domingo, 2 de junho de 2013

Existe alguma evidência de que Jesus era casado?

Existe alguma evidência de que Jesus era casado?

Tela de Alexander Andrejewitsch Iwanow - A Aparição de Cristo para Maria Madalena - representa cena da Bíblia que gerou muita discussão na Igreja
Foto: Reprodução
Matheus Pessel

Uma pesquisadora da Universidade de Harvard (EUA) divulgou em um congresso na Itália nesta semana a descoberta de um fragmento de um papiro copta - possivelmente feito em algum momento entre os séculos 2 e 4 - e que reaqueceu uma antiga discussão: o texto cita uma suposta mulher de Jesus. Segundo o professor André Chevitarese - do Instituto de História da UFRJ e da Unicamp -, não há evidência sobre a vida conjugal de Jesus, nem mesmo a Bíblia faz qualquer menção. A discussão sobre o tema, afirma o historiador, veio a aparecer somente no século 2 e reflete, nos dias de hoje, tabus erguidos pela Igreja. "Nesse texto que Karen King trouxe não tem história, tem teologia, não tem história."

"A Bíblia cristã não deixa transparecer absolutamente nada sobre Jesus ser celibatário ou não, mas, com certeza, nós podemos falar que no movimento mais originário, com Jesus ainda vivo, no seu entorno gravitaram homens e mulheres que tiveram a primazia, a possibilidade, em termos igualitários, de dormir com Jesus, acordar com Jesus, tomar um café da manhã, almoçar e jantar com Jesus. Portando, Jesus, no seu tempo histórico, constituiu uma comunidade não apenas de homens, mas de homens e mulheres. Então, o argumento teológico de que Jesus só fez 12 apóstolos é bullshit, isso é falso. Jesus constituiu em torno de si homens e mulheres em uma não hierarquia, uma não hierarquização."

Chevitarese, autor de diversos livros sobre Jesus do ponto de vista da história e sobre os cristãos na Antiguidade, explica que as comunidades da época em que se discutia a relação conjugal desse personagem - séculos 2 e 3 - já não tinham mais contato com a história dele, mas a usavam para defender determinados ideais ou pontos de vista.

"Jesus já ficou para trás há pelo menos 250 ou 300 anos. Então essas comunidades, muito embora se refiram ao que Jesus disse, o que Jesus (segundo elas) disse diz muito mais sobre as dúvidas, as questões que cada uma dessas comunidades cristãs experimenta no seu próprio tempo, do que propriamente uma situação do Jesus histórico lá do século 1", afirma. "Se estabelece ou se usa a figura central ou a referência central do cristianismo para externar preocupações que uma liderança ou uma parte da liderança ou a própria comunidade quer dizer sobre certo objeto. Não temos que conectar isso com Jesus, mas com experiências de comunidade."

Nesse momento histórico, comunidades de cristãos discutiam se o mais adequado era a vida celibatária ou o casamento. "As comunidades estão discutindo 'devo ser um eunuco?', como diz Mateus, 'viver como um eunuco?'. Na tradição de um cristianismo católico, um eunuco se refere a ser celibatário. Portanto, Jesus é celibatário (...) ou devo trabalhar com o modelo de um Jesus que constitui uma família?"

O historiador compara esse período com, por exemplo, um religioso que esteja em uma cruzada contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. Ele pode fazer, afirma o professor, uma leitura própria dos textos da Bíblia para apoiar o seu ponto de vista, digamos, condenando o casamento homossexual, mas permitindo a separação e novo casamento de heterossexuais. "Essas atualizações teológicas são muito mais o 'meu espelho' do que história."

Chevitarese diz ainda que temos encarar as comunidades religiosas como sendo plurais, com cada uma com suas ideias e problemas, mas todas buscando um mesmo modelo a seguir. "Toda e qualquer experiência religiosa (...) é sempre uma experiência humana que busca viabilizar um contato com esse 'mundo cósmico', por isso são sempre plurais e multifacetadas, ou seja, há cristianismos, há judaísmos, há islamismos. (...) Eu não acho que o modelo que aparece aí de um Jesus se referindo a alguém, que a gente não sabe (quem é), mas como 'minha mulher', que isso seja uma discussão que estava em todas as comunidades cristãs, isso é uma questão específica de uma comunidade que introduziu o texto. Eu vejo experiências cristãs, eu não vejo cristianismo. Essa é uma leitura teórica minha."

Karen King, pesquisadora que apresentou o fragmento, acredita que o papiro foi criado entre os séculos 2 e 4 - ainda não foi analisada quimicamente a data do objeto - e que pertença a um texto maior, escrito em grego e que seria um evangelho desconhecido.

Mudanças hoje
O historiador afirma que esse pequeno papiro milenar está diretamente ligado a uma discussão bem atual - a do papel da mulher na Igreja. "A igreja católica hoje (se fosse comprovado que Jesus não foi celibatário) continuaria achando legitimação e base para sustentar a tese de que seus sacerdotes e suas irmãs consagradas, as freiras, devem ser celibatários? E as teólogas feministas que reivindicam para si um espaço maior de atuação no campo das igrejas que elas atuam, podem ser consagradas como sacerdotisas e estarem no púlpito pregando? Esse é um ponto nevrálgico da questão. É isso que movimenta a discussão de um documento como esse que Karen King, uma pesquisadora seríssima, traz à tona."

"No fundo, essas discussões eu acho que pouco têm a ver com Jesus, mas Jesus é central porque ele fala a cerca de 3 bilhões de indivíduos hoje. Mas se Jesus era casado ou não, nada tem a ver com século 1, século 2 ou século 3, porque já passou, mas tem a ver com o século 21. Se Jesus era casado, eu tenho que repensar as estruturas que as igrejas católica, ortodoxa grega, as protestantes históricas me oferecem."

Maria Madalena
"Se nós tivéssemos que projetar uma suspeita sobre que Maria é essa, eu apostaria 100% das minhas fichas em Maria Madalena. Maria Madalena é uma pedra no sapato, é um incômodo para a ortodoxia. Por que é um incômodo para a ortodoxia? Por que ela seria a verdadeira mulher de Jesus? Não, porque Maria Madalena, no Evangelho de João (penúltimo capítulo), é a única testemunha ocular a informar que Jesus não está morto, está vivo, que seu corpo não foi roubado, mas que seu corpo foi ressuscitado e que, de fato, nele se cumpre todas as promessas que foram feitas pelos profetas, por Deus, etc. Então, ela, desde o início, goza de uma primazia que gera um incômodo no século 2, no século 3 no processo de negociação entre em uma ortodoxia e o Império Romano. E essa ortodoxia impondo uma leitura falocrática".

O pesquisador afirma que esse debate se encerra somente no século 6, quando é adotada a figura de Maria Madalena como uma prostituta arrependida. "Antes disso, ela tem esse espectro extremamente vasto, que vai desde uma apóstola, passando por mulher, até uma prostituta. Mas, é com o papa Gregório é que ela vai ganhar esse contorno dentro da ortodoxia de que ele é obrigado a reconhecer que ela tem uma proeminência, mas (afirma que) um dia foi prostituta. É uma leitura maldosa, que nada tem a ver com Maria Madalena", diz o historiador.

Conforme Chevitarese, a Igreja foi desfazer essa imagem apenas no século 19 (quando passou a ser considerada santa), mas a ideia já estava cristalizada. Até o cinema ajudou a difundir a visão de que Maria Madalena era prostituta - o professor cita o filme O Rei dos Reis, de 1927, de Cecil B. DeMille.



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