós fazemos aqui um gesto de prova da verdade do que ela está dizendo com a publicação”.
BF - E no caso do manifesto de apoio a José Dirceu?
Marilena - Este foi o que chamo de um instante Alice no País das Maravilhas, do Lewis Carrol. A reportagem dava o nome de alguns intelectuais que tinham assinado, e realçava que não o tinham feito a Marilena Chauí e o Chico Buarque. Lembrei da Alice quando ela diz que tem 364 dias de “desaniversário”. Você não diz quem assinou o manifesto, destaca quem não o assinou.
BF - Por que especificamente a Folha tem esta relação de amor e ódio com a senhora?
Marilena - Não vou detalhar, porque não é o caso dizer qual é a causa de tudo isto. Depois que a poeira baixar, quando tudo estiver em ordem, eu contarei, nem que seja na minha autobiografia. Aliás, já está escrito por que que isto está sendo feito.
BF - Os movimentos sociais têm sido muito pacientes com este governo, que não assume posições firmes. Faz medida provisória liberando transgênico, mas não para desapropriar terras. Lula negocia para cá, para lá, tentando agradar a todos. O Estado tem de decidir. Na sua opinião, Lula se acovardou?
Marilena - Eu não faria uma avaliação quase de tipo psicológico, de que ele se acovardou. O que me pergunto é qual o grau de autonomia que este governo deu a si próprio. Acho que ele não se deu a autonomia que teria que ter. Quando você diz o Estado decide, acho que, muitas vezes, o Estado tem que negociar. Agora, isso é diferente de definir uma agenda autônoma. Ou seja, há determinadas questões e resoluções que o governo tem de tomar enquanto representante da esquerda e enquanto representante da própria história petista. Às vezes a atitude de Lula aparece como “ele não decide” ou “ele é fraco” ou “ele não toma conhecimento”. Mas não é isso. A cada passo, algo que pertence a uma agenda do PSDB, do PMDB, dos bancos, dos latifundiários, algo que pertence à agenda deles vem primeiro. Então, a agenda do governo é determinada fora dele, tanto que quando, por exemplo, você toma a política externa, ela é brilhante. Porque essa é a única que se define autonomamente.
BF - Então, este governo não tem projeto de sociedade?
Marilena - Ele tem projeto. Mas não toma todas decisões necessárias para implantá-lo. Por um lado, ele é tímido, e por outro lado, ele não é efetivamente de esquerda. Sobre o que vocês chamam de negociação, de conduta sindicalista. Uma posição à esquerda significa que o ponto de partida de sua reflexão, da sua análise, da sua prática é a divisão social das classes. É por aí que você pode pensar e agir de outra maneira. É neste marco da divisão social que o governo não pensa. A ação dele não está fundada na divisão social. Ele acha que é possível governar concedendo um pouco para cada uma das classes sociais, sem definir, portanto, o seu próprio perfil.
BF - Se este governo não é de esquerda e, ainda por cima, agrada às elites, por que elas vêm com esta ofensiva para cima dele?
Marilena - Ah, mas não são as elites. É o PSDB e o PFL. É uma questão eleitoral.
BF - Mas eles são a elite.
Marilena - Não dêem grandeza política, nem histórica a esta crise. Esta crise é a antecipação da disputa eleitoral. Ponto. Parágrafo. É disso que se trata. O Serra quer ser presidente da República. Como é que a crise se montou? Há um trabalho interessantíssimo do professor Sérgio Cardoso (do Departamento de Filosofia da USP) que diz que desde que o governo Lula foi montado, existiam três discursos separados de ataque ao governo: o discurso moral, que era o da classe média; o economicista, que era o da esquerda; e o pseudopolítico, que era o discurso do PSDB.
BF - E qual era o discurso do PSDB?
Marilena - O discurso pseudopolítico do PSDB é dizer que eles são “a gente séria, responsável e moderna que entende de política. Então, nós temos que ter o poder de volta, e faremos qualquer negócio, qualquer jogada para ter o poder de volta”. Esta crise, embora tenha inúmeros elementos reais, tem como causa conjuntural o jogo eleitoral do PSDB e do PFL. Nada mais do que isso.
BF - E onde entram as elites?
Marilena - É justamente porque as elites estão muito satisfeitas que o PSDB tem medo de não ter financiamento para a sua própria campanha. E se perguntam: “O que será de nós?”. Não é mais do que isso. É miudinho, como a “politiquinha” brasileira.
BF - Como viu o artigo que constata “a falência de Marilena Chauí”, escrito por um moleque de 28 anos, que vive nos EUA? Como a senhora vê o papel de gente como Roberto Mangabeira Unger?
