O planalto e a planície
A conclusão é inescapável: Dilma Rousseff tem vestido o figurino de governante mais corajosa do ciclo da redemocratização. Em pouco mais de um ano de mandato, sob o escudo de mais de 60% de aprovação popular, decide enfrentar experimentados exércitos, envergando a bandeira da “mudança de paradigma” na esfera da política, pois “chegou a hora de enfrentar antigas práticas”, conforme bem frisou o novo líder do governo no Senado, Eduardo Braga (PMDB-AM).
Mudar a política, como ensina o professor de Harvard, Albert Hirschman, implica reduzir o poder de grupos até então privilegiados e melhorar o status de setores desprivilegiados.
Quem patrocina uma reforma há de guerrear não apenas contra blocos tradicionais, aqueles que temem perder poder, mas contra “núcleos revolucionários”, os que lutam para transformar a política numa dicotomia entre “progressistas e reacionários”, bons e maus, mocinhos e bandidos.
Uns receiam diminuir sua participação no processo governativo; outros querem impor sua visão de mundo, rompendo elos com o passado e tradições.
O reformador, por sua vez, deverá demonstrar alta habilidade para implantar um programa de mudanças, evitando fazer tudo bruscamente.
A sabedoria da ciência política recomenda que a agenda das necessidades seja adaptada ao calendário das possibilidades.
Diante desse quadro, emergem as dúvidas: a presidente Dilma encaixa-se no perfil capaz de limpar finas louças na cristaleira sem arranhar nenhuma? Ou, como reza o ditado popular, exerce a habilidade de chupar cana e assoviar ao mesmo tempo?
Teria feito uma análise de viabilidade sobre a mudança de paradigma da política? Avaliou poder extirpar da cena institucional, com uma só canetada, vícios, práticas e mazelas que formam nosso DNA político desde a era colonial?
Ninguém soprou em seu ouvido que há ingredientes culturais difíceis de serem eliminados por simples atos de vontade, mesmo que as decisões partam de fontes que detenham o máximo poder, como é o caso da mandatária-mor? Será que seu patrocinador, o ex-presidente Lula, que lhe dá apoio público para “virar a mesa dos velhos costumes” acredita ser isso possível sem abrir feridas ao governo?
Pelo andar da carruagem, a predisposição da presidente é a de promover mesmo as mudanças necessárias para oxigenar os pulmões da política. Sem transigências ou barganhas. Como diria o arrependido ex-presidente Collor, o tempo é o senhor da razão.
Antes, porém, de inferir sobre o que poderá acontecer a favor ou contra o governo, vale lembrar que a análise de viabilidade no campo político separa duas esferas: a da decisão e a da operação. Uma coisa é a capacidade de a presidente decidir sobre o modelo de gestão política que pretende implantar; outra é a execução das tarefas, que pressupõe o envolvimento de elementos e fatores exógenos, fora do controle do tomador de decisões.
A materialização de um projeto de “mudança de paradigma” na política implica verificação do conjunto de forças e participação ativa de senadores e deputados no processo. E se não concordarem com a intenção da nossa governante de mudar “antigas práticas”?
Alteração de padrões e métodos sinaliza orientação para uma administração de resultados, modelagem que abriga conceitos como meritocracia, racionalidade, qualificação de quadros, predomínio da visão técnica sobre a motivação política e desenvolvimento de estruturas especializadas para o desempenho das funções do Estado.
O escopo é bom. Mas a realização de uma obra desse molde em um território com raízes profundas no passado soa como utopia. Imaginemos o caso da barganha, a troca de apoios por votos no Congresso. Se o Executivo decide mudar a liturgia de entrega de Ministérios e autarquias aos partidos, é lógico supor que seus projetos serão rechaçados pelo Legislativo.
Aliás, os parlamentares já deram o primeiro recado semana passada. O governismo de coalizão é um sistema de mão dupla: parceiros podem travar ou destravar a dinâmica governativa à medida de inputs recebidos.
