Como muitos leitores pediram, arrisco um comentário sobre educação. A situação, como se sabe, é péssima e, por paradoxal que pareça, isso ainda não é o pior. O que me preocupa é que, "ceteris paribus", são mínimas as chances de o panorama vir a melhorar no espaço de uma ou duas gerações.
Um rápido passeio pelas manchetes das últimas semanas permite avaliar o tamanho do buraco. Comecemos pela mão de obra. Levantamento feito pelo Inep (instituto de pesquisas ligado ao Ministério da Educação) mostrou que a desqualificação é generalizada. Dos professores que estão dando aulas para a 5ª a 8ª séries, 21,3% nem ao menos concluíram a faculdade. Por lei, deveriam ser diplomados em algum curso superior e ainda ter feito licenciatura.
Os meios de produção parecem ainda mais inadequados. Na versão benigna, contamos com uma burocracia pedagógica especialmente burra, que nem ao menos lê os livros que distribui para os alunos. A não leitura (ou leitura limitada à ementa) é a única explicação para o fato de a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo ter mandado para crianças da 3ª série, isto é, com 9 anos, obras repletas de imagens sexuais, palavrões e ironias de difícil apreensão. (Na interpretação menos benevolente, a estrutura seria permeável a os interesses comerciais das grandes editoras, as quais, aparentemente, tampouco leem o que publicam.)
Quem sofre é a matéria prima. Alunos da rede pública de ensino se saem significativamente pior do que os da privada em testes como o Enem. Quando a comparação se dá com outros países, em exames como o Pisa, aí é o Brasil inteiro que faz feio. Em 2006, estudantes brasileiros ficaram na 53ª posição (entre 57 nações avaliadas) na prova de matemática e na 48ª (de 56) no teste de língua.
Enquanto isso, a classe média se lança num salve-se quem puder acompanhando com lupa os rankings das "melhores" escolas para nelas matricular seus filhos. A preocupação com o futuro dos rebentos é legítima, mas o frenesi com as listas é revelador de uma certa ignorância estatística típica de um sistema educacional mais preocupado com o acúmulo de conteúdos do que com a compreensão de conceitos.
Médias dizem algo a respeito do passado e até podem alterar o presente, ao influir sobre o comportamento de agentes, mas não carregam em si nenhuma garantia acerca do futuro. Trocando em miúdos, se o seu filho for burro, a média obtida pela escola em que ele estuda não vai colocá-lo na USP. De modo quase análogo, se ele for inteligente e estudioso, é muito provável que se saia bem mesmo que frequente um colégio que não ocupe o pódio do Enem.
Em suma, médias são um conceito traiçoeiro. Representam um valor válido para o desempenho passado de vários indivíduos, mas que não podem ser extrapolados para o futuro de ninguém em particular. Na média, a humanidade tem um testículo e um seio, daí não resulta que só nasçam andróginos.
De resto, existem truques utilizados por alguns colégios para inflar sua "nota" no Enem. Um dos métodos mais utilizados é evitar que os piores alunos façam a prova. Nas escolas mais "agressivas", estes são convidados a retirar-se antes do terceiro ano. Instituições que se preocupem em dar a melhor formação possível para cada aluno de acordo com suas possibilidades --o que faz todo o sentido do ponto de vista pedagógico-- podem acabar prejudicadas por suas virtudes. Como nem todos os pais percebem essas e outras sutilezas, colégios, num contexto de competição acirrada, sentem-se cada vez mais tentados a seguir o caminho fácil de esquecer o aluno para dedicar-se aos rankings.
Como sair dessa e de outras armadilhas e corrigir a rota do sistema educacional, de modo que pelo menos nossos netos e bisnetos possam usufruir de um ensino público de qualidade? É aqui que fico mais angustiado. As propostas do MEC se dividem entre as inexequíveis e as tímidas.
O diagnóstico do ministério ao menos parece ser o correto, ao enfatizar a necessidade de investir na formação de professores. Embora seja um truísmo, é um daqueles que, escondidos por décadas de inércia, custamos a enxergar: nosso sistema vai mal, porque nossos professores são ruins; e nossos professores são ruins porque os melhores alunos fogem do magistério como o diabo foge da cruz. Estudo encomendado pela Fundação Lemann e pelo Instituto Futuro Brasil no ano passado mostrou que apenas 5% dos melhores alunos que se formam no ensino médio desejam trabalhar como docentes da educação básica. Dos que ficaram entre os 20% mais bem colocados no Enem de 2005, 31% queriam trabalhar na área da saúde e 18% se inclinavam para a engenharia.
Infelizmente, não são incentivos como o abatimento de parte da dívida do crédito educação para quem se dispuser a dar aulas na rede pública que mudarão o panorama. O universo das pessoas que se utiliza do Fies (Financiamento Estudantil) não é tão grande assim. Desde 1999, acumulamos um estoque de 520 mil contratos. O total de estudantes na rede de ensino superior era de 4,9 milhões (dado de 2007).