Marilena - Pensei: puxa vida, a grandiosidade que me foi dada. Isso é formidável, é maravilhoso. Quanto ao Mangabeira Unger, ele é o mistério planetário. Uma vez, nos EUA, quando ele estava começando a aparecer com algumas coisas no Brasil, meu marido e eu fomos num desses lugares em que o Mangabeira dava aula. As pessoas estavam entusiasmadas, mas também diziam que ele era muito “piradão”. Aí, ele começou a escrever, veio, fez o programa do Brizola, depois se afastou, e se aproximou do PT. Eu lembro que quando alguns amigos me disseram que o Mangabeira Unger viria para o PT, para a campanha do Lula, eu disse: “Ichh”.
BF - A senhora não acha que os intelectuais e ativistas de esquerda no Brasil só deveriam, como a senhora, dar declarações exclusivas aos veículos de esquerda (Brasil de Fato, Caros Amigos, entre outros)?
Marilena - Concordo plenamente. A partir do instante em que você tem plena consciência do jogo econômico e do jogo político que está efetivamente envolvido com os meios de comunicação - e é por isso que eu não posso perdoar as palavras do presidente da República -, e que você não tem efetivamente a constituição de um espaço público, muito menos à esquerda, porque o que você tem é o interesse privado do mercado (...), você simplesmente aceita entrar num processo de servidão voluntária. E aceita ser um instrumento passivo como um arauto da negação do que você pensa e do que você quer. E mais do que ser instrumentalizado pelo adversário, é ser instrumentalizado na direção daquilo que você nega. É preciso aceitar que há divisão social, que há divisão de classes, e que a gente tem que tomar partido.
BF - A senhora acompanha o que está acontecendo com a América Latina e o governo de Hugo Chávez, na Venezuela?
Marilena - O Chávez é um gênio político porque ele soube aproveitar aquilo que lhe deu a possibilidade de fazer a mobilização popular e social, e ter o sustentáculo que ele tem, sabendo lidar com o petróleo que ele tem. Eu me lembro que assim que Lula tomou posse, houve a tentativa de deposição de Chávez, e o primeiro ato da política externa brasileira foi criticar veementemente o golpe. Aqui, houve cobrança de que o Lula fizesse como o Chávez, mas, no nosso caso, seria impossível. Lula não teria este cacife. Ele não tem petróleo para fazer isto. No nosso caso, seria uma aventura que terminaria em impeachment ali mesmo.
BF - E como a senhora avalia o que está acontecendo na França?
Marilena - Meu marido tem a mania sádica de ler em voz alta o que sai na Folha, no Estadão. Dias atrás, ele me disse que tínhamos “uma pérola”: Um jornalista escrevendo que o atual movimento francês era o “maio de 68 dos pobres” (silêncio). É inominável que um jornalista (Marcelo Coelho, da Folha) ouse falar uma coisa dessas, citando Proust, Bergson. É inacreditável. O movimento começa como um recado político ao ministério e ao próprio Chirac. O que ele envolve não é só a lógica própria do movimento social de recusa do que se passa. Por trás dele, há uma história pesadíssima de racismo, de exclusão social, de ‘guetização’, de perseguição que vem à tona. Num primeiro instante, o movimento se apresenta como a luta pelo desemprego, mas depois é a luta contra à sociedade francesa tal como ela está estruturada, e à política francesa como tal. Então, do ponto de vista do significado, ele tem um significado simbólico colossal porque é a cultura francesa que está posta em jogo, é a maneira pela qual o mundo francês está organizado. O protesto vai além da questão racial, econômica e social. Abrange um confronto muito mais poderoso. Meu receio é que o movimento francês fique num cinturão ‘guetizado’. Mas ele é colossal. O fato de a maioria dos manifestantes ser de uma terceira geração de imigrantes mostra a exclusão levada ao seu limite. Ainda mais quando o noticiário os chamam de imigrantes.
Quem éMarilena Chauí sempre é lembrada como a mais renomada filósofa do Brasil. Exemplo de intelectual engajada, a também professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH) teve participação ativa na concepção do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 1980. Anos depois, foi Secretária Municipal de Cultura de São Paulo, na gestão Luiza Erundina (1989-1992). Suas áreas de especialização são História da Filosofia Moderna e Filosofia Política. Convite à Filosofia, de 1994, é o seu livro mais popular. Marilena também desenvolve trabalhos sobre ideologia, cultura e universidade pública.

2 comentários:

Anônimo disse...

Por que uma mulher tão culta e preparada não foi aproveitada no governo Lula?

Anônimo disse...

Não foi aproveitada no governo Lula porque dezenas de competentes companheiros do presidente ficaram de fora para dar espaço para Sarney, Jefferson e tantos outros desqualificados