Urge reconhecer que se a presidente Dilma pretende desenhar a administração à sua imagem e semelhança – conferindo a ela uma identidade técnica – o momento adequado é este, quando alcança elevada taxa de apoio popular. Nenhum governante é capaz de segurar a montaria do governo quando as rédeas são longas.
Dilma plaina nas alturas do balão da opinião pública. Mas a distância entre o planalto das glórias e a planície dos apupos é pequena, sendo a rota bastante tumultuada pelas nuvens da imponderabilidade. Por isso, a presidente deveria medir a temperatura do corpo político para passar o remédio mais apropriado, algo entre o desejável, o necessário e o possível.
Inusitada é ainda a estratégia governista de abrir muitas frentes de luta ao mesmo tempo. Basta registrar as ondas de indignação que se formam no entorno do governo Dilma, além da correnteza que engolfou a base governista no Congresso e resultou no afastamento do PR da base situacionista.
Entre as marolas, registra-se a da indústria, que vê seu PIB despencar sob a proliferação de produtos importados, particularmente os chineses. Setores liderados pela FIESP acusam o governo de inércia ante o processo de desindustrialização que assola o país.
Militares da reserva fazem manifesto com críticas à presidente pelo fato de permitir mudança no comportamento do governo sobre os tempos da ditadura; a onda é pequena, mas faz barulho.
Centrais Sindicais, que, em tempos idos, desfilavam seu poder de pressão no Palácio do Planalto, sob as boas vindas de Lula, sentem-se, hoje, desprestigiadas. Preparam manifestações.
Na área da cultura, artistas de todos os naipes pedem a substituição da ministra Ana de Holanda.
É fogueira por todos os lados. Estrategistas ensinam que um guerreiro deve travar uma batalha por vez. E, como ensina o velho general Sun Tzu, “há estradas que não devem ser percorridas e cidades que não devem ser sitiadas”.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter@gaudtorquato
A conclusão é inescapável: Dilma Rousseff tem vestido o figurino de governante mais corajosa do ciclo da redemocratização. Em pouco mais de um ano de mandato, sob o escudo de mais de 60% de aprovação popular, decide enfrentar experimentados exércitos, envergando a bandeira da “mudança de paradigma” na esfera da política, pois “chegou a hora de enfrentar antigas práticas”, conforme bem frisou o novo líder do governo no Senado, Eduardo Braga (PMDB-AM).
Mudar a política, como ensina o professor de Harvard, Albert Hirschman, implica reduzir o poder de grupos até então privilegiados e melhorar o status de setores desprivilegiados.
Quem patrocina uma reforma há de guerrear não apenas contra blocos tradicionais, aqueles que temem perder poder, mas contra “núcleos revolucionários”, os que lutam para transformar a política numa dicotomia entre “progressistas e reacionários”, bons e maus, mocinhos e bandidos.
Uns receiam diminuir sua participação no processo governativo; outros querem impor sua visão de mundo, rompendo elos com o passado e tradições.
O reformador, por sua vez, deverá demonstrar alta habilidade para implantar um programa de mudanças, evitando fazer tudo bruscamente.
A sabedoria da ciência política recomenda que a agenda das necessidades seja adaptada ao calendário das possibilidades.
Diante desse quadro, emergem as dúvidas: a presidente Dilma encaixa-se no perfil capaz de limpar finas louças na cristaleira sem arranhar nenhuma? Ou, como reza o ditado popular, exerce a habilidade de chupar cana e assoviar ao mesmo tempo?
Teria feito uma análise de viabilidade sobre a mudança de paradigma da política? Avaliou poder extirpar da cena institucional, com uma só canetada, vícios, práticas e mazelas que formam nosso DNA político desde a era colonial?