Faria mais sentido social obrigar todos os alunos formados na rede pública a dedicar um ano de suas vidas ao ensino. Seria o equivalente do serviço militar adaptado para o século 21. Conhecendo um pouco a natureza humana, entretanto, receio que não vá dar certo. Sempre que as pessoas são obrigadas pelo Estado a desempenhar uma tarefa que não desejam e para a qual não têm maiores incentivos, o fazem de forma muito pouco eficiente (nas coxas para falar em bom português). Não foi por outra razão que o socialismo de Estado fracassou. Felizmente, não dependemos de nossos jovens conscritos para repelir nenhuma invasão estrangeira, ou eu estaria escrevendo num idioma diferente do vernáculo.
Mais problemático ainda me parece a ideia do ministério de criar notas mínimas de desempenho no Enem para que alguém se torne professor. Não discordo de que, em teoria, o caminho seja esse mesmo --se desejamos os melhores, devemos selecioná-los. Meu receio é que, com uma política dessas, troquemos maus professores por nenhum professor. Vale notar que mesmo agora, sem rechaçar ninguém de antemão, já enfrentamos dificuldades para contratar mestres de algumas disciplinas como física e química.
Acredito que, para de fato atrair os mais capacitados para o magistério, é preciso pelo menos oferecer salários de mercado e boas condições de trabalho. E isso, evidentemente, custa dinheiro. O país, afinal, se utiliza de um exército de 2,5 milhões de professores na educação básica (pré-escola ao ensino médio).
Não vejo, porém, outro caminho que não tomar a decisão de financiar seriamente a educação. Cuidado, não estou falando aqui de dar aumentos para os professores nem outras políticas feijão com arroz. Estudos empíricos mostram que tais atitudes têm efeitos bastante limitados. O que estou dizendo é que precisamos de uma verdadeira revolução no setor. É necessário refazer tudo colocando o magistério no topo da hierarquia social. É preciso selecionar os melhores, pagá-los muito bem e exigir resultados. (Não ignoro que, no Brasil real, uma iniciativa como essa provavelmente naufragaria na Justiça, por conta de princípios como estabilidade, isonomia salarial etc., mas não custa sonhar.)
Em tempos de crise como o atual, ouvimos economistas de diversas linhas dizerem que não há alternativa senão socorrer os mercados endividando as próximas gerações. Se assim não for, o que nossos filhos e netos herdarão será o caos. Pode ser, não discuto. Só me pergunto por que não utilizamos o mesmo argumento em relação ao ensino. Neste caso, ao menos, os pósteros estariam pagando a conta por algo de que usufruirão. Mais até, tenho o palpite de que nos agradeceriam.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
E-mail: helio@folhasp.com.br
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Um rápido passeio pelas manchetes das últimas semanas permite avaliar o tamanho do buraco. Comecemos pela mão de obra. Levantamento feito pelo Inep (instituto de pesquisas ligado ao Ministério da Educação) mostrou que a desqualificação é generalizada. Dos professores que estão dando aulas para a 5ª a 8ª séries, 21,3% nem ao menos concluíram a faculdade. Por lei, deveriam ser diplomados em algum curso superior e ainda ter feito licenciatura.
Os meios de produção parecem ainda mais inadequados. Na versão benigna, contamos com uma burocracia pedagógica especialmente burra, que nem ao menos lê os livros que distribui para os alunos. A não leitura (ou leitura limitada à ementa) é a única explicação para o fato de a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo ter mandado para crianças da 3ª série, isto é, com 9 anos, obras repletas de imagens sexuais, palavrões e ironias de difícil apreensão. (Na interpretação menos benevolente, a estrutura seria permeável a os interesses comerciais das grandes editoras, as quais, aparentemente, tampouco leem o que publicam.)
Quem sofre é a matéria prima. Alunos da rede pública de ensino se saem significativamente pior do que os da privada em testes como o Enem. Quando a comparação se dá com outros países, em exames como o Pisa, aí é o Brasil inteiro que faz feio. Em 2006, estudantes brasileiros ficaram na 53ª posição (entre 57 nações avaliadas) na prova de matemática e na 48ª (de 56) no teste de língua.
Enquanto isso, a classe média se lança num salve-se quem puder acompanhando com lupa os rankings das "melhores" escolas para nelas matricular seus filhos. A preocupação com o futuro dos rebentos é legítima, mas o frenesi com as listas é revelador de uma certa ignorância estatística típica de um sistema educacional mais preocupado com o acúmulo de conteúdos do que com a compreensão de conceitos.
Médias dizem algo a respeito do passado e até podem alterar o presente, ao influir sobre o comportamento de agentes, mas não carregam em si nenhuma garantia acerca do futuro. Trocando em miúdos, se o seu filho for burro, a média obtida pela escola em que ele estuda não vai colocá-lo na USP. De modo quase análogo, se ele for inteligente e estudioso, é muito provável que se saia bem mesmo que frequente um colégio que não ocupe o pódio do Enem.