Ninguém soprou em seu ouvido que há ingredientes culturais difíceis de serem eliminados por simples atos de vontade, mesmo que as decisões partam de fontes que detenham o máximo poder, como é o caso da mandatária-mor? Será que seu patrocinador, o ex-presidente Lula, que lhe dá apoio público para “virar a mesa dos velhos costumes” acredita ser isso possível sem abrir feridas ao governo?
Pelo andar da carruagem, a predisposição da presidente é a de promover mesmo as mudanças necessárias para oxigenar os pulmões da política. Sem transigências ou barganhas. Como diria o arrependido ex-presidente Collor, o tempo é o senhor da razão.
Antes, porém, de inferir sobre o que poderá acontecer a favor ou contra o governo, vale lembrar que a análise de viabilidade no campo político separa duas esferas: a da decisão e a da operação. Uma coisa é a capacidade de a presidente decidir sobre o modelo de gestão política que pretende implantar; outra é a execução das tarefas, que pressupõe o envolvimento de elementos e fatores exógenos, fora do controle do tomador de decisões.
A materialização de um projeto de “mudança de paradigma” na política implica verificação do conjunto de forças e participação ativa de senadores e deputados no processo. E se não concordarem com a intenção da nossa governante de mudar “antigas práticas”?
Alteração de padrões e métodos sinaliza orientação para uma administração de resultados, modelagem que abriga conceitos como meritocracia, racionalidade, qualificação de quadros, predomínio da visão técnica sobre a motivação política e desenvolvimento de estruturas especializadas para o desempenho das funções do Estado.
O escopo é bom. Mas a realização de uma obra desse molde em um território com raízes profundas no passado soa como utopia. Imaginemos o caso da barganha, a troca de apoios por votos no Congresso. Se o Executivo decide mudar a liturgia de entrega de Ministérios e autarquias aos partidos, é lógico supor que seus projetos serão rechaçados pelo Legislativo.
Aliás, os parlamentares já deram o primeiro recado semana passada. O governismo de coalizão é um sistema de mão dupla: parceiros podem travar ou destravar a dinâmica governativa à medida de inputs recebidos.
Urge reconhecer que se a presidente Dilma pretende desenhar a administração à sua imagem e semelhança – conferindo a ela uma identidade técnica – o momento adequado é este, quando alcança elevada taxa de apoio popular. Nenhum governante é capaz de segurar a montaria do governo quando as rédeas são longas.
Dilma plaina nas alturas do balão da opinião pública. Mas a distância entre o planalto das glórias e a planície dos apupos é pequena, sendo a rota bastante tumultuada pelas nuvens da imponderabilidade. Por isso, a presidente deveria medir a temperatura do corpo político para passar o remédio mais apropriado, algo entre o desejável, o necessário e o possível.
Inusitada é ainda a estratégia governista de abrir muitas frentes de luta ao mesmo tempo. Basta registrar as ondas de indignação que se formam no entorno do governo Dilma, além da correnteza que engolfou a base governista no Congresso e resultou no afastamento do PR da base situacionista.
Entre as marolas, registra-se a da indústria, que vê seu PIB despencar sob a proliferação de produtos importados, particularmente os chineses. Setores liderados pela FIESP acusam o governo de inércia ante o processo de desindustrialização que assola o país.
Militares da reserva fazem manifesto com críticas à presidente pelo fato de permitir mudança no comportamento do governo sobre os tempos da ditadura; a onda é pequena, mas faz barulho.
Centrais Sindicais, que, em tempos idos, desfilavam seu poder de pressão no Palácio do Planalto, sob as boas vindas de Lula, sentem-se, hoje, desprestigiadas. Preparam manifestações.
Na área da cultura, artistas de todos os naipes pedem a substituição da ministra Ana de Holanda.
É fogueira por todos os lados. Estrategistas ensinam que um guerreiro deve travar uma batalha por vez. E, como ensina o velho general Sun Tzu, “há estradas que não devem ser percorridas e cidades que não devem ser sitiadas”.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter@gaudtorquato
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