Em suma, médias são um conceito traiçoeiro. Representam um valor válido para o desempenho passado de vários indivíduos, mas que não podem ser extrapolados para o futuro de ninguém em particular. Na média, a humanidade tem um testículo e um seio, daí não resulta que só nasçam andróginos.
De resto, existem truques utilizados por alguns colégios para inflar sua "nota" no Enem. Um dos métodos mais utilizados é evitar que os piores alunos façam a prova. Nas escolas mais "agressivas", estes são convidados a retirar-se antes do terceiro ano. Instituições que se preocupem em dar a melhor formação possível para cada aluno de acordo com suas possibilidades --o que faz todo o sentido do ponto de vista pedagógico-- podem acabar prejudicadas por suas virtudes. Como nem todos os pais percebem essas e outras sutilezas, colégios, num contexto de competição acirrada, sentem-se cada vez mais tentados a seguir o caminho fácil de esquecer o aluno para dedicar-se aos rankings.
Como sair dessa e de outras armadilhas e corrigir a rota do sistema educacional, de modo que pelo menos nossos netos e bisnetos possam usufruir de um ensino público de qualidade? É aqui que fico mais angustiado. As propostas do MEC se dividem entre as inexequíveis e as tímidas.
O diagnóstico do ministério ao menos parece ser o correto, ao enfatizar a necessidade de investir na formação de professores. Embora seja um truísmo, é um daqueles que, escondidos por décadas de inércia, custamos a enxergar: nosso sistema vai mal, porque nossos professores são ruins; e nossos professores são ruins porque os melhores alunos fogem do magistério como o diabo foge da cruz. Estudo encomendado pela Fundação Lemann e pelo Instituto Futuro Brasil no ano passado mostrou que apenas 5% dos melhores alunos que se formam no ensino médio desejam trabalhar como docentes da educação básica. Dos que ficaram entre os 20% mais bem colocados no Enem de 2005, 31% queriam trabalhar na área da saúde e 18% se inclinavam para a engenharia.
Infelizmente, não são incentivos como o abatimento de parte da dívida do crédito educação para quem se dispuser a dar aulas na rede pública que mudarão o panorama. O universo das pessoas que se utiliza do Fies (Financiamento Estudantil) não é tão grande assim. Desde 1999, acumulamos um estoque de 520 mil contratos. O total de estudantes na rede de ensino superior era de 4,9 milhões (dado de 2007).
Faria mais sentido social obrigar todos os alunos formados na rede pública a dedicar um ano de suas vidas ao ensino. Seria o equivalente do serviço militar adaptado para o século 21. Conhecendo um pouco a natureza humana, entretanto, receio que não vá dar certo. Sempre que as pessoas são obrigadas pelo Estado a desempenhar uma tarefa que não desejam e para a qual não têm maiores incentivos, o fazem de forma muito pouco eficiente (nas coxas para falar em bom português). Não foi por outra razão que o socialismo de Estado fracassou. Felizmente, não dependemos de nossos jovens conscritos para repelir nenhuma invasão estrangeira, ou eu estaria escrevendo num idioma diferente do vernáculo.
Mais problemático ainda me parece a ideia do ministério de criar notas mínimas de desempenho no Enem para que alguém se torne professor. Não discordo de que, em teoria, o caminho seja esse mesmo --se desejamos os melhores, devemos selecioná-los. Meu receio é que, com uma política dessas, troquemos maus professores por nenhum professor. Vale notar que mesmo agora, sem rechaçar ninguém de antemão, já enfrentamos dificuldades para contratar mestres de algumas disciplinas como física e química.
Acredito que, para de fato atrair os mais capacitados para o magistério, é preciso pelo menos oferecer salários de mercado e boas condições de trabalho. E isso, evidentemente, custa dinheiro. O país, afinal, se utiliza de um exército de 2,5 milhões de professores na educação básica (pré-escola ao ensino médio).
Não vejo, porém, outro caminho que não tomar a decisão de financiar seriamente a educação. Cuidado, não estou falando aqui de dar aumentos para os professores nem outras políticas feijão com arroz. Estudos empíricos mostram que tais atitudes têm efeitos bastante limitados. O que estou dizendo é que precisamos de uma verdadeira revolução no setor. É necessário refazer tudo colocando o magistério no topo da hierarquia social. É preciso selecionar os melhores, pagá-los muito bem e exigir resultados. (Não ignoro que, no Brasil real, uma iniciativa como essa provavelmente naufragaria na Justiça, por conta de princípios como estabilidade, isonomia salarial etc., mas não custa sonhar.)
Em tempos de crise como o atual, ouvimos economistas de diversas linhas dizerem que não há alternativa senão socorrer os mercados endividando as próximas gerações. Se assim não for, o que nossos filhos e netos herdarão será o caos. Pode ser, não discuto. Só me pergunto por que não utilizamos o mesmo argumento em relação ao ensino. Neste caso, ao menos, os pósteros estariam pagando a conta por algo de que usufruirão. Mais até, tenho o palpite de que nos agradeceriam.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
E-mail: helio@folhasp.com.br